terça-feira, 4 de novembro de 2014

A presença de um mestre: Daisetz T. Suzuki

A presença de um mestre: Daisetz T. Suzuki

Faustino Teixeira
PPCIR - UFJF

            Para os que buscam entender o Zen Budismo, a presença de Suzuki se faz imprescindível, de modo particular para os ocidentais, que tiveram acesso ao mundo Zen pela força irradiadora desse mestre japonês. É verdade que hoje sua obra é objeto de discussão entre os scholars. Alguns assinalam que se trata de uma “visão romantizada” ou psicologizada da espiritualidade Zen, de tendência “mito-poética”. Mas nada disso tira o imenso valor e originalidade de sua reflexão, que possibilitou ao Ocidente o acesso às riquezas desta tradição sapiencial.

            Suzuki nasceu em 1870, na cidade de Kanazawa (Japão), numa família de tradição estabelecida no campo da medicina, e vínculos importantes com a casta dos samurais. Seu avô e seu pai eram médicos. Viveu uma situação difícil depois da perda de seu pai, em idade ainda jovem, envolvendo a família em precisas dificuldades financeiras. Na época tinha apenas seis anos de idade, e a perda de um pai na ocasião acarretava sérias consequências.

            Com o tempo, a reflexão do jovem Suzuki vai se orientando para a filosofia e a religião, em particular com o ramo Zen Rinzai. Encontra ali um espaço propício para o trabalho das questões existenciais que estavam no coração de suas demandas do período. As visitas no pequeno templo de Kanazawa serviam-lhe de alento e ajuda. Tomou também contato na ocasião com missionários cristãos, um dos quais – participante da igreja ortodoxa grega – presenteou-o com um exemplar do livro do Gênesis em tradução japonesa. Na época tinha cerca de quinze anos, e tinha o costume de dialogar sobre filosofia e religião com os estudantes de sua geração. Alguns amigos chegaram a se converter ao protestantismo, e pressões nesse sentido ocorriam também sobre ele. Mas resistia à hipótese do batismo antes de estar convencido sobre a verdade do cristianismo.

            Durante contatos com o novo professor de matemática em sua escola, ficou sabendo da presença de roshi Kosen, um importante mestre Zen naquele período. Com o interesse desperto, Suzuki busca um maior aprofundamento no templo de Kokutaiji, na província de Etchu, onde vivia o mestre Setsumon. Parte como um buscador em direção ao templo e vem acolhido com alegria pelos monges. Ali faz sua primeira experiência de zazen, embora na ocasião desconhecesse o Zen e todas as etiquetas que envolviam a dinâmica do sanzen.

            Consegue o cargo de professor em Mikawa, uma vila situada cerca de 25 quilômetros de Kanazawa. Permaneceu ali cerca de seis meses, quando então interrompeu seus estudos sobre o Zen. Dali parte para a Universidade de Waseda, para dar continuidade aos estudos. A iniciação Zen vem continuada na cidade de Kamakura, distantes cinquenta quilômetros de Tokio, sob a direção de roshi Kosen, então abade de Engakuji. Com a morte deste mestre, em janeiro de 1892, Suzuki segue os ensinamentos com o seu continuador, o mestre Shaku Soen (1859-1919), o mesmo roshi que havia participado do clássico Parlamento Mundial das Religiões em Chicago (1893). Na ocasião, o percurso para o alcance da maturidade espiritual num mosteiro Zen levava cerca de quinze anos.

            É com Shaku Soen (também conhecido como Soen Shaku) que Suzuki dá continuidade aos encontros de ensinamento (sanzen). Num desses colóquios recebe de seu mestre o koan Mu, e com ele o desafio de desvendar o seu mistério. O mestre acreditava que através desse caminho Suzuki teria melhores condições de alcançar a visão do real. Muito conhecido, esse koan pode ser assim enunciado: “Um discípulo pergunta a Joshu: ´tem ou não o cão a natureza de buda?`. E o mestre Joshu responde: ´Mu`”. Esse é o koan que se coloca como desafio para Suzuki.

            Durante quatro anos de muita luta e combate interior, Suzuki busca responder ao desafio proposto. Considerava na época ser mais fácil o acesso intelectual ao koan, mas o mais difícil era estabelecer uma relação vivida com ele, isto no plano da experiência. Buscou este acesso nos livros da tradição Zen, e num deles – Zenkan Sakushin (golpes de chicote para ajudar a atravessar as barreiras Zen) encontrou uma pista importante. Percebeu que a dúvida fazia parte do caminho de acesso ao satori. As certezas absolutas deveriam ser deixadas de lado, e todas as energias concentradas para a resolução do koan. Deu-se também conta de que esta resolução não viria de fora, mas do mundo interior, da fonte íntima de onde jorra todo o ser. Seguindo este rastro, Suzuki acende sua atenção e passa diversas noites numa gruta situada atrás do templo de Shariden (um dos locais que compunham o mosteiro de Engakugi). O seu amigo íntimo, Nishida Kitaro (1870-1945) – fundador da Escola de Kyoto -, relata que nesta ocasião Suzuki teria inclusive pensando em suicídio, isto em razão de todas as dificuldades existenciais que envolviam seus passos no caminho de resolução do complexo koan. Suzuki dedicava-se integralmente a buscar aquilo que lhe havia proposto o mestre Shaku Soen. Não se encontrava muito com seu mestre, a não ser nas sessões obrigatórias de sanzen durante os sesshin.

            Aos poucos, Suzuki vai se dando conta de que “a extremidade do homem é a ocasião de Deus”, e que o horizonte do satori assoma-se no momento em que o ser humano toca o abismo do desespero, decidindo colocar um fim nos seus dias. Ou seja, é nas situações mais densas, nas situações-limite, que o ser humano tangencia o mistério de seu ser. Em 1896, participando de um sesshin, sempre envolvido com a busca de resolução de seu koan, ali por volta do quinto dia de encontro, Suzuki vive uma experiência de grande intensidade, como se apagasse de sua consciência qualquer percepção do Mu. Mais ainda, vive a presença intensa de uma unificação sua com o Mu, sem que traço algum de separação pudesse se interpor entre ele e Mu. Nesse momento ocorre para ele a consciência do verdadeiro despertar (samadhi). Passou um bom período em estado de dispersão da consciência até que o som de um sino provocasse nele um novo chamado à realidade. Relata o ocorrido para o seu mestre, e responde a ele as indagações a respeito de Mu. Depois da conversa com o mestre, na noite de sequencia do encontro, percebeu traços de transparência nas árvores que não visualizava nos momentos rotineiros. Uma mudança tinha sido provocada em sua visão do real. Relata Suzuki no texto que descreve sua juventude – publicado no livro: Dernières écrits au bord du vide (Albin Michel, 2010) – que a partir de então não teve mais dificuldades na resolução de koans. Passa a entender aquela clássica sentença Zen: “os cotovelos não se abrem para o exterior”.

            Ainda jovem, com vinte e sete anos de idade, parte para os Estados Unidos, onde viverá por doze anos. Retorna depois ao Japão, para sua cidade natal, e mais adiante vem nomeado professor de budismo Zen na Universidade de Otani, em Kyoto. As viagens e conferências no Ocidente não cessaram com o retorno ao Japão, dando assim continuidade ao processo de irradiação da tradição por toda parte. A morte de Suzuki ocorreu em 1966, quando tinha noventa e seis anos de idade.

            Suzuki é conhecido mundialmente por suas inúmeras obras, das quais destaca-se a tríade de seus  Ensaios sobre o budismo Zen, publicada no final da década de 1920 e início da década seguinte.  Outras obras também podem ser elencadas: Viver Zen (1950);  A doutrina Zen da não mente (1969); Manual de Budismo Zen (1974). Sua obra também veio em parte publicada no Brasil, e algumas alcançaram importante sucesso, como a Introdução ao Zen-Budismo, prefaciada por Carl Jung. Conhecido ficou também o prefácio de Suzuki à obra de Eugen Herrigel, A arte cavalheiresca do arqueiro zen. Ali nesta introdução, Suzuki expressa uma das questões centrais em sua reflexão: “O Zen é a consciência cotidiana”. Sobre isso tinha falado de forma viva na sua Introdução ao Zen budismo, quando buscava delinear o traço místico do Zen. Para Suzuki, “o Zen é um misticismo a seu próprio modo. É místico no sentido de que o sol brilha, que uma flor desabrocha e que neste momento ouço alguém bater um tambor na rua”. O que ele propõe é algo muito simples, criar as condições para uma mente livre e despojada, preparada para acolher a novidade do dom. Para ele o Zen diz simplesmente: “Reverencia uma camélia em plena floração e cultua-a, se quiseres. Há tanta religião neste ato como quando nos prosternamos diante dos vários deuses budistas, ou espargimos água benta, ou participamos da ceia do Senhor”.

            A irradiação de Suzuki e de sua obra no Ocidente foi simplesmente impressionante. Não há quem não faça referência a esta presença, acolhida por grandes pensadores como Thomas Merton e Gustav Jung; por literatos como Alan Watts e os seguidores da geração beat como Jack Kerouak, Allen Ginsberg e Gary Snyder. Foi referencia importante em obras como Os vagabundos de Dharma – de Kerouac – onde o protagonista Japhy Ryder é claramente inspirado em sua figura.

            Grandes pensadores do Ocidente, como Heidegger, impressionaram-se com a vitalidade da reflexão de Suzuki. No ano de 1939, este pensador alemão foi presenteado com um dos livros de Suzuki, o primeiro volume dos Ensaios sobre o Budismo Zen. O portador da boa-nova foi Keiji Nishitani, um dos nomes importantes da Escola de Kyoto, que seguia os estudos com Heidegger em Friburg. Como relata William Barret, citado em verbete recente de um dicionário sobre Heidegger (Le dictionnaire Martin Heidegger – Cerfm, 2013), de autoria de Fabrice Midal, o pensador teria dito sobre os livros de Suzuki: “Se eu compreendi bem esse homem, eis o que busco dizer em todos os meus escritos”. Ou seja, Suzuki exercia um impacto sobre os outros que era mesmo de impressionar. Como também relata Thomas Merton em seus diários.

            Mais importante que sua obra propriamente dita, é sobretudo sua personalidade, o seu carisma e sua presença. É o que normalmente ocorre com os grande mestres. Os livros contam, não há dúvida, mas a Presença fala muito mais forte. É o que expressou Shizutero Ueda, outro pensador da Escola de Kyoto, a respeito da personalidade de Suzuki. Em sua obra Zen e filosofia (1994), Ueda relata o impacto exercido pelo mestre em sua vida. Sinaliza que foi através de seus livros que ele se iniciou no Zen: “foi a pessoa que me inspirou nesse caminho”. E conclui: “o efeito que produziu em mim foi tão decisivo que custa acreditar. Sua influência não procedia de seus livros (dos quais li muitos) mas de algo que percebi nele, uma espécie de verdade viva de um alcance maior do que sou capaz de expressar no papel”.


            Não é tarefa fácil sintetizar a importância e o alcance da presença de um mestre tão singular como foi Daisetz Teitaro Suzuki. Hoje ele vem sendo objeto de crítica na academia, e nem sempre considerado no seu devido alcance. Argumentam alguns scholars que ele teria perdido o elo de ligação com a grande tradição Zen da China e do Japão, com uma divulgação mais psicologizante desta tradição com o intuito de ser melhor acolhido no Ocidente. Não se pode excluir esta hipótese, mas nada disto tira o valor que ele representa e a importância de sua presença em toda a América e também alhures. Mas sobretudo, o que fica como traço mais importante é o que Ueda expressou: esse ALGO que se irradia de sua pessoa de mestre e de exemplo espiritual.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

O Deus da prosperidade: desconstruindo imagens

O Deus da prosperidade: desconstruindo imagens

Faustino Teixeira

           
Abstract:
La primera sección muestra como las categorias económicas influyen en las instituciones religiosas y en las ideas sobre Dios. No se aborda la religión en el mercado, sino como Dios es presentado en la sociedad contemporanea. La segunda sección examina de modo positivo las vivencias pentecostales, y de forma especial la existencia del pueblo que se siente redimido del mal y que sobrevive em los márgenes. Esto es ahondado em la tercera sección (con ejemplos concretos en Brasil, como el caso de un obrero de la construcción) en el sentido de la dignidad personal y un empoderamiento simbólico. La cuarta sección hace un contraste entre el dios de la prosperidad y el Dios de la vida (que implica una donación liberadora y humanizadora).  

Introdução


Mudanças importantes vêm ocorrendo no panorama geral do campo religioso na contemporaneidade. Verifica-se uma complexificação da presença do religioso, que não se apresenta da mesma forma como no passado. Com o avanço da modernidade, da globalização e da pluralização, a religião vive sob o impacto de uma nova dinâmica. Dentre as mudanças em curso, destaca-se o processo de desinstitucionalização, como bem expressou o antropólogo Pierre Sanchis:

“As estruturas sólidas que fundavam, enquadravam, regulavam o universo das experiências religiosas, conferindo-lhes distinção, identidade e conteúdo, não o fazem mais com o mesmo rigor, e até quando se reafirmam com renovado vigor, não o fazem com a mesma abrangência. Um dos problemas mais críticos que as instituições religiosas terão de enfrentar nos próximos tempos será de se haver com um significado menos totalizante para a relação identitária que seus fiéis manterão com elas”[1].

                  O avanço da modernidade não provoca a exclusão do religioso, mas uma nova forma de sua presença. As tradições religiosas perdem a sua rigidez, e os indivíduos passam a transitar mais livremente sem a necessidade de adesões permanentes e exclusivistas, compondo seu referencial identitário com o recurso de distintas fontes religiosas ou espirituais.

            Já dizia com razão Peter Berger que as situações pluralistas provocam a quebra dos ex-monopólios religiosos, que perdem o seu poder de domínio ou hegemonia sobre seus fiéis. Instaura-se uma “situação de mercado”, que transforma as instituições ou grupos religiosos em agências competidoras, tendo agora que se organizar para corresponder à demanda diversificada dos fiéis[2]. A pressão na busca de “resultados” numa situação de altercação acaba provocando uma “racionalização das estruturas sociorreligiosas”, que se deixam penetrar por uma lógica burocrática e econômica.

1. O fator Deus na sociedade de mercado

            Na sociedade moderna, pontuada pelas relações de mercado, as religiões sofrem, de fato, um impacto importante. Fala-se inclusive no nascimento de uma nova forma de religião: a “religião da mercadoria”, que promete a seu modo vida, felicidade e nomização, como as religiões tradicionais[3]. Mas não é o que se contempla nesse artigo. O que se busca registrar aqui é o dado da penetração da lógica burocrática e econômica nas instituições religiosas, sem que isso descaracterize necessariamente tais instituições como organizações com finalidades religiosas.

            Tendo como foco substantivo o campo religioso brasileiro, verifica-se com certa preocupação o envolvimento crescente de certas tradições cristãs, pentecostais e carismáticas, na lógica do mercado. A afirmação da teologia da prosperidade encaixa-se bem nessa nova dinâmica. Envolvendo crenças sobre cura, prosperidade e poder da fé, essa doutrina – nascida na década de 40 -, firma-se como movimento singular ao longo dos anos 70, tendo importante impacto na realidade latino-americana, e em particular no Brasil. A teologia da prosperidade, “com promessas de que o mundo seria locus de felicidade, prosperidade e abundância de vida para os cristãos, herdeiros das promessas divinas”, veio corroborar a tendência de acomodação ao mundo presente em vários segmentos pentecostais[4].

            É uma teologia que encontra guarida nos segmentos neopentecostais brasileiros sobretudo a partir do final da década de 1980, com incidência importante em duas igrejas: Universal do Reino de Deus e Internacional da Graça de Deus.  Dentre as crenças defendidas com ênfase, a de que o plano de Deus para o ser humano é fazê-lo próspero, feliz, abençoado e realizado nesse tempo presente, e não no além. Segundo os pregadores pentecostais, “só não é próspero financeiramente, saudável e feliz nessa vida quem carece de fé, não cumpre o que diz a Bíblia a respeito das promessas divinas e está envolvido, direta ou indiretamente, com o Diabo”[5]. Na visão do grande líder da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), o bispo Edir Macedo, a oferta realizada pelos fiéis é “investimento”, e investimento para o crescimento pessoal: “Quem dá tudo recebe tudo de Deus”. Como ele assinala, o trabalho realizado gera “resultado” na vida dos seguidores: “A maioria entrou falida, sem nada, fracassada na vida econômica, e hoje são empresários bem-sucedidos, donos de negócios lucrativos, carros, casas, bens que não acabam mais. E o mais importante: tiveram a família reconstruída, a felicidade de volta”[6].

            Quando a lógica do mercado se firma na sociedade e penetra o campo religioso, não há dúvida de que isto repercute na ideia de Deus. Perpassando todos os espaços da vida cotidiana, essa lógica não ocorre sem vitimizações. O mercado é, por sua própria condição produtor de vítimas, sobretudo na ordem capitalista: “produz vida para pequena porção de nações e desestruturação social e morte para as grandes maiorias da humanidade”[7]. A teologia da libertação denunciou com vigor os riscos inerentes à vinculação ideológica da imagem de Deus ao sistema capitalista vitimizador. Falou-se na presença de um Deus inversus, que se faz presente por uma dupla ausência: na dor, na miséria, na dependência e marginalidade de milhões de excluídos; assim como entre aqueles que usam em seus lábios o nome de Deus, ou que o veneram em seus templos, mas cuja experiência de vida ou prática não corresponde ao projeto de Deus[8].

            O prêmio Nobel de literatura, José Saramago, denunciou com vigor esse “fator Deus”, que envolve experiências duras de violência contra os outros, e algumas das mais absurdas e criminosas[9]. Não são poucos os que, como Saramago, desacreditam nas religiões como canal possibilitador do congraçamento e aproximação entre os seres humanos. São autores que entendem que elas “foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana”[10]. Teólogos como Christian Duquoc mostraram, com base na história da igreja, a triste cumplicidade entre a convicção de possuir a verdade e a violência[11]. Sem desconhecer esta triste realidade, há que sinalizar que a relação autêntica e profunda com o Mistério Absoluto, não suscita violência, mas ao contrário, “desperta a coragem inabalável para produzir mais humanidade em todos os setores da vida”[12]. A violência religiosa decorre antes de uma vinculação perniciosa  e a-crítica entre o Absoluto e a ordem sócio-política engendrada pelos seres humanos. Podem ocorrer alianças ou pressupostos específicos, ocultos ou manifestos, que acabam incidindo numa imagem deformada de Deus, suscitando assim práticas de violência.

            Exemplos tomados de práticas relacionadas à teologia da prosperidade apontam traços de um Deus que se adapta aos requisitos do mercado. O Deus que promete saúde e prosperidade exige do fiel uma contrapartida, de contribuição para a “casa de Deus”. A bênção fica na dependência da “devolução” daquilo que é de Deus, ou seja, o dízimo. Só contribuindo é que o milagre ganha sua realização. Trata-se de uma “visão de Deus que não incomoda o bom funcionamento do mercado”[13].

2. O Deus da vida que se adentra pelas frestas
           
            Não há como fechar o campo da interpretação do fenômeno religioso popular num foco restrito de reflexão. Isto vale para as práticas em curso em muitas das experiências pentecostais, envolvendo também aquelas relacionadas à teologia da prosperidade. O fenômeno pentecostal abrange uma “pluralidade de significações”. Se há uma lógica que rege muitas vezes a autoridade de função dos pastores e bispos nas igrejas pentecostais, há uma dinâmica do fiel, de sua experiência espiritual concreta, que nem sempre obedece ao script determinado. Isto vale, por exemplo, para a questão do dinheiro ou da dádiva. Se para as lideranças de certa igreja “o dízimo dos crentes é um negócio”, não se pode concluir apressadamente

“que para os praticantes o mesmo ato signifique a mesma coisa. Os pastores vendem a salvação no céu e o enriquecimento na Terra, mas os crentes não estão necessariamente ´comprando` uma mercadoria, como a lógica do mercado leva a interpretar. Estão ´dando` qualquer coisa; estão participando com dinheiro para uma ´causa`. Isto é diferente e muda tudo”[14].

                  A lógica que move o fiel é bem diversa da lógica engessada que domina o pastor, cujo carisma perde o seu brilho em função do exercício de sua função. O carisma vem agora vinculado a uma “empresa burocrática de salvação”. O fiel comunga de outra visada. Nos gestos e práticas de sua experiência espiritual vem animado por uma perspectiva dinamogênica, para utilizar uma expressão de Durkheim. Com o exercício de seu dom, vem enriquecido na sua qualidade de sujeito. Em linha de descontinuidade com uma moral utilitarista, “o fiel sente-se superior aos infiéis porque professa um estilo de vida no qual a dádiva e o desprendimento criam uma imagem narcísica de grandeza moral que o dinheiro não compra”[15].

            Os autores clássicos da sociologia da religião, como Max Weber, falam dessa função miúda e terrenal da religião para o fiel comum. Sua finalidade é nomizadora: “Para que vás bem e vivas longos anos sobre a terra”. Mesmo que a mensagem religiosa esteja racionalizada, moralizada e elitizada, quando se propaga e toca as massas populares “adquire um caráter predominante de redenção religiosa dos males imediatos do mundo, tornando-se religiões de salvação”[16]. Nada mais importante para o fiel do que poder comungar com o seu Deus e com a força e o poder a ele vinculados. São essas energias que ajudam a manter acesa a vida e o ânimo para enfrentar as dificuldades do cotidiano. Como diz o personagem do Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, “com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve”.

            Há que buscar instrumentos analíticos refinados para se poder captar a experiência religiosa que pulula nos meandros pentecostais populares, para além do jargão usual utilizado pela sociologia e teologia de plantão. Alguns esforços teológicos importantes começam a se irradiar, como o trabalho empreendido por Bernardo Campos para captar “o princípio pentecostal”. Sua intenção é de buscar compreender esse movimento que se propaga com vigor por toda a América Latina como um “movimento espiritual muito mais profundo e mais complexo que suas expressões históricas propriamente ditas”[17]. Em semelhante perspectiva firmou-se também o trabalho realizado pelo sociólogo Waldo Cesar e o teólogo Richard Shaull, numa pesquisa interdisciplinar sobre o significado do movimento pentecostal no Brasil entre 1955 e 1997[18]. O que explicaria essa contundente presença dos pobres na fé pentecostal? É a interrogação lançada por Waldo Cesar ao tratar o tema da vida cotidiana e transcendência no pentecostalismo. Ele sublinha:

“Somente algum tipo de extraordinária transformação de vida pode levá-los a essa radiosa aceitação de uma Providência capaz de conviver com os mais humildes membros da espécie humana e oferecer-lhes uma esperança que transfigura em vitória situações normalmente associadas à frustração e ao desespero”[19].

Há um significativo traço de transcendência e espiritualidade nos “rostos radiantes” dos fiéis confiantes em Deus e na força do Espírito. E isto não pode ser simplesmente taxado de alienante, pois revela dimensões de resiliência e protesto. Há também um “grito” camuflado nesta dinâmica que irmana sobrevivência e transcendência. Segundo W.Cesar, “nesse emaranhado de emoções, na experiência de juntar num só gesto o transcendente e o imanente, talvez se inscreva o milagre da proposta pentecostal de fé: a sobrevivência no centro mesmo da marginalidade da vida”[20]. Reforçando esta mesma posição, o teólogo Richard Shaull assinala que estava mesmo faltando algo no esforço interpretativo de compreensão do movimento pentecostal, em particular a “experiência com o Evangelho”. Um outro ângulo teológico se desvencilha: a possibilidade de emergência de “elementos de um novo paradigma de fé e vida cristã capazes de fornecer urgentemente os recursos necessários para a recriação, nesse momento, da vida e da sociedade humanas”[21]. É no âmago de uma situação de pobreza e exclusão que muitos pobres “passam a conhecer uma rica experiência, que não podemos imaginar, de cura e presença salvadora de Deus”[22].

3. Uma experiência de reorganização das energias vitais

            As pesquisas indicam que esta experiência pentecostal faculta um sentimento de confiança, de dinamização vital e potenciamento do sujeito que escapam de um olhar meramente superficial. Há toda uma dinâmica de recriação do sujeito e redimensionamento da vida, de reconstrução de história e caminho familiar. Mesmo que não seja tão fácil desocultar nesse movimento uma teologia explícita de responsabilidade social, verifica-se o seu potencial de “atingir a vida dos mais pobres e excluídos, ajudando-os a reorganizar suas vidas e dando-lhes um novo senso de identidade e esperança no futuro”[23].

            Pesquisadores no campo da antropologia têm revelado um importante traço agregador na dinâmica pentecostal, que fazem lembrar a riqueza da experiências das comunidades eclesiais de base na América Latina. Não há como querer aprisionar as denominações pentecostais, com toda a sua complexidade, numa espécie de “essência” que as encaixaria exclusivamente como alienantes ou conservadoras. O expediente da conversão pentecostal tem fornecido efetiva plausibilidade para entender esse processo de dignificação do sujeito. São eles os que mais conseguem avançar nas margens da sociedade, possibilitando importantes redes de agregação e sociabilidade. São espaços de aprendizado, de trabalho com a palavra, de crescimento pessoal e de ajuda mútua; de criação de laços de confiança e fidelidade, que potenciam uma singular rede de relações com benefícios substantivos para toda a comunidade. A experiência pentecostal tem facultado uma “via subalterna para a produção de dignidade”. É o que afirma a antropóloga carioca Regina Novaes em suas pesquisas sobre o tema. E o que mais impressiona é o alcance da experiência. Os pentecostais “chegam a lugares de onde nenhuma outra instituição civil ou religiosa ousa se aproximar”. Eles se irradiam pelas vielas mais recôndidas das favelas, suscitando novas dinâmicas agregadoras. Junto com a conversão pentecostal, um sentimento novo de dignidade e auto-estima, de coerência vital e poder. Como já dizia Durkheim, o fiel religioso não é alguém que simplesmente vê verdades novas, mas alguém que “pode mais”. Isso vem verificado na experiência pentecostal. Não é de se estranhar, como assinala Novaes, “que a conversão ao pentecostalismo, como demonstram algumas pesquisas, possa ter se tornado um expediente cultural para ´se deixar de beber`, para recobrar a auto-estima, representando uma espécie de recurso de recomposição familiar”[24].

            Em alguns casos, a conversão ao pentecostalismo é um recurso possível para escapar à vida do crime ou mesmo para driblar o circuito do tráfico de drogas. O grande ganho da conversão é, sem dúvida, a recomposição nomizadora, a afirmação de uma nova ordem subjetiva. Em importante documentário sobre uma pequena igreja crente, Casa de Oração Jesus é o General, o cineasta João Moreira Salles traduz com maestria as razões da eficácia pentecostal entre os pobres urbanos em região do Rio de Janeiro. Esse diretor escolheu uma pequena igreja autônoma situada na zona oeste do Rio de Janeiro. Com o título de “Santa Cruz”, esse documentário de 2000 relata de forma preciosa o nascimento e afirmação de uma igreja pentecostal. A intenção do diretor era buscar captar essa teia de solidariedade e ajuda mútua que presidiam a experiência pentecostal, para além das questões especificamente espirituais. Naquela década de 90 a presença pentecostal na região do Rio de Janeiro era bem substantiva. Com base nos dados do Censo Institucional Evangélico de 1992, nada menos do que 141 novas igrejas foram criadas em 1990 e 262 no ano de 1991. Uma média de 5 novas igrejas por semana, sendo 80% na região metropolitana do Rio de Janeiro[25]. Em outra pesquisa sobre os evangélicos do Grande Rio, realizada em 1994 e coordenada pelo antropólogo Rubem Cesar Fernandes (ISER), chegou-se a uma impressionante constatação: cerca de 250 mil pessoas tornaram-se evangélicas nesta região entre os anos de 1992 e 1994, uma média de 80 mil por ano[26].

            Para a realização de seu documentário, João Moreira Sales tinha uma lista de 25 novas igrejas fundadas no mês do início das filmagens. A escolha recaiu na igreja de um pastor “menos carismático”, um metalúrgico aposentado (Jamil). E isso era importante para a hipótese a ser apresentada: de que a conversão independe da sedução de um pastor. O filme, na verdade, abordava o processo de formação da comunidade, fixando-se nas pessoas que se reuniam em torno do pastor. O caso de uma delas, o pedreiro Veronilson, é bem significativa para mostrar esse processo de “ganho simbólico da conversão”:

“De dia ele trabalha na construção; à noite, chega em casa, troca de roupa, veste um terno, se olha no espelho e sabe que está mais bem vestido que o capataz que passou o dia lhe dando ordens. Além disso, ele sabe que pode progredir na hierarquia da igreja, pode virar diácono, missionário, quem sabe pastor, e com isso se tornar um homem de respeito, o que na verdade ele já é quando cruza a área em que mora com a Bíblia embaixo do braço”[27].

                  Com o exemplo da história de Eronildes, dentre outras, o diretor busca reconhecer como no espaço da igreja pode se gestar um novo protagonismo identitário, com a afirmação de uma nova dignidade do sujeito. O filme quebra, assim, a imagem de certas representações correntes sobre o pentecostalismo, apontando caminhos novos de interpretação, favorecendo um olhar internalista e compreensivo sobre esse complexo fenômeno. Possibilita, em verdade, um olhar sobre o potencial da igreja em “formar comunidade moral e rede de ajuda mútua”. Como se a experiência comunitária “preenchesse aos poucos um espaço vazio”, de baixo potencial de dignidade. O filme busca retratar os três primeiros meses da comunidade e as mudanças suscitadas pela nova igreja: “A integração promovida pela igreja criou amizade entre os vizinhos, formou rede de apoio e ajuda mútua entre iguais, valorizando e ´preenchendo` de relações positivas o bairro antes ruim, ´terra de ninguém` , vazio civilizatório.[28]

4. Desconstruindo imagens

            As imagens construídas sobre Deus são sempre muito fragmentárias. Aliás, nenhuma imagem humana consegue traduzir o significado de Deus. Essas imagens terrenais conseguem, no máximo, aludir ao Mistério sempre maior, que escapa sempre das configurações limitadas e movediças. Não há como negar a presença de construções teológicas que apresentam imagens de Deus problemáticas, como algumas relacionadas com a teologia da prosperidade: de um Deus que se acomoda à dinâmica da sociedade e às exigências do mercado. Mas há que saber resgatar, mesmo nas frestas de perspectivas que em geral são consideradas problemáticas, os sinais novidadeiros de um Deus portador de vida e dinamizador da existência. Isto também está presente em experiências religiosas comunitárias populares, sejam católicas ou pentecostais, ou de outras tradições religiosas, como a umbanda ou o candomblé. O que é mais essencial, não é se fixar na imagem de Deus, mas na dinâmica provocada pela relação com esse Mistério. E a relação verdadeira com ele, ou com o Espírito que o representa, como já indicou Schilebeeckx, é portadora de um dom libertador, despertando a inabalável coragem de irradiar sempre mais humanidade, por todos os setores da existência.


(Publicado na Revista Internacional de Teologia - Concilium 2014/4)


[1] Pierre SANCHIS, Prefácio, em F. TEIXEIRA e R. MENEZES (Orgs), Religiões em movimento. O Censo de 2010, Petrópolis, Vozes, 2013, p. 13-14.
[2] Peter BERGER, O dossel sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da religião, São Paulo, Paulinas, 1985, p. 149-150.
[3] Leonardo BOFF, O mercado e a religião da mercadoria, Concilium 241 (1992) 3-8.
[4] Ricardo MARIANO, Neopentecostais. Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil, São Paulo, Loyola, 1999, p. 147-186.
[5] Ibidem, p. 157.
[6] Douglas TAVALARO, O bispo. A história revelada de Edir Macedo, São Paulo, Larousse, 2007, p. 207-209.
[7] Leonardo BOFF, O mercado e a religião da mercadoria, p. 4.
[8] Leonardo BOFF, Atualidade da experiência de Deus, Rio de Janeiro, CRB, 1974, p. 38-39.
[9] José SARAMAGO, O fator Deus, Folha de São Paulo – 19/09/2001.
[10] Ibidem.
[11] Christian DUQUOC, “Credo la chiesa”. Precarietà istituzionale e regno di Dio, Brescia, Queriniana, 2001, p. 26.
[12] Edward SCHILLEBEECKX, Religião e violência, Concilium 272 (1997) 171.
[13] Leonildo Silveira CAMPOS, Teatro, templo e mercado. Organização e marketing de um empreendimento pentecostal, Petrópolis/São Paulo/São Bernardo do Campo, Vozes/Simpósio/Umesp, 1997, p. 369 e 375-376.
[14] Jurandir FREIRE COSTA, A lógica oculta da desrazão, Folha de São Paulo – 21/01/1996 (Caderno Mais).
[15] Ibidem.
[16] Lísias Nogueira NEGRÃO, Mercadolicismo. ANPOCS – XXII Reunião Anual – Outubro de 1998:
http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=5162&Itemid=359 (acesso em 7/1/2014).
[17] Bernardo CAMPOS, Da reforma protestante à pentecostalidade da igreja. Debate sobre o pentecostalismo na América Latina, Quito/São Leopoldo, Clai/Sinodal, 2002, p. 72.
[18] Waldo CESAR e Richard SHAULL, Pentecostalismo e futuro das igrejas cristãs. Promessas e desafios, Petrópolis/São Leopoldo, Vozes/Sinodal, 1999.
[19] Ibidem, p. 57.
[20] Ibidem, p. 62.
[21] Ibidem, p. 154.
[22] Ibidem, p. 167.
[23] Ibidem, p. 266-267.
[24] Regina Reyes NOVAES, pentecostalismo, política, mídia e favela, em Victor Vincent VALLA (Org), Religião e cultura popular, Rio de Janeiro, DP&A, 2001, p. 69. Ver também: Cecília MARIZ, Alcolismo, gênero e pentecostalismo, Religião e Sociedade 16 (1994) 80-93; Ronaldo de ALMEIDA, Trânsito religioso, em IHU-Online 169 (2005) 40.
[25] ISER, Censo Institucional Evangélico CIN 1992, Iser, Rio de Janeiro, 1992, p. 7.
[26] Rubem Cesar FERNANDES et al, Novo nascimento. Os evangélicos em casa, na igreja e na política, Rio de Janeiro, Mauad, 1998, p. 140.
[27] João Moreira SALLES (entrevista), Notícias de um cinema do particular, Sexta Feira 8 (2006) 160-161 (entrevista com o corpo editorial e Lilia K.M.Schwarcz).
[28] Cláudia MESQUITA, Santa Cruz (de João Moreira Salles e Marcos Sá Corrêa): o mundo preenchido, Sexta Feira 8 (2006) 178.