sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Canto de Dor e Beleza: a arte de Sinéad O´Connor

 Canto de dor e beleza: a arte de Sínead O´Connor

 

Faustino Teixeira

UFJF/IHU/Paz e Bem

 

 

Nós que trabalhamos com mística, somos, às vezes tomados por experiências que nos tiram do eixo. É o que ocorreu comigo após a morte, antes do tempo, dessa maravilhosa compositora e cantora irlandesa, Sinéad O´Connor, que fez sua travessia no dia 26 de julho de 2023, pouco mais de um ano após o triste episódio da morte de seu filho, Shane Lully, em janeiro de 2022, aos 17 anos. 

 

Era uma cantora que já estava no meu radar há tempos. Eu a acompanhava de longe, mas sem tanta intensidade. Após sua passagem, fui envolvido por emoções impressionantes, que me levaram a aprofundar a sua vida e sua arte. O resultado foi um encantamento do qual não consegui me desvencilhar.

 

Comecei a dedicar-me ao seu estudo, a ouvir os seus discos, a seguir o que havia na internet sobre ela, a ver os vídeos a respeito. Tudo só fez crescer minha grande admiração por sua criação, ousadia, profetismo e delicadeza. Pude agora entender as razões profundas que molduraram sua vida fazendo-a uma artista tão singular e controvertida. 

 

Dentre as cantoras que já ouvi, digo a vocês que Sinéad é a das que mais me impressionaram, pela sua potência de voz, conjugada com uma delicadeza que é exemplar. A porta de entrada que provocou este choque pessoal, foi rever o vídeo com a música que a fez conhecida universalmente: “Nothing Compares 2 U”, de autoria de Prince. Foi o grande auge de sua presença no palco, revelando também toda a sua beleza.

 

Digo que não é só de beleza física que falo, e ela é mesmo linda, mas de uma beleza envolvente que provém de seu mundo interior machucado. No seu canto ela combina, como ninguém, a alternância entre agudos impressionantes com sussurros inacreditáveis[1], criando uma harmonia que encanta. Recorre a uma técnica de inversão no uso do microfone: ela sempre se afasta dele quanto canta mais baixo, e dele se aproxima quando eleva sua voz. Ao contrário do que normalmente vemos.

 

Os temas de suas composições envolvem sempre amor, dores, religião e culpa. Sabemos por sua biografia, que ela foi habitada por uma sensibilidade frágil, de alguém vulnerável, que sofreu abusos violentos na infância e que traz a marca dessa dor em seu canto. Chegou a revelar em certa ocasião que era portadora de bipolaridade[2]. Sua tradicional rebeldia manifestava-se também concretamente por suas atitudes: manter a cabeça raspada e usar roupas bem diversas do usual. Não suportava as pressões para adaptar-se ao estilo convencional e às exigências para uma postura propiciadora do sucesso.  Foi alguém que não deixou de gritar sua dor com o recurso de seu precioso canto e sua originalidade. 

 

Numa entrevista, ela disse que “cantar é um pouco como atuar”. Aquele que se expressa no canto acaba confundindo-se com a canção, deixando-se habitar por ela[3]. No caso de Sinéad, o canto lida com emoções difíceis e pesadas. Sua religiosidade, que é bem diversa da tradicional, tem algo que lembra a dinâmica mística sufi,  para além das superfícies dogmáticas[4], embora guarde também ambiguidades e enigmas. Ela dizia que desde jovem sempre foi muito tocada pelo tema da religião, em seu sentido mais amplo. O grande Mistério para ela era o Espírito Santo, que estava sempre no seu horizonte espiritual[5].

 

A cantora e compositora irlandesa, que nasceu em dezembro de 1966,  teve uma infância bem difícil[6]. O seu pai, Sean O´Connor foi engenheiro, formando-se também em advocacia. Sua mãe, Marie O´Connor, tinha personalidade forte. Eles tiveram cinco filhos, sendo Sinéad a terceira. Os outros eram Joseph O´Connor, que se tornou escritor, além de Eimear, John e Eoin. 

Na dura infância, Sinéad passou por reveses que delinearam sua personalidade, irradiando-se por toda a sua vida. Sua família era católica. Na adolescência difícil, estudou num colégio de freiras, que detestava. Não suportava viver ali um minuto sequer. Depois passou também por um repressivo internato, que lidava com a recuperação de delinquentes juvenis, isso em razão de uma experiência de furto em que esteve envolvida. Sofreu ainda abusos na infância que a marcaram para sempre. Em tempos mais recentes tentou o suicídio após o fracasso de seu último casamento[7].

Sinéad casou-se quatro vezes. A experiência mais duradoura foi com o produtor musical e baterista, John Reynolds, com quem se uniu em 1987, permanecendo com ele até 1991. Os dois tiveram um um filho, Jack Reynolds, nascido em 1987[8].   Casou-se depois com o jornalista Nicholas Sommerlam, com quem ficou entre 2001 e 2004. Em seguida com  Esteve Cooney, em 2010, num casamento que durou apenas oito meses. Ele era músico e produtor, dedicado às canções tradicionais irlandesas (Irish Music). Por fim, com  o psiquiatra e terapeuta Barry Herridge, com quem ficou casada apenas 16 dias, em 2011[9]. Anteriormente, no ano de 2000, aos 33 anos de idade, revelara a uma revista americana, Curve, que era lésbica[10]. A revelação coincidiu com o lançamento de seu álbum Faith and Courage.

A cantora irlandesa teve quatro filhos, e apenas um do primeiro casamento, que foi Jack. Os demais filhos nasceram de outras relações: Roisin (da união com o jornalista irlandês John Waters – nascida em março de 1996), Yeshua ( nascido em 2006, da união com o empresário americano, Frank Bonadio). De sua relação com o músico e produtor irlandês, Donal Lunny, nasceu Shane, em 2004, que aos 17 anos, em janeiro de 2022, colocou um ponto final em sua vida com suicídio, em meio a um processo de tratamento de depressão[11]. Foi um golpe fatal na vida de Sinéad O´Connor. Após o ocorrido, numa sequência de postagens, a cantora compartilhou nas redes sociais uma música de Bob Marley, que dedicou a filho, a quem nomeava como o “bebê de olhos azuis” e a “luz da minha vida”. Tomada por uma dor ininterrupta, a cantora faleceu 16 meses depois da morte do filho, em 26 de julho de 2023, aos 56 anos. 

Sinéad O´Connor teve uma passagem “turbulenta” pelo campo religioso. Desde muito cedo manifestou sensibilidade para o tema, com um traço espiritual que a acompanhou durante toda a sua vida. Foi muito crítica à Igreja Católica, em razão da complacência da Igreja com os abusos sexuais cometidos pelo clero com as crianças e jovens na Irlanda. Ela mesma reconheceu ter sofrido tais abusos. Mais tarde, com uma atitude que causou perplexidade em muitos, foi ordenada sacerdotisa pelo líder da Igreja Tridentina Latina, o bispo excomungado Michael Cox. Posteriormente, em outubro de 2018, anunciou sua conversão ao Islã, adotando o nome de Shuhada´Davitt. Na vida artística, porém, manteve seu nome de nascimento. 

Ao longo de sua carreira, Sinéad O´Connor gravou dez discos em estúdio: Lion  and the Cobra (1987), que foi dedicado à sua mãe; I Do Not Want What I Haven´t Got (1990); Am I Not Your Girl? (1992); Universal Mother (1994); Faith and Courage (2000); Sean-Nós Nua (2002); Throw Down Your Arms (2005); Theology (2007); How About I Be Me (And You Be You?)  (2012); I´m Not Bossy, I´m The Boss (2014)[12]. Além desses álbuns, houve compilações, como as de 1997, 2003 e 2005[13]. A cantora irlandesa estava trabalhando num novo álbum de inéditas, bem como preparando-se para uma turnê que incluiria a Oceania, a Europa e os Estados Unidos. A ideia era lançar o trabalho dez anos depois de seu último álbum, que foi em 2014. A morte interrompeu seus planos.[14].CNUAR LENO

 

Ao dedicar-me a ouvir com cuidado suas canções minha reação é de grande emoção e atenção silenciosa. São maravilhosos os seus dois primeiros trabalhos: Lion and the Cobra (1987) e I Do Not Want What i Haven´t Got (1990). O primeiro alcançou um grande sucesso em âmbito internacional, mas foi com o segundo álbum, de 1990, que a irradiação aconteceu de forma extraordinária, tendo a gravadora vendido mais de sete milhões de cópias em todo o mundo. No álbum estava presente a canção de Prince que consagrou a cantora: Nothing Compares 2 U, que foi considerada a número um do mundo em 1990 pelo Bilboard Music Awards. O vídeo com a canção rodou o mundo, com o foco concentrado no lindo rosto da cantora irlandesa[15].

 

O título do primeiro trabalho relaciona-se com uma passagem do Salmo 91: “Poderás caminhar  sobre o leão e a víbora, pisarás o leãozinho e o dragão” (Sl 91, 13). Ali já percebemos a singularidade de uma intérprete peculiar, que harmoniza melancolia e revolta. 

 

A força expressiva da cantora, e seu grito de protesto percorrem as letras desse primeiro trabalho, como na canção Mandinka

 

“Não conheço nenhuma vergonha, não sinto nenhuma dor
Não consigo
Não conheço nenhuma vergonha, não sinto nenhuma dor
Não consigo ver a chama
Mas conheço os mandinka”[16].

 

E também em outra canção, Just Like U Said It Would b

 

            “Vou andar no jardim

                  E sentir a religião interna

                  Eu vou aprender a correr com os meninos grandes

                  Eu vou aprender a mergulhar e nadar”.

 

Estamos diante do grito de alguém que aspira por uma atmosfera diversa, como na letra de Troy:

 

                  “Você se erguerá

Você retornará

A fênix vinda da chama

Você aprenderá

Você se erguerá

Você retornará

Por você ser o que é

Não há outra Troia

Para você queimar”.

 

O trabalho vem envolvido por dinâmica de um misticismo pontuado por fragores de new age. Percebemos  Igualmente o interesse da cantora pelos temas da música pop e das canções celtas. O passado da música tradicional irlandesa já se anuncia vivo.

 

No segundo álbum, ela alcança o auge de interpretação na canção de Prince, Nothing Compares 2 U, que ela faz vibrar pensando em sua mãe, com quem teve um relacionamento difícil na infância:

 

“Todas as flores que você plantou, mamãe, no quintal     

                  Todas morreram quando você se foi, oh oh oh

Eu sei que viver com você, baby, foi duro às vezes

Mas estou disposta a fazer outra tentativa

Nada se compara, nada se compara a você”.

 

Com sua mãe sempre presente, Sinéad relata as dificuldades de seu caminho, mas também o empenho na busca da liberdade e da felicidade, como na letra da canção I Do Not Want What I Havent Got:

 

            “Estou caminhando através do deserto

E não tenho medo, embora esteja quente

Tenho tudo o que pedi

E não quero o que não tenho

 

Aprendi isso com a minha mãe

Veja como ela me fez feliz

Pegarei esta estrada mais além

Apesar de não saber aonde ela me leva

 

Tenho água para minha jornada

Tenho pão e tenho vinho

Não terei mais fome

Pois o pão da vida é meu”.

 

O ano de 1992 foi capital na vida da cantora, quando polêmicas severas envolveram a sua vida, com repercussões no seu trabalho. Foi o ano que aconteceu uma tensão com a igreja católica, quando num popular programa de televisão americana, após cantar uma música de Bob Marley (“War”), ela rasgou uma foto do papa João Paulo II. Foi a forma que encontrou para denunciar o silêncio da igreja católica com respeito ao abuso sexual do clero contra as crianças inocentes. 

 

Movida por profunda revolta, ela sublinhou que o “verdadeiro inimigo” era outro. Manifestava com sua ira, uma reação de algo que ela mesma tinha sofrido na infância. Vale registrar, que um tempo depois, já no pontificado de Bento XVI, ocorreu a primeira autocrítica da igreja católica contra a pedofilia exercida pelo clero. Falo aqui da carta de Bento XVI aos católicos da Irlanda, de 19 de março de 2010, quando pela primeira vez na história um papa pede publicamente perdão pelos abusos sexuais praticados pro muito tempo, sem qualquer reconhecimento[17].

 

Após aquele ano crítico, de 1992, a cantora lançou outros trabalhos: “Universal Mother” (1994), seu quarto disco de estúdio, recebido de forma amena. No álbum, algumas belas canções de ninar, demonstrando um momento de felicidade. Um destaque particular para a versão de “My Darling Child”, de Kurt Cobain, que tinha tirado a vida um pouco antes do lançamento desse disco de Sinéad; e também Faith and Courage (2000), quando captamos a presença de um influxo Rastafari. Em sua vida estava ocorrendo uma passagem para um momento de maior influência da vertente experimental e religiosa.

 

Um dos mais belos álbuns de Sinéad O´Connor, a meu ver, está no seu sexto CD (Sean-Nós Nua), de 2002. Aqui encontramos um trabalho de marca bem pessoal e foco regional, onde a cantora recupera lindas canções tradicionais irlandesas, de “uma Irlanda medieval, daquelas dos filmes e dos clássicos da literatura”. Talvez seja o seu álbum mais fortemente marcado pelo influxo new age. 

 

Há canções de uma delicadeza singular, como Peggy Gordon, que traz em sua letra reverberações de uma linda visão de amor, que nos faz lembrar os poemas sufis:

 

                  “Eu queria estar em algum vale solitário

                  Onde as mulheres não pudessem ser encontradas

                  Onde os passarinhos cantassem sobre os galhos

                  E em cada momento um som diferente”.

 

Ou ainda, The Singing Bird:

 

            “Se eu pudesse atrair meu pássaro canoro

                  De seu próprio ninho aconchegante

Se eu pudesse pegar  o meu pássaro cantor

Eu o aqueceria no meu peito.

Pois não há pássaro que cante tão doce.

 

São passagens de um lirismo único, como igualmente na canção The Moorlough Shore:

 

“Onde a prímula sopra e a violeta floresce
Onde a truta e o salmão brincam
Com minha linha e anzol, senti prazer
em viver meus dias de juventude”.

 

Sublinho um momento forte do trabalho, que é o dueto que a cantora faz com Christy Moore, tradicional cantor folk. Trata-se da longa balada, de 11 minutos, intitulada “Peggy Gordon”, onde se relata a força de um amor puro que atravessa as escadas com uma energia interior que é única, e tudo para alcançar o amor:

 

“E então Lord Baker correu para sua amada

e de vinte e um degraus, ele fez apenas três

E com seus braços  envolveu a filha da Turquia

e beijou seu amor verdadeiro com maior carinho”

 

Sinéad O´Connor, no folheto interno que acompanha o CD, fala entusiasmada sobre o significado desse disco tão especial, que traz lá de trás da tradição irlandesa as palavras mais nobres do amor:

 

“Muitas das músicas deste disco são histórias de amor duradouro e incondicional, amor que não pode ser apagado por fogueiras ou enchentes. Elas são dores maravilhosamente nascidas de pessoas reais, que realmente existiram. Ensinam que a dor pode se transformar em algo positivo e belo quando é cantada, e assim a dor pode ser curada cantando, pois as canções são mágicas (...). Considero todas essas canções orações mágicas e, portanto, de maneira nenhuma tristes.”

 

Nesse sexto álbum, no qual me detive mais longamente, destaco em particular a fantástica banda que acompanhou a cantora nas gravações, com destaque para o baixista Bernard O´Neil, o guitarrista Dónal Lunny, o flautista Rob O Geibheannaigh, também com presença no piano e banjo, e da encantadora Sharon Shannon no acordeão.

 

Outros trabalhos se sucederão, como “Throw Down Yor Arms”, de 2005, um álbum de estúdio gravado na Jamaica, de forte presença reggae, com um contagiante ritmo. Na sequência, o álbum duplo Theology, de 2007. É o trabalho mais religioso da compositora irlandesa. Como destaque, a canção “We People Who Are Darker Than Blue”.

 

Em trabalho produzido pelo ex marido, John Reynolds, Sinéad volta aos estúdios para gravar o álbum How About I Be Me (And You Be You?), em 2012. Há nesse trabalho o retorno a um aroma presente nos primeiros tempos da cantora, e convoca para trabalhar nele alguns dos mesmos artistas que trabalharam naquele início. É uma busca de reconexão da cantora com o seu passado. Como disse um autor em resenha, trata-se de um álbum “quase vulnerável, de religiosidade frágil e pronta pra remexer feridas, seja abuso de remédios, problemas familiares e profissionais e os abusos sexuais que perpassam o universo da irlandesa”. 

 

O último álbum, I´m Not Bossy, I´m The Boss, é de 2014 e a cantora apresenta-se com uma nova aparência, com destaque para os cabelos. O trabalho mantém-se em linha de continuidade com o anterior, ainda sob os cuidados de John Reynolds[18], que busca realçar a presença de uma cantora mais sintonizada com aquela dos anos 1990, envolvida pelo pop e pelas guitarras. 

 

Além dos diversos álbuns aqui comentados brevemente, aconselho também o DVD Live in Dublin, de 2002, com um excepcional documentário envolvendo as gravações do sexto álbum da cantora. Há ainda um recente documentário, muito rico, sobre a trajetória da compositora e cantora, de autoria de Kathryn Ferguson, cujo título é “Nothing Compares” (2022). Ele ainda está inédito no Brasil, e seu propósito é  acompanhar detalhadamente a complexa trajetória da artista desde seus 23 anos de idade.

 

Concluindo, por toda a riqueza que acompanha essa nebulosa e enigmática trajetória de Sinéad O´Connor, independentemente das avaliações que se sucederão, creio que vale muito a pena debruçar-se sobre as melodias que acompanham os diversos álbuns e DVDs dessa cantora e compositora tão especial e singular. Será uma oportunidade única de apreciar uma das mais impressionantes vozes femininas que eu pude conhecer nas minhas audições musicais, bem como crescer espiritualmente banhado pelas cores.

 

 

 



[1]Podemos observar isso na impressionante interpretação das canções Molly Malone e Peggy Gordon, que se encontram no álbum: Sean-Nós Nua (2002).

[3]No documentário “The Song of Hearts de Site”, que está como extra no extraordinário DVD Sinead O´Connor. Goodnight, thank you you´ve been a lovely audience. Live in Dublin, 2020.

[4]No folheto que acompanha o seu CD Universal Mother (1994), dedicado aos rezadores da Irlanda, há uma bela imagem de uma mulher em gesto rodopiante como o dos dervixes sufis. 

[5]Documentário “The Song of Hearts de Site”, no DVD Live in Dublin, de 2020.

[6]Para um apanhado preciso sobre sua trajetória, aconselho o documentário de Kathryn Ferguson, “Nothing Compares”, de 2022, bem como o livro de sua auto-biografia, de 320 páginas, Sinéad O´Connor. Remembranzas: Escenas de una vida complicada, publicado em junho de 2021pela editora Libros del Kultrum.

[8]Foi quem possibilitou à Sinéad realizar seu sonho de ser avó, isso em julho de 2015.

[11]Sinéad optou por fazer um funeral hindu para o seu filho, dado o apreço que ele tinha a tal tradição.

[12]Para a minha análise foi de grande utilidade este trabalho de Renan Guerra, publicado em 08/07/2014: A discografia comentada: Todos os discos de Sinéad O´Connor: 

http://screamyell.com.br/site/2014/07/08/discografia-comentada-sinead-oconnor/(acesso em 08/09/2023).

[13]So Far... The Best of Sinéad O´Connor (1997), She Who Dwells in the Secret Place of the Most Shall Abide Under the Shadow of the Almighty (2003), Collaborations (2005), dentre outras. 

[16]Já podemos observar nessa canção, o grito em favor da recuperação da dignidade das pessoas e o desejo de liberdade, que vai ser um grande mote na vida da cantora.

 

[17]Marco Politi. Joseph Ratzinger, crisi di un papato. Roma-Bari: Laterza, 2011, p. 219-220.

[18]Que já a acompanhava desde o primeiro álbum, como um dos músicos, na bateria.

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

 A dimensão contemplativa de Tomás de Aquino (versão ampliada)

 

Faustino Teixeira

UFJF / IHU / Paz e Bem

 

 

Na terça feira, 18 de julho de 2023, comemorou-se o 700º aniversário da canonização de São Tomás de Aquino, no pontificado do papa João XXII (1323). É o início do tríplice jubileu do Aquinate, que também comemora em 2024 o seu 750º anos de morte e em 2025, o 800º aniversário de seu nascimento. Os frades dominicanos da Província de Tolouse estão envolvidos na publicação de uma nova tradução francesa da Suma Teológica.

 

Tomás de Aquino é o único teólogo da Igreja que o Vaticano II reconheceu explicitamente como “mestre”[1]. Foi também proclamado doutor da Igreja por Pio V, em abril de 1567.

 

Tomás de Aquino nasce em Roccasecca, na comuna italiana da região do Lazio, em torno de 1221[2]. Desde sua infância frequenta a vizinha abadia de Monte Cassino, onde vem acolhido como oblato com votos não definitivos, recebendo ali suas primeiras instruções. Permanece em Monte Cassino dos cinco aos quatorze anos, num ritmo marcado pelo mote beneditino: ora et labora(pela contemplação e ação).

 

Isso explica, em parte, um traço profundamente marcado pela dinâmica contemplativa. Era igualmente um teólogo que vivia sob a égide de grande humildade: 

 

“Era um homem de uma extrema humildade, o que significa que era inteiramente esvaziado de si. O que lhe interessava não era o seu eu, mas a verdade, quer de Deus, quer das coisas mesmas. Seu eu era apenas um Da-sein: espaço onde a realidade fazia sua aparição e revelava sua verdade”[3].

 

Com respeito à sua vida interior, era alguém muito discreto. Entendia que o estudo por si mesmo “não dificulta a piedade, antes, a favorece”[4].

 

Depois da experiência em Monte Cassino foi atraído para a Ordem dos Pregadores (Dominicanos), vindo a estudar em Nápoles, em 1239[5]. Foi para Nápoles, apesar da resistência de sua família, ligada à pequena aristocracia feudal, que não desejava que ele se tornasse um mendicante, um dominicano: chegou a ser sequestrado pela família por um ano e meio na fortaleza de Rocasseca. Nesse período ele decorou toda a Bíblia, bem como os quatro livros das Sentenças do Mestre Pedro Lombardo[6].

 

Na ocasião, “o movimento mendicante representava o que havia de mais avançado e contestatório na época. Com efeito, eles montaram um esquema de vida que era o oposto do feudalismo. Em contraposição aos grandes mosteiros no campo, optavam por viver em casinhas populares na cidade. O movimento mendicante, 

 

“em vez de se dirigir aos nobres, pregavam ao povo miúdo; em vez dos ricos benefícios, assumiam a pobreza mais estrita; e em vez da estrutura hierárquica de organização religiosa adotaram o ideal de fraternidade e participação de todos nas decisões”[7].

 

A proposta significava naquele tempo uma perspectiva extremamente popular e revolucionária, a ponto de chegar a esvaziar as paróquias, como lamentava o papa Inocêncio IV, em 1254[8], deixando os sacerdotes meio abandonados “como pássaros solitários, sem o consolo dos paroquianos e sem as ofertas costumeiras”[9].

 

Há que recordar que na ocasião o estudo de Aristóteles era vetado em Paris (tanto a filosofia natural como a metafísica de Aristóteles). Em Nápoles, ao contrário, não havia impedimento para isso. Ali o acesso a Aristóteles era livre[10].

 

Tomás de Aquino teve a coragem de afrontar “o desafio cultural do tempo – o aristotelismo – no interesse da fé e o fez de modo exemplar”[11]. Como aponta Clodovis Boff, “foi o movimento mendicante, aberto aos novos ventos da história, que levou Tomás a se abrir a Aristóteles”[12].

 

De forma extraordinária, Tomás “se pôs na crista da onda de seu tempo”, sem perder o ardor de bom combatente, como demonstrou com grande clareza em sua Suma contra os Gentios, redigida “sobre o fundo da presença árabe na Espanha e da sedução que a cultura greco-árabe significava para os espíritos da época”[13].

 

Os dominicanos, na sede de conhecimento, buscam novos caminhos de reflexão em Paris, que era centro intelectual naquele tempo. Como dizia o papa Gregório IX, Paris era “o forno onde cozinha o pão de toda a cristandade”.

 

Como pensador atento ao ritmo do real, Tomás de Aquino colocou-se firme na defesa da criatura. Foi com ele que se firmou a teologia como ciência, numa impressionante ruptura epistemológica para o seu tempo. Dizia que “rebaixar a criatura era rebaixar o criador”, como indicou várias vezes em sua Suma contra os Gentios, sobretudo nos capítulos 3 e 69 do livro II[14].

 

Defendia com vigor a singularidade da razão filosófica, que para ele não se contrapunha à teologia. Para ele, conjugar a teologia com a filosofia não era misturar água com vinho, mas “transformar a água em vinho”[15]. Tomás olhava sempre “para os argumentos e não para as autoridades”[16]. Não via, em momento algum, uma dicotomia entre Deus e homem, Fé e Razão, Providência e Liberdade, Teologia e Filosofia[17].

 

Ele foi intrépido nesse confronto com Aristóteles. O clima cultural dominante era avesso a tal iniciativa. Havia na ocasião suspeita contra isso: “Tomás de Aquino não teve medo de suscitar a oposição dos tradicionalistas representados pelos augustinistas: monges e franciscanos. Estes temiam pela perda de identidade da fé cristã”[18]. Também o papa Gregório IX, em sua carta aos teólogos, de 07 de julho de 1228, chegou a mencionar a condenável “teologia filosofante”.

 

O grande pensador dominicano não estava inventando novidades, mas simplesmente servindo-se do apoio da razão aristotélica para servir à fé. A originalidade do Aquinate encontra-se

 

“na síntese que conseguiu realizar. Seu biógrafo, Guilherme de Tocco, refletiu o susto da época frente à originalidade do pensar tomasiano: ´Frei Tomás colocava em seus cursos problemas novos, descobria novos métodos, empregava um novo entrelaçado de provas. A escutá-lo ensinar assim uma nova doutrina, com argumentos novos, ninguém podia duvidar que Deus, pela irradiação dessa nova luz e pela novidade desta inspiração, lhe tivesse dado ensinar, por palavras e escritos, novas ideias`”[19].

 

As reflexões novidadeiras de Tomás de Aquino encontravam resistências. Três anos depois de sua morte, várias de suas proposições foram condenadas por teólogos de Paris e Oxford, tendo encontrado defesa no grande Alberto Magno, que veio a pé de Colônia a Paris para defender o seu discípulo contra seus adversários.[20].

 

Com Tomás de Aquino aprendemos, e isso é fundamental, que “não existe, em princípio, objeto ou acontecimento algum que não possa ser teologizado. Tudo é teologizável”. Como postulado ontológico fundamental firma-se a ideia de que o não-teológico pode “ser susceptível de se tornar teológico”[21]

 

Prosseguiu seus estudos sob a direção de um dos grandes mestres de teologia da ocasião, Alberto Magno. Sua aula inaugural, na Sorbone, como mestre de teologia, ocorreu em 03 de março de 1256, quando tinha apenas 31 anos. Não se falava em teologia na ocasião, mas sacra doctrina. O tema de sua primeira aula expressava o toque místico-poético: “Rigans montes de superioribus tuis” (“Do alto de tuas moradas tu irrigas as montanhas” - do Salmo 103, 13)[22]. Para Tomás de Aquino o estudo não consistia impedimento algum para a piedade, mas era algo que a favorecia e irrigava. 

 

A Suma Teológica não vinha compreendida como um texto específico das aulas, mas como subsídios fundamental “para uma leitura mais inteligente da Palavra de Deus”[23]. A utilização desta obra como texto acadêmico só vai ocorrer posteriormente, a partir do século XVI.

 

A produção de Tomás de Aquino é imensa: ultrapassa a oito milhões de palavras[24]. Era um grande mestre que conseguia, como poucos, integrar a teologia com a piedade. Não há dúvida sobre a conexão entre a teologia e a piedade na vida e obra de Tomás de Aquino, como recorda com acerto Clodovis Boff. O estudo e a oração faziam parte de seu cotidiano e da edificação de seu labor teológico. Numa das revelações feitas por seu secretário, Frei Reginaldo de Piperno, ele indica a força da oração da vida do Aquinate:

 

“Ele devia menos seu saber ao esforço de seu espírito do que ao poder de sua oração. Todas as vezes que queria estudar, discutir, ensinar, escrever ou ditar, recorria, primeiro, ao segredo da oração, chorando diante de Deus para descobrir a verdade dos segredos divinos. E, quando estava na incerteza, punha-se a rezar, voltando iluminado da oração”[25].

 

Na visão correta de Clodovis Boff, que também concordo, Tomás de Aquino é passagem obrigatório para todo teólogo. Trata-se de um teólogo imprescindível, de passagem, mas não de destino[26]. Ele deixa em aberto janelas e portas para reflexões novidadeiras. Há que repetir, sem se cansar, que ele tinha um profundo apreço pela razão no exercício da teologia. Ganha-se sempre em conviver e medir-se com os grandes espíritos, como lembra Clodovis Boff. Ganha-se em inteligência, mas também em humildade: “É sempre com a sensação de força e grandeza que se fecha uma obra de Tomás de Aquino”[27].

 

Sua grande obra de referência é a Summa Theologica, iniciada em 1265 em Roma, mas não finalizada em razão de uma importante visão de Deus ocorrida em 06 de dezembro de 1273, na qual sentiu-se convocado a parar de escrever e de ensinar. É o que nos recorda a tradição hagiográfica. 

 

Como recorda Clodovis Boff, “no domingo da Paixão, em 26 de março de 1273, no último ano de sua vida, justo enquanto rezava a missa, a que assistiam muitos cavaleiros, comoveu-se às lágrimas e entrou em êxtase por um tempo tão prolongado que teve de ser sacudido para que continuasse a celebração”[28]

 

No mesmo ano, no dia 06 de dezembro, foi acometido por uma profunda crise espiritual e também psicológica (esgotamento). Era o dia da festa de São Nicolau. Enquanto celebrava a missa na capela daquele santo, teve um êxtase, acompanhado de lágrimas abundantes, a ponto de não poder servir à missa que veio em seguida. Ele subiu ao quarto “e recolheu num armário todos os instrumentos de trabalho. Deixou completamente de estudar e escrever. Retirou-se à cela, onde ficava deitado, orando quando não chorando”[29].

 

Seu secretario, Frei Reginaldo, ainda tentou convencê-lo a retomar o trabalho, mas ele recusou. Na ocasião já estava concluindo o tratado da penitência em sua Suma Teológica. Foi quando então confessou ao secretario: “Frei, não posso mais escrever. Não posso. Diante do que me foi revelado, tudo o que escrevi me parece palha”. 

 

A partir de então o Aquinate caiu num apofatismo total: 

 

“Chegara à última linguagem do mistério: a linguagem da não linguagem, que é quando ´a palavra se faz visão` (Rumi) e a visão, silêncio. Esgotado, vai repousar no castelo da irmã, a condessa Teodora. Era seu último natal”[30].

 

Ao final da vida, Tomas alcançou um grande feito na visão dos grandes místicos medievais, e muito apreciado por eles,  ou seja, o “dom das lágrimas”[31]. No final de janeiro de 1274, último ano de sua vida, começa sua longa viagem em direção a Lyon (França) onde em maio abririam-se os trabalhos do  de um Concílio ecumênico, que se propunha a união dos católicos com os cristãos gregos. Foi quando então caiu gravemente enfermo, tendo que se hospedar num mosteiro vizinho: a abadia cisterciense de Fossa Nova. O seu estado se agrava. Mesmo no seu leito de morte ainda comentou, a pedidos dos monges, o Cântico dos Cânticos, que um dos mais belos e místicos livros do Primeiro Testamento. Foi sua derradeira atividade teológica[32]. Ele morre no dia 07 de março de 1274, aos 49 anos, lúcido e sem agonia, com as mãos juntas em oração[33].

 

Mesmo não sendo um grupo tão numeroso como o dos franciscanos, os dominicanos tiveram um papel importante na espiritualidade e na mística da Idade Média tardia.  Temos duas referências importantes nesse campo, como as figuras de Alberto Magno (cerca de 1200 a 1280) e Tomás de Aquino (1225-1274). Como mostrou Bernard McGinn, “a doutrina deles foi fundamental para a poderosa corrente mística que surgiu durante o século XIV na Alemanha na pregação e nas obras de Mestre Eckhart”[34].

 

As reflexões sobre Deus na Suma Teológica são muito importantes para a compreensão da visão de Deus em Tomás de Aquino. Cito aqui apenas uma reflexão feita por Tomás em sua grande Suma, em torno da Questão XIII, que trata dos nomes divinos. Tomás discute um tema clássico entre os místicos: “Parece que nenhum nome convém a Deus”. É o que também dizia Dionísio o Areopagita, místico que  esteve igualmente no radar de Tomás de Aquino. 

 

O Areopagita, em sua Teologia Mística[35], no capítulo terceiro, diz que “Quanto mais olhamos para cima, mais os discursos se contraem pela contemplação das coisas inteligíveis”. Mas, como diz o místico, estamos sempre envolvidos numa “treva superior”[36]. É o que também vai dizer João da Cruz num de seus clássicos poemas: 

 

“Quanto mais alto se ousa, menos se entende”; ou ainda “O que ali chega deveras de si mesmo desfalece”[37].

 

Nenhuma narrativa pode traduzir o significado de Deus; nenhum nome, verbo ou pronome, pois Deus é desprovido de qualidade ou acidente. Ele não pode ser expresso ou nomeado por ninguém[38]. Nós acessamos Deus por meio das criaturas, daí Mestre Eckhart distinguir entre o Deus das Criaturas e a Deidade[39]. Esta última está acima do Deus pronunciado pelas criaturas.  Igualmente na Suma contra os Gentios, Tomás nos lembra que “Tudo aquilo que é dito acerca de Deus, e que a razão humana em si mesma é incapaz de descobrir, não deve ser de imediato considerado como falso, como acreditaram os maniqueus e a maior parte dos infiéis”[40].

 

A teologia mística de Tomás de Aquino ocupa um lugar mais restrito que a de Alberto Magno, com seu “dionisianismo intelectivo” e sua ênfase na natureza sobrenatural da teologia mística, mas é igualmente importante. Como lembra McGinn, É difícil acessar a mística do Aquinate em razão dele não falar de si mesmo ou de sua vida interior. O que sabemos sobre isso não passa de conjecturas, mas é certo que ele teve uma experiência de Deus rica e saborosa. De fato, “o cuidado com que Tomás trata tantas práticas fundamentais da espiritualidade cristã, tais como a oração, fornece comprovação dos aspectos especulativos e práticos de sua doutrina espiritual”[41].

 

A relação entre contemplação e ação é um dos pilares de sua refexão espiritual. É clássica a frase de Tomás: contemplata aliis tradere. Isso significa contemplar e dar aos outros os frutos da contemplação. O conhecimento de Deus, ou a busca de tal conhecimento, tem uma clara incidência na dinâmica da caridade. Mesmo defendendo a superioridade da vida contemplativa sobre a vida ativa, Tomás reconhece que “as obrigações do amor cristão muitas vezes tornam necessário e mais meritório dedicar-se à ação do que permanecer na contemplação”[42].

 

Não há, em hipótese alguma, uma desconsideração em Tomás pela vida ativa, que em casos concretos pode mesmo prevalecer. Gustavo Gutiérrez, em sua clássica obra sobre a teologia da libertação, enfatiza o traço tomista que sustenta a ideia de que a graça não suprime ou substitui a natureza, mas a aperfeiçoa. Ele abre assim, como lembra Gustavo, “as possibilidades de uma ação política mais autônoma e desinteressada”[43].

 

O que gostaria de lembrar aqui nesta reflexão é o traço contemplativo de Tomás de Aquino, e em particular a sua visão de Deus. Não há dúvida sobre o impacto em sua obra de uma teologia negativa ou apofática. Em sua doutrina sobre Deus há uma ênfase importante no dado da “simplicidade da natureza divina”. 

 

É algo que nos faz lembrar da reflexão de Eckhart em seu sermão alemão 2, quando fala da presença de uma força na alma que flui do Espírito, inteiramente espiritual. Trata-se de uma força que revela o que há de incandescente e ardente em Deus. Nessa força “a alegria é tão grande, o deleite tão incomensurável, que ninguém jamais pode expressá-lo exaustivamente ou revelá-lo”[44]. É uma força que habita o “burgozinho” da alma, que é simples e elevada, e que permanece obscurecida mas ativa. Tal centelha interior “é livre de todos os nomes e despida de todas as formas”. Ali, sim, emerge o que há de “florescente e verdejante” de Deus[45].

 

O influxo dionisíaco sobre Tomás de Aquino é claro, ao firmar o conhecimento de Deus com base na negação, isto como uma precisa estratégia linguística. Mesmo quando falamos sobre a bondade de Deus, sabemos que não é ela que alcançamos, mas insere-se numa dinâmica de balbucio que apenas nos aproxima da fresta de luz que ela envolve. A bondade de Deus não é aquela “que podemos predicar”. Dizia também Eckhart em outro sermão alemão, o de número 83, lembrando um mestre pagão, que “aquilo que compreendemos ou dizemos a respeito das causas primeiras, isto somos mais nós mesmos do que a própria causa primeira”[46].

 

Não há, pois, verdade quando dizemos que “Deus é bom”, ou  que “é sábio”, ou “melhor”. Nada disto pode ser aplicado a Deus, “pois ele está elevado acima de tudo”, de todas as nossas representações, que se mostram sempre movediças e imprecisas diante do Mistério Maior. Para Eckhart, o que define Deus é uma “nadidade sobreessencial”[47]

 

Na visão de Tomás de Aquino, não há como compreender Deus dada a sua infinitude. Nem a razão natural, as visões proféticas ou mesmo as mais altas luzes de fé processam o acesso ao Mistério, que permanece obscurecido e incógnito. 

 

Em sua obra De Veritate, Tomás sublinha que “a visão dos bem-aventurados não é distinta da visão de alguém ainda nesta terra conforme o ver mais ou menos perfeito, mas mediante a diferença de ver e não ver”[48]. Como mostra Aquinate, o contemplativo é envolvido por um dom especial, através da graça, que favorece uma aproximação positiva ao Mistério. 

 

É algo que reflete uma “graça gratuita”, como ocorre por exemplo no êxtase. O que temos no tempo, como nos lembra Paulo na Primeira Carta aos Coríntios, é uma posse contemplativa imperfeita, “mediante o espelho do enigma” (1 Cor 13,12). 

 

A contemplação escapa ao domínio propriamente intelectual, estando inserida no âmbito da fé e da “simples consideração da verdade”. Ela é sobretudo um “dom de Deus”. O seu campo não é o discursivo, mas o experiencial, e reflete a dinâmica do coração. Ao contemplativo é favorecida a experiência de “saborear a suavidade” da vontade de Deus. 

 

O centro da doutrina do Aquinate, como assinala McGinn é “o conhecimento místico como uma forma de saber experiencial e conatural fundado na união com Deus por meio da caridade e conduzindo à recepção do dom da sabedoria divina”[49].

 

Para Tomás de Aquino, como também para Alberto Magno, a melhor forma de acesso ao conhecimento de Deus é a “ignorância”, daí o traço essencial da humildade para todo buscador. Essa “ignorância” é um passo singular de participação na sabedoria divina. Conhecer a Deus, “é ser iluminado pela própria profundeza da sabedoria divina, de que não somos capazes de investigar”[50].

 

Junto com o êxtase, Tomás sublinha igualmente o traço do “arrebatamento” no campo da experiência mística. A alguns vem concedido essa experiência de ser tomados por Deus: aqueles que são “totalmente arrebatados da ação dos sentidos, de modo que a alma inteira é reunida dentro da visão da essência divina”[51]

 

Há aqui outra referência bíblica singular, retirada de 2 Cor 12,2-5, quando Paulo relata que foi arrebatado até o paraíso, ouvindo então as “palavras inefáveis que não é lícito ao homem repetir”. Como indica Mc Ginn, a doutrina de Tomás de Aquino sobre a contemplação encontra-se “entre as mais sistemáticas na história do pensamento cristão”, servindo-se de ponto de arranque fundamental para as abordagens teológicas em torno da questão mística[52].

 

A visão neoescolástica do Aquinate dominou a teologia católica entre os anos de 1880 a 1960, e sua perspectiva sobre a contemplação “permanece um ponto alto da reflexão doutrinal sobre a mística cristã”[53].

 

Tomás foi grande inspirador do teólogo Karl Rahner que a ele dedicou um importante texto de seus escritos teológicos, isso em 1974, em torno aos problemas concernentes à incompreensibilidade de Deus segundo Tomás de Aquino. Com base em Aquinate, Rahner sublinha que Deus, em todo lugar, permanece como algo incompreensível a todo intelecto finito e criado, inclusive “para os anjos e para os homens beatos, e também para a alma criada do Homem-Deus”. Também Jesus, participa da “bem-aventurada ignorância de Deus”. Jesus, enquanto humano, na sua experiência de fé, encontra-se sempre diante deste “mistério inexorável”, também para ele[54].

 

Jesus Cristo, e nossas narrativas sobre ele, convocam-nos para a rejeição à qualquer “encarceramento na aparência”. Estamos todos, incluindo Jesus feito homem, distanciados do Inominado, e nossas representações a respeito são sempre movediças. A figura de Jesus é também algo que nos orienta para Outrem, “cujo nome é indizível”. Como mostra o dominicano Christian Duquoc, “a singularidade de Jesus, o Cristo, não abole as outras singularidades, ela as aponta como fragmentos potenciais de um todo inacabado, e inacabável para nós”[55].



[1]COMPÊNDIO do Vaticano II. Constituições, decretos, declarações. 6 ed.  Decreto Optatam Totius (OT), 16,3. Petrópolis: Vozes, 1968 ( Decreto sobre a formação sacerdotal).

[2]A data correta é controvertida.

[3]Clodovis Boff. União de teologia e piedade no pensamento e na vida de São Tomás de Aquino – discurso de paraninfo para a formatura dos Bacharéis em Teologia de 2011, da PUCPR. Revista Eclesiástica Brasileira, v. 72, n. 286, 2012, p. 438.

[4]Ibidem, p. 442.

[5]Na Faculdade das Artes (que poderíamos hoje chamar de Ciências e Letras).

[6]Clodovis Boff. Santo Tomás de Aquino e a Teologia da Libertação. Revista Eclesiástica Brasileira, v. 41, n. 163, setembro de 1981, p. 429.

[7]Ibidem, p. 438.

[8]Ibidem, p. 438.

[9]Ibidem, p. 438.

[10]Alessandro Ghisalberti. Tommaso D´Aquino. In: Umberto Eco & Riccardo Fedriga (a cura di). Storia della filosofia3. Milano: Grupo Editorialr L´Espresso, 2015, p. 170.     

[11]C.Boff, São Tomas de Aquino..., p. 426.

[12]Ibidem, p. 439.

[13]Ibidem, p. 439.

[14]Ibidem, p. 436.

[15]Ibidem, p. 430-431.

[16]Ibidem, p. 437.

[17]Ibidem, p. 437.

[18]Ibidem, p. 435.

[19]Ibidem, p. 435.

[20]Ibidem, p. 435.

[21]Clodovis Boff. Teologia e prática. Teologia do político e suas mediações.  Petrópolis, Vozes, 1978, p. 85. Argumento trabalhado por Tomas de Aquino em sua Suma Teológica I, q. 1, a.3.

[22]Clodovis Boff. União de teologia e piedade..., p. 442.

[23]Clodovis Boff. União de teologia e piedade..., p. 441

[24]William J. Collinge. Thomas D´Aquin (1224-1225-1274). In: Allan D. Fitzgerald (Ed). Enciclopédie Saint Augustin, CERF, 2005, p. 1411

[25]Clodovis Boff. União de teologia e piedade..., p. 443.

[26]Clodovis Boff. Santo Tomás de Aquino..., p. 428.

[27]C. Boff. Santo Tomas de Aquino..., p. 431.

[28]C.Boff, discurso..., p., p. 444.

[29]Ibidem, p. 446.

[30]Ibidem, p. 446.

[31]C.Boff, discurso..., p. 445.

[32]Ibidem, p. 446-447.

[33]Ibidem, p. 447.

[34]Bernard McGinn. A colheita da mística na Alemanha Medieval(1300-1500). São Paulo: Paulus, 2022, p 30.

[35]Traduzida em português por Marco Lucchesi, com um pequeno ensaio meu – 2021, 2 ed Editora Mauad. Pseudo-Dionísio Areopagita. Teologia Mística. 2 ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2021.

[36]Ibidem, p. 37.

[37]Entrei onde não sabia. A poesia mística de San Juan de la Cruz. Traduzido por Dora Ferreira da Silva. Cultrix, 1984,  p. 79.

[38]109-110.

[39]Bernard McGinn. Maître Eckhart. L´homme à qui Dieu ne cachait rien. Paris: Cerf, 2017, p. 98 e 106-107.

[40]Tomás de Aquino. Súmula contra os Gentios. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 66.

[41]Bernard McGinn. A colheita da mística na Alemanha MedievalTomo IV da obra de Bernardo McGinn. A presença de Deus: uma história da mística cristã ocidental. São Paulo: Paulus, 2022, p. 53.

[42]Ibidem, p. 65.

[43]Gustavo Gutiérrez. Teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1975, p. 57.

[44]Mestre Eckhart. Sermões alemãe 1. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 49.

[45]Mestre Eckhart. Sermões Alemães 1. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 49-50.

[46]Mestre Eckhrt. Sermões alemães 2. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 118.

[47]Mestre Eckhart. Sermões Alemães2. Petrópolis, Vozes, 2008, p. 118.

[48]Bernard McGinn. A colheita da mística na Alemanha Medieval, p. 56-57.

[49]Ibidem, p. 64.

[50]Ibidem, p. 65.

[51]Ibidem, p. 66.

[52]Ibidem, p. 68.

[53]Ibidem, p. 68.

[54]Karl Rahner. Teologia dall´esperienza dello Spirito. Nuovi Saggi VI. Roma: Paoline, 1978, p. 370. E também 375.

[55]Cristian Duquoc. O único Cristo.  A sinfonia adiada. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 92-93.