terça-feira, 20 de abril de 2010

Entrevista à Revista Comunità Italiana

Faustino, suas raízes com a Itália são intensas e bem difusas, desde o amplo conhecimento da língua e da cultura que lhe pertencem à formação teológica na Universidade Gregoriana. Gostaria muito de ouvir a sua trajetória.  

 

Venho de uma  típica família  mineira.  Meu pai de Bom Despacho e minha mãe de Belo Horizonte. Todos os quinze filhos nasceram em Juiz de Fora, onde meu pai atuou toda a vida como  médico. A religiosidade foi sempre um traço forte na família.  A ligação com a fé veio do berço. A socialização primária foi decisiva  para mim, gestada  na saudosa biblioteca de meu pai, que ocupa ainda dois cômodos da casa materna.  Grande parte de minha formação foi realizada  com os Jesuítas, ainda que as maiores influências  tenham vindo dos redentoristas, dominicanos e carmelitas.  Juiz de Fora teve uma influente presença dos dominicanos e redentoristas, com os quais mantenho fortes relações de amizade. A comunidade das religiosas  carmelitas  servia de fonte para o aprofundamento da espiritualidade.  Depois de um breve flerte com a história, decidi traçar o meu caminho universitário no curso de filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora. Na ocasião, funcionava na cidade  um curso de graduação em ciência  da religião. Para aproveitar o tempo, fazia filosofia  pela manhã e as disciplinas de ciência da religião  no horário noturno. Acabei concluindo os dois cursos no final de: 1977. Por incentivo de um grande amigo,  pe. João Batista Libânio acabei  tomando o rumo da teologia.  Estávamos ligados  por fortes laços de amizade  e fazíamos parte de um grupo de universitários  que nos reuníamos 4 vezes por ano no antigo seminário da Floresta de Juiz de Fora. A continuidade na formação teológica  aconteceu no Rio de Janeiro, durante o curso de mestrado em teologia, iniciado em 1978. Ao lado das disciplinas do mestrado, fazia  também o nivelamento  na graduação de teologia, já que tinha vindo da ciência da religião. Na ocasião, o corpo docente de teologia da PUC-RJ era extremamente competente. Entre os professores estavam: João Batista Libânio, Clodovis Boff, Pedro Ribeiro de Oliveira, França Miranda, Alfonso Garcia Rúbio, Carlos Palácio, Gabriel Selong  e tantos outros. Na ocasião  não era muito fácil ser bolsista. Grande parte dos alunos tinha que sustentar os estudos. Consegui ser contratado como professor no departamento de teologia  da PUC-RJ e da Universidade Santa Úrsula. Lecionava  as cadeiras de cultura religiosa,  obrigatórias  para todos os alunos da Universidade. Um traço característico  da  teologia da PUC-RJ era a presença dos leigos.  Uma série de teólogos leigos que hoje atuam no Brasil foram formados nesta ocasião: eu, Maria Clara Lucchetti Bingemer, Ana Maria Tepedino, Tereza Cavalcanti, Paulo Fernando Carneiro de Andrade e outros. Na ocasião, a teologia da libertação estava no seu auge. Fizemos parte de uma primeira geração de teólogos formados  nesta tradição teológica, sem porém perder os preciosos vínculos com a tradição teológica européia.  Depois de concluir o mestrado, em 1982, sob a orientação de João Batista Libânio, parti com a família  para a Itália.  Consegui o importante apoio financeiro da congregação  das irmãs médicas missionárias,  dos jesuítas e da Universidade Santa Úrsula. Matriculei-me  no doutorado da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, no ano de 1982. O tema da tese dava prolongamento à reflexão feita no mestrado sobre as comunidades eclesiais de base no Brasil. Na Gregoriana tive oportunidade de seguir alguns cursos preciosos. Não me esqueço, por exemplo, das aulas do professor Juan Alfaro, com o qual pude aprofundar de forma singular a teologia da revelação.  Eu morava  com a família  numa cidade praiana do Tirreno: Ladispoli. Ali meus dois filhos praticamente aprenderam a falar, pois tinham vindo para a Itália  muito novos. Minha mulher, Teita, conseguiu importantes contactos na área de medicina  social (Istituto Superiore de Sanità),  e aproveitou intensamente a estadia italiana.  O doutorado foi realizado num período muito difícil  para a teologia  latino-americana.   É bom lembrar  que os processos mais difíceis  enfrentados pela teologia da libertação aconteceram nos anos de 1984 e 1985 (com a investigação  dos teólogos  Leonardo Boff e Gustavo Gutiérrez). Acompanhei de perto toda a questão. Defendi minha tese no final de 1985, sob a competente orientação do professor Felix  Pastor, que ainda hoje leciona  na Gregoriana  e na PUC do Rio. O retorno ao Rio aconteceu no início de 1986. Não foi fácil retornar ao trabalho depois do longo desgaste do doutorado. O meu orientador dizia que nós alunos estávamos sempre preparados para a ida, mas nem sempre para o retorno. E o retorno foi mais difícil.  Felizmente, o compromisso acadêmico  não aconteceu logo em seguida. Houve tempo para um breve descanso com a família.  Com a volta aos trabalhos, assumi inúmeras cadeiras  nos cursos de teologia  da PUC-RJ e da Universidade Santa Úrsula. Dentre as diversas disciplinas lecionadas  uma em particular  tornou-se para mim especial: antropologia teológica.  Surgia  agora a oportunidade de traduzir na prática o aprendizado romano: a riqueza da reflexão de autores como Karl Rahner, Edward Schillebeeckx, Yves Congar etc. O contato prolongado com o tratado da graça  abriu novos horizontes para a minha reflexão, que foi se deslocando para a questão fundamental das religiões  e do pluralismo religioso.  Ao final de meu período no Rio, já estava abordando o tema da teologia das religiões.  Surgiu em 1989 a oportunidade de fazer um concurso na Universidade Federal de Juiz de Fora. Começava um novo caminho e um novo projeto. Pude então dedicar-me mais  decisivamente  ao tema da teologia das religiões  e do diálogo inter-religioso.  Com o retorno a Juiz de Fora foi nascendo a idéia  da criação de um programa de pós-graduação em ciência da religião  na universidade pública. Com o apoio de alguns excelentes  amigos, como Pedro Ribeiro de Oliveira e Luiz Bernando de Araújo, criamos o curso de especialização em ciência da religião (1991) e o de mestrado (1983). Tratava-se de uma iniciativa pioneira no Brasil: o primeiro e até hoje único programa  de ciência da religião em universidade pública. Foram chegando em seguida  novos professores, de distintas vinculações religiosas, com os quais criamos o doutorado de ciência da religião em 2001: o primeiro doutorado da UFJF. Voltei mais uma vez em Roma neste período, nos anos de 1997 e 1998, com bolsa da CAPES, para fazer o pós-doutorado. Estive novamente na Gregoriana, agora sob a orientação do prof. Jacques Dupuis, para desenvolver pesquisa na área da teologia cristã do pluralismo religioso, tema chave de minhas atuais reflexões.

 

Quais foram os teólogos italianos que mais o instigaram, ou com os quais você mantém algum tipo de diálogo?

 

A Gegoriana é uma universidade que congrega  professores da vários países. Meus contatos mais fortes foram com teólogos de outras nacionalidades como Felix Pastor, Juan Alfaro (ambos espanhóis) e Jacques Dupuis (belga).  Pude ler e apreciar na ocasião do doutorado bons teólogos italianos como Severino Dianich,  Bruno Forte e Antonio Acerbi, bem como o excelente historiador da Igreja , Giuseppe Alberigo, que coordena em Bologna o excepcional  Instituto de ciências  religiosas,  juntamente com Alberto Melloni. Os recentes contatos durante o pós-doutorado com Jacques Dupuis foram fundamentais  para o desenvolvimento atual de minhas reflexões sobre o diálogo inter-religioso. Infelizmente, este grande teólogo,  que viveu por mais de 30 anos na Índia, sofreu um injusto processo movido pela Congregação para a Doutrina da Fé no final de minha estadia na Itália e teve que abandonar suas aulas na Universidade. O seu livro principal, sobre a teologia  cristã do pluralismo religioso saiu publicado no Brasil em 1989 (editora Paulinas), e tive alegria  de fazer sua apresentação.

Guido Morselli escreveu um romance de todo singular,  que se intitula Roma senza papa. Seria isto possível? Qual o lugar da Igreja no mundo contemporâneo?

 

No meu ponto de vista, a questão fundamental não está na presença ou ausência  do papa na Igreja, mas na forma de exercício de sua função. A Igreja  não encontra em si mesma a sua razão de ser. Ela está voltada para um horizonte mais amplo e que está sempre mais adiante: o horizonte sempre maior do Reino de Deus, que foi a razão de ser da vida e obra de Jesus de Nazaré. A Igreja se acha a serviço de Jesus Cristo e de seu sonho de afirmação da vida. O papa é para os católicos uma liderança importante, um ponto referencial. Mas sua autoridade deve ser exercida  como um serviço de amor e de integração. O que tem, infelizmente, ocorrido  muitas vezes é um exessivo alargamento  da competência magisterial do papa, além da jurisdicional . Se a dinâmica  dialogal  instaurada  na Igreja com João XXIII no Concílio Vaticano II equilibrou a perspectiva institucional antes marcada pela rigidez  contra-modernista, os tempos pós-conciliares voltaram a ser matizados por uma tendência  mais centralizadora:  de silêncio imposto às Igrejas  particulares, de resistência  ao debate teológico,  de deslegitimação  do papel dos leigos, e em particular das mulheres e de um controle disciplinar mais rígido  nos vários campos da vida eclesial.  De forma novidadeira , como um sinal de esperança, João Paulo II apontou a plausibilidade de um novo caminho na sua carta encíclica  Ut unum sint, sobre o empenho ecumênico (1995), ao sublinhar a possibilidade de “encontrar uma nova forma de exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra a uma situação nova” (UUS 95). Esta mudança seria , de fato, alvissareira para o futuro do ecumenismo.

 

Um dos artigos mais impressionantes e equilibrados que li sobre o aniversário do Pontificado de João Paulo II foi o seu. Você acredita haver espaço possível, hoje, entre a assim chamada teologia clássica e a da libertação, ou vivemos outra fase, outro sentimento?

 

Sou um ardente defensor do pluralismo inter-religioso  e também do pluralismo teológico.  Não há como sustentar uma perspectiva teológica  isolada  da provocação advinda de outros espaços e setores da produção teológica.  A teologia  clássica continua sendo fundamental para a reflexão  teológica  atual. Toda reflexão  teológica  é  marcada pelo permanente desafio hermenêutico. O trabalho teológico é movido simultaneamente por dois imperativos: de  reinterpretação permanente da mensagem cristã  e de interpelação do magistério eclesial  em função dos sinais dos tempos. Como sublinha o teólogo dominicano belga  E.Schillebeeckx,  o cristianismo  não se traduz unicamente por “uma mensagem que deve ser crida,  mas uma experiência de  fé que se torna uma mensagem”.  Tomando um exemplo, para a edificação  da mediação  hermenêutica  da teologia da libertação  não há como negar a importância do influxo da abordagem clássica  da teologia.  Assim como foi fundamental para a ampliação  do horizonte da teologia da libertação o influxo singular das teologias africana e asiática,  que contribuíram de forma  decisiva  para a inserção das temáticas  do diálogo e da etnia no horizonte de abordagem teológica.

 

Quais seriam para você os aspectos mais importantes da Igreja Católica no Brasil? Os seus desafios mais claros...

 

A Igreja católica no Brasil ficou conhecida internacionalmente  por seu compromisso histórico com a causa dos pobres e excluídos.  Este é um de seus traços fundamentais e que permanece aceso no momento atual. A conjuntura nacional  e internacional  sofreu modificações, bem como a conjuntura eclesiástica. Os tempos são outros. Há no momento a presença de um refluxo problemático. Vejo a necessidade  de uma retomada de caminho,  de reforço de uma perspectiva que foi decisiva  e que marcou uma identidade. Identifico hoje como desafios essenciais, a retomada e aprofundamento da opção pelos pobres, bem como a ampliação de horizontes através de uma nova sensibilidade  dialogal  face às outras tradições religiosas.  Há que enfrentar de perto o novo desafio do pluralismo religioso que deve, a meu ver, ser visto não como um dado negativo, mas como expressão positiva do desígnio amoroso de Deus. Não há como assumir hoje o desafio missionário fora da sensibilidade dialogal. O ecumenismo e o diálogo interreligioso  constituem hoje traços irrevogaveis.

 

O seu espectro de pesquisas, Faustino,  é realmente aberto, sem fronteiras.  O livro que você está escrevendo sobre Rûmî, grande místico persa e de todos os tempos e lugares,  é realmente admirável, com suas densas raízes islâmicas. Além de conhecer profundamente Ibn Arabi, Avicenas, você também se acerca da mística hindu, através do Padre Henri le Saux.  Creio que a sua profunda condição de teólogo católico lhe assegure os pressupostos de uma mística inter-religiosa...

 

Não estou, no momento, escrevendo um livro sobre o grande místico sufi Rûmî. O que escrevi foi um artigo sobre ele, que está sendo agora publicado em livro que organizei sobre a questão da mística comparada. Trata-se de uma obra que reúne os artigos apresentados em seminário realizado em Juiz de Fora em setembro de 2001. O livro está para sair em abril de 2004 pela editora Paulinas, tendo como título: No limiar do mistério: mística e religião.  Tenho atualmente como projeto a elaboração de uma obra sobre os peregrinos do diálogo, ou seja, sobre buscadores cristãos que viveram  em radicalidade  a experiência da fronteira inter-religiosa.  Penso em analisar o itinerário de cristãos como Henri Le Saux, Louis Massignon. Thomas Merton, Raimundo Panikkar, Bede Griffiths e outros.

 

Recordo de um encontro que você realizou pela Universidade Federal de Juiz de Fora, no Seminário da Floresta. Isso ocorreu no dia 11 de setembro de 2001. Um encontro com participantes católicos, evangélicos, judeus, muçulmanos e monges budistas... E as torres em chama em Nova York...

 

Foi de fato uma experiência  marcante. O encontro tomou um rumo singular  após o episódio. Reforçou ainda mais decisivamente entre os presentes a convicção da importância do diálogo inter-religioso  para a paz mundial. Como diz o teólogo Hans Kung, não pode haver paz no mundo sem paz entre as religiões. E esta paz só ocorre mediante o diálogo inter-religioso. 

 

O programa de Doutorado em Teologia na Federal de Juiz de Fora, aliás, em Ciências da Religião,  me parece uma vitória frente a formas positivistas que tentaram dominar a academia. Mas o que me parece fascinante é a interdisciplinaridade que constitui e fundamenta o curso....  

 

A experiência  em Juiz de Fora tem sido mesmo fascinante. Temos um corpo de professores bem diversificado, tanto no âmbito da experiência  religiosa  como  da inserção  acadêmica. Temos teólogos, filósofos, historiadores, antropólogos e sociológos. O clima de convivência  e trabalho é muito frutífero e agradável. Temos também um corpo discente extremamente competente e interessado. O fato de nos podermos dedicar integralmente à pós graduação  é muito bom. O programa está ganhando uma projeção importante no Brasil, com suas três áreas de pesquisa:  diálogo inter-religioso, religião e modernidade e campo religioso brasileiro.


O seu projeto de agora...  O seu maior sonho de teólogo e cristão...

 

Estou muito feliz com as minhas pesquisas e com o meu trabalho. Minha intenção é continuar aprofundando os três campos que movem no momento o meu coração:  a mística comparada, a teologia das religiões  e o diálogo inter-religioso.  Não sei se posso falar no meu maior sonho, mas tenho a esperança de poder vislumbrar um horizonte de vida mais humano, solidário e dialogal.  O clima dos conflitos mundiais atuais me atemoriza e atordoa, sobretudo quando vejo a presença da dinâmica  religiosa em seu interior. Continuo acreditanto que a verdadeira experiência de Deus não é provocadora da violência e da morte mas, ao contrário, suscita a vontade de afirmação da vida e a celebração da criação e do humano.

Entrevista concedida a Marco Lucchesi para a revista Comunità Italiana

 

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