terça-feira, 13 de abril de 2010

O diálogo em tempos de fundamentalismo religioso

O DIÁLOGO EM TEMPOS DE FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO

 

Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF / ISER-Assessoria

 

Introdução

 

A questão da religião voltou a ecoar de forma substantiva após os violentos  atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos.  Este acontecimento não significou um episódio isolado, mas parte de uma realidade sombria mais ampla, marcada pelo espectro do fanatismo religioso  no mundo contemporâneo. Não se pode hoje ocultar a referência étnico-religiosa  que acompanha grande parte dos conflitos vigentes no tempo atual. A presença da religião nestes conflitos não constitui um mero pretexto, mas parte constituinte  de um “jogo multivariado”[1].  O “fator Deus”, como assinala o prêmio nobel José Saramago, tem muitas vezes acionado a dinâmica letal dos inúmeros sofrimentos, violências e morticínios que pontuam o cenário histórico atual. É por causa e em nome dele “que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o pior, principalmente  o mais horrendo e cruel”[2]. A crueldade de chacinas comunitárias acontecidas na Índia, e de crimes cometidos em nome da religião,  acionam a revolta de intelectuais como Salman Rushdie: “Quão bem a religião erige totens, com que resultados fatais, e com que facilidade nós nos dispomos a matar por eles! E, depois que o tivermos feito suficientes vezes, o entorpecimento resultante tornará mais fácil fazê-lo ainda outras”[3].

 

A história religiosa da humanidade vem, de fato, marcada pela presença de uma ambiguidade específica.  Há um enígma envolvendo esta questão. Em situações particulares, pode-se observar a presença da vitalidade religiosa favorecendo o crescimento da afirmação do humano, a dinâmica da solidariedade  e da compaixão. Mas há igualmente, em outros casos, a justificativa da violência, opressão e morte em nome de “Deus” ou do sagrado. Trata-se aqui de uma instrumentalização da religião para afirmar um poder particular com respeito aos outros. Nenhuma religião está livre das disfunções institucionais, dos enrijecimentos particularistas e insulamentos  dogmáticos. Muitos conflitos e violências  provocados pelas religiões  são decorrência de uma forma peculiar de testemunhar a verdade.

 

Embora o cenário religioso  atual esteja marcado por esta presença inegável dos acirramentos identitários  e pela violência, vislumbram-se  alguns esforços e gestos bem significativos  que marcam um empenho alternativo no sentido da maior convivência, comunhão, solidariedade  e paz. A recente jornada de oração em favor da paz, realizada em janeiro de 2002 na cidade de Assis (Itália), reunindo representantes de diversas religiões  mundiais, significou  um grito de protesto contra a violência, a guerra e o terrorismo. Na expressão polifônica e diversificada dos  testemunhos dos religiosos  presentes no evento ecoou a consciência viva de que toda religião  deve ser portadora de justiça, amor e paz sobre a terra.[4]. Para que isto ocorra, é necessário, entretanto, o empenho em favor do diálogo entre as religiões.  Trata-se de algo complexo e difícil, mas que permanece hoje como um dos desafios essenciais  para a paz e a sobrevivência do mundo.

 

1.    A religião na sociedade pós-tradicional

 

a. A nova vitalidade da religião

 

Apesar do prognóstico moderno em favor das teses da secularização, o que se verifica hoje em dia é uma presença viva do fenômeno religioso e uma nova vitalidade da religião.  Como sublinha Peter Berger em recente trabalho, “não há razão para pensar que o mundo do século XXI será menos religioso do que o mundo atual”[5]. Esta revitalização religiosa  ou retomada do impulso religioso  revelam a existência de um probema agudo no mundo atual. Na base desta nova motivação religiosa encontra-se o estado de inquietação que acompanha a premência de riscos globais, sem precedentes na história da humanidade. Segundo Gianni Vattimo, esta retomada do interesse religioso revela sobretudo a presença de um “limite” da potencialidade  humana e da aparente insolubilidade  de seu instrumental técnico na resolução de muitos problemas que afligem a humanidade. Difunde-se  o medo e a ansiedade diante das ameaças diversificadas que pesam sobre o futuro do planeta, mas também a insegurança face à carência de horizontes e à perda de sentido da existência. Há uma relação entre este novo impulso religioso e a recusa de uma modernização que vem abafando ou destruindo as “raízes autênticas da existência”[6].

 

b. Uma nova fisionomia da tradição

 

No contexto da influência  transformadora da globalização verifica-se a emergência de uma “ordem social pós-tradicional”.  Para Anthony Giddens, esta nova ordem não significa o desaparecimento da tradição, mas a mudança de seu status. No novo momento da globalização intensificadora, as tradições “têm de explicar-se, têm de tornar-se abertas à interrogação ou ao discurso”[7]. Na origem latina da palavra tradição, tradere, vigora a idéia de transmissão de algo a alguém. A tradição é portadora de uma memória, de um código de sentido e geradora de uma continuidade. O seu papel fundamental é “atualizar o passado no presente, de restituir, no ‘mundo vivido’ de um grupo humano ou de uma sociedade, a memória viva de uma fundação que a faz existir no presente”[8]. Enquanto na sociedade pré-moderna a tradição possibilitava  a continuidade de uma memória, no tempo moderno esta situação se altera. Não mais se consegue garantir com a regularidade anterior a manutenção individual de uma continuidade  da memória coletiva. Instaura-se, assim, uma “crise de transmissão” ou de “elaboração da cadeia da memória”. Isto não ocorre sem problemas. Com a perda de referência do código de sentido garantido pela tradição, inúmeras pessoas passam a viver uma situação de incerteza estrutural.

 

É a mudança no desenho da tradição na sociedade pós-tradicional  que provoca tantas dificuldades  em setores mais conservadores. Há uma grande dificuldade  em compreender que o elemento de continuidade  entre o passado e o presente deve ser sempre dinamizado pela incorporação das inovações e reinterpretações em função dos dados do presente. Não ocorre uma ruptura da preservação do código de sentido anterior, mas há uma mudança no mesmo. Entender a tradição de forma estática é esvaziá-la de seu conteúdo de reinvenção permanente. Com a mudança do papel da tradição, uma nova dinâmica social vem introduzida, e com ela, a exigência de um modo de vida mais aberto e reflexivo[9]. No mundo cosmopolita e plural torna-se muito difícil a preservação de identidades isoladas e estanques. Torna-se inevitável o contato e a relação de umas pessoas com outras, a percepção da diversidade plural de formas de pensamento e ação e o imperativo da reflexividade.

 

Esta nova situação terá um influxo importante no campo religioso. Com a crescente mobilidade, verifica-se o contato entre pessoas de crenças diferentes. Instaura-se, de fato, uma realidade de pluralismo religioso mais imediata, mas não menos tensa: “as diferenças de crenças, às vezes muito radicais, são mais diretamente visíveis, com frequência crescente, e mais diretamente encontradas: prontas para a suspeita, a preocupação, a repugnância e a altercação”[10]. Esta mesma diferença pode, entretanto, propiciar um espaço para a afirmação de um novo entendimento e solidariedade  mútuos. Na base de muitos dos conflitos religiosos  em curso hoje na humanidade encontra-se a busca ou construção da identidade. Enquanto no passado esta identidade era mais garantida e unificada, ela passa no mundo moderno “para um regime plural”[11], mas diante de tal regime o sujeito fica dividido  entre duas possibilidades:  o diálogo  cosmopolita  ou a redução fundamentalista. Trata-se de duas possibilidades concretas de reagir ao desafio da globalização.  A ameça da segunda possibilidade  está muito patente no momento atual, ou seja, da “recusa do diálogo num mundo cujo ritmo e continuidade  dependem dele”[12].

 

2.    A ameaça dos fundamentalismos

 

a. Fundamentalismo, globalização e pluralismo

 

O fundamentalismo é um fenômeno marcadamente moderno, expressão de uma reação às influências da globalização  e do pluralismo.  Ao acentuar dissonâncias  cognitivas, o pluralismo provoca em indivíduos ou grupos um sentimento de insegurança significativamente  ameaçador para a plausibilidade   de sua inserção no mundo. Como sublinha  Peter Berger, “o pluralismo  cria uma condição de incerteza permanente com respeito ao que se deveria crer e ao modo como se deveria viver; mas a mente humana abomina a incerteza, sobretudo no que diz respeito ao que se conta na vida. Quando o relativismo alcança certa intensidade, o absolutismo volta a exercitar um grande fascínio”[13]. Ao sentimento de insegurança responde-se com uma redução cognitiva defensiva ou ofensiva. Diante do risco dissolvedor  da dúvida, reage-se com a afirmação ortodoxa. No primeiro caso, ocorre um fechamento comunitário, é a estratégia do gheto. No segundo caso, mais ameaçador, adota-se a estratégia da cruzada, ou seja, o caminho da reconquista da sociedade em nome da tradição religiosa particular. Todo fundamentalismo vem circundado de uma potencialidade  de violência.  Há na sua base uma “espiral degenerada de comunicação” e uma recusa explícita a qualquer potenciamento dialogal.  O que “originalmente  é apenas um isolacionismo, ou talvez a insistência na pureza de uma tradição local, pode se essa for a tendência das circunstâncias, transformar-se em um ciclo vicioso de animosidade e rancor”[14].

 

O fenômeno do fundamentalismo, como bem acentuou Giddens, deve ser analisado “contra o pano de fundo do surgimento da sociedade pós-tradicional”[15].  Ele implica, de fato, a realidade de uma “tradição sitiada”. Diante da ameaça globalizadora, ele reage com a afirmação tradicional da tradição. Rejeita-se  todo e qualquer engajamento dialogal  com a modernidade, bem como qualquer possibilidade  de reflexividade da tradição. Na raiz do fundamentalismo há o sentimento de insegurança, desorientação ou anomia resultantes de uma dinâmica modernizadora. Torna-se intolerável para os fundamentalistas a possibilidade de esvaecimento de seus valores tradicionais. Reagem ao abalo provocado pelas crises do mundo moderno em suas comunidades de fé e em suas convicções básicas. Como medidas de contra-ataque, recusam todos os vetores associados à lógica moderna: a hermenêutica, o pluralismo, o relativismo, a evolução e o desenvolvimento; e reforçam os canais de solidariedade  grupal.

 

Com sua capacidade de recriar nexos de solidariedade grupal, de dotar a vida de sentido e finalidade, de inventar um passado mítico em que não existiam as tensões e as incertezas do mundo contemporâneo, de alimentar a esperança numa vida futura que possa compensar todas as humilhações do presente e de fazer da religião uma trincheira de resistência cultural, capaz de enfrentar as pressões niveladoras provocadas pela globalização, o fundamentalismo parece constituir uma resposta para todas as frustrações da vida moderna[16]. 

 

b.  As religiões e o fundamentalismo

 

O fundamentalismo é uma realidade recorrente nas religiões nos tempos modernos, surgindo sempre como uma reação aos problemas da modernidade. Com respeito ao contexto religioso,  este termo foi aplicado pela primeira vez por volta da passagem do século XIX para o século XX, referindo-se a um movimento teológico de origem protestante. Este movimento nasce nos Estados Unidos como reação ao modernismo e liberalismo  teológico,  e assume como bandeira as idéias de inerrância bíblica, de escatologia milenista e anti-ecumenismo[17].

 

 Sobretudo após os episódios  violentos de 11 de setembro de 2001, a questão do fundamentalismo foi muito enfatizada pelos diversos meios de comunicação. Há uma tendência na mídia ocidental, fortalecida após esta data, de identificar e/ou reduzir  o fenômeno do fundamentalismo  à questão islâmica.[18] Trata-se na realidade de um grande equívoco. Na verdade, a tendência fundamentalista  irá marcar presença no Islã bem mais tarde do que a verificada nas outras duas grandes tradições monoteístas, ou seja, o judaísmo e o cristianismo.  Esta tendência irá ocorrer no Islã sobretudo por volta dos anos de 1960 e 1970, em reação ao enraizamento da cultura moderna em solo muçulmano[19].

 

Há que sublinhar a questão específica da terminologia. O termo fundamentalismo está intimamente ligado à sua origem no contexto cristão, assumindo uma conotação bem determinada. Afirma-se como uma tendência do conservadorismo protestante americano, tendo como base fundamental uma interpretação literalista e estreita da Bíblia. Para evitar distorções problemáticas, a aplicação deste termo a outras designações religiosas  deve ser realizada de forma mais matizada. Alguns autores preferem utilizar outras designações quando tratam do fenômeno análogo que ocorre em outras tradições: integrismo, conservadorismo etc. O fenômeno atual do fundamentalismo marca presença em várias tradições religiosas, envolvendo também aquelas caracterizadas por perspectiva inclusiva,  como o hinduísmo e o budismo.[20]

 

 No âmbito do judaísmo, a resposta aos desafios da modernidade ocorreu seguindo trajetórias diferentes. Ao lado de posições reformistas e abertas ao processo de assimilação da dinâmica moderna, houve igualmente o reforço de tendências ortodoxas, rigidamente críticas a toda e qualquer contaminaçao cognitiva provinda dos ideais iluministas.  Há que reconhecer a importância do lugar concedido à interpretação no judaísmo. Trata-se de um povo com “vocação hermenêutica”. Na linha do espírito de abertura do Talmude, Deus não pode ser encerrado numa perspectiva petrificada, pois é um Deus infinito.  Resguarda-se um espaço livre para a interpretação e o horizonte aberto para a apreensão de novos sentidos. Segundo uma importante passagem do Talmude: “Palavras de uns e de outros, palavras do Deus vivo”[21]. Este espírito de abertura não encontrou, porém, espaço em formas particulares do Judaísmo Ortodoxo atualmente florescente. Verifica-se nestes casos pontos de concordância bem precisos com a nebulosa fundamentalista.  Deve-se sublinhar, em particular, a “concepção segregacionisa” que toma forma nestas expressões concretas do judaísmo, marcada por traços bem característicos, sobretudo a rejeição de todo intercâmbio com o mundo circunstante e a concepção exclusivista da verdade.[22] Afirmam-se no atual cenário judaico não apenas os núcleos ultra-ortodoxos, mas também os grupos sionistas religiosos,  que vem marcando presença de forma articulada desde 1902. Como indica Bernard Sorj, “o sionismo,  primeiro como movimento social e depois como ideologia de um Estado que devia criar uma nova cultura homogênea, participou dessa tendência excludente. Centrado no dogma de que a diáspora era a origem de todos os males do povo judeu, o sionismo desvalorizava todas as outras expressões do judaísmo moderno”[23]. O que se verifica atualmente em Israel é uma expressão do triunfo político do sionismo,  cujos resultados estão bem visíveis no atual conflito com os palestinos. Os desdobramentos conflitivos desta realidade são questionados por José Saramago em impressionante depoimento:

 

É nisto que consiste, desde 1948, com ligeiras variantes meramente táticas, a estratégia política  israelita. Intoxicados mentalmente pela idéia messiânica de um Grande Israel que realize finalmente os sonhos expansionistas do sionismo mais radical; contaminados pela monstruosa e enraizada ‘certeza’ de que neste catastrófico e absurdo mundo existe um povo eleito por Deus e que, portanto, estão automaticamente justificadas e autorizadas, em nome também dos horrores passados e dos medos de hoje, todas as ações próprias resultantes de um racismo obsessivo, psicológica e patologicamente exclusivista[24].

 

Com respeito ao catolicismo, o traço do fundamentalismo estará mais evidenciado nos procedimentos modernos com os quais a tradição eclesiástica busca resguardar as decisões doutrinais obrigatórias. Enquanto os protestantes sublinham a infalibilidade  da Escritura, os católicos acentuarão a infalibilidade do magistério.  Uma dinâmica mais conservadora diante dos tempos modernos irá paulatinamente ganhando espaço no campo católico com o tridentinismo. Trata-se aqui da afirmação de um sistema e de um espírito, constituídos  a partir do Concílio de Trento (1545-1563), que envolverão diversos setores do mundo católico: teologia, ética, prática religiosa, liturgia, organização eclesiástica etc. Este tridentinismo irá favorecer uma representação particular do catolicismo romano, reticente e crítico face aos desafios da modernidade. Uma expressão viva de tal representação irá ocorrer por ocasião da “controvérsia modernista”, no início do século XX. Em reação ao espírito do tempo, o Papa Pio X lançará em 1907 a encíclica Pascendi, que em nome da infalibilidade  do magistério, condenará em sua globalidade  os “erros” do modernismo. Instaura-se, assim, um elemento singular no campo católico, caracterizado pelo zelo doutrinal e  pela perseguição aos que se desviam do “caminho reto”.[25]  Embora tais forças conservadoras encontraram um importante contra-ponto no Concílio Vaticano II (1962-1965) e nos movimentos eclesiais renovadores que o anteciparam e sucederam, elas voltarão a exercer o seu influxo a partir da  década de 80, durante o pontificado de João Paulo II.  Na atual conjuntura eclesiástica, estão presentes e ativas forças conservadoras e articuladas em favor de uma restauração, entendida como a busca de um novo equilíbrio, depois dos “exageros” da abertura conciliar[26].

 

A afirmação fundamentalista no Islã ocorrerá sobretudo como uma reação ao laicismo coercitivo que acompanha a sedução modernizadora. Nasce como fruto de uma insegurança e apreensão face à dinâmica secularizadora, ao temor da perda da tradição e da exclusão do divino da vida pública.  Depois de viver um período de grande floração e expansão, cujo apogeu encontra-se no século XIII[27], o Islã viverá um momento de crise. Este período coincidirá com a dinâmica de afirmação colonialista européia. O desgaste sofrido pode ser atribuído tanto ao processo de devastação resultante das várias ondas de invasão dos mongóis, como ao declínio econômico e político-militar  dos países muçulmanos.

 

Com a crise de plausibilidade  instaurada, haverá espaço para um novo rearranjo e interrogações alternativas sobre o destino do Islã.  O contato com a Europa colonialista  possibilitou  um processo de abertura ao modernismo. A busca de renovação da comunidade (umma) muçulmana seguirá o modelo ocidental: o novo imperativo será de reforma (islâh), de busca do novo e de esforço interpretativo (ijtihâd). Um  dos grandes inspiradoras para tal reforma foi Jamâl ad-din al-Afghânî (m. 1897), que atuou no Cairo em defesa do retorno às fontes da Escritura islâmica, contra a exegese tradicional  em curso. Deixou uma leva de discípulos, entre os quais Muhammad ‘Abduh (m.1905). Os dois propunham a busca de uma nova e revitalizadora leitura do Corão.[28] O processo de secularização ganhou, porém, um acento particular e radicalizado em determinados países muçulmanos como a Turquia, Egito e Irã. No caso da Turquia, o processo foi bem agressivo, e ocorreu durante o governo de Ataturk, que em 1924 abole o califado otomano, instaura uma república nacionalista turca e dá início a um processo de “ocidentalização do islamismo”.  Dentre suas iniciativas, pode-se mencionar a abolição das ordens sufis, o fechamento das escolas de ensinamento do Corão, a obrigação do uso de trajes ocidentais e a proibição do véu para as mulheres[29]. Um similar processo de modernização ocorre no Egito e no Irã. Neste último país, o programa de modernização levado a efeito por Reza Shah foi igualmente implacável.[30]

 

As reações ao processo secularizador vieram em seguida. O primeiro movimento fundamentalista no Islã, os Irmãos Muçulmanos, nasce no Egito em 1928, como reação crítica à dinâmica modernizadora e secularizadora em curso, acusada de ocasionar a desestruturação da comunidade islâmica. Lançam um slogan que estará sempre presente nas correntes islamitas: “A nossa constituição é o Corão”[31].  A mesma reação ao laicismo usurpador do Ocidente presidiu a formação do movimento Jamaat-i-Islami  em 1948 no Paquistão. O seu grande ideólogo foi Mawdudi (1903-1979),  que  defende um novo caminho de islamização do Estado, que possibilite  uma soberania exercida em nome de Allah. Aos cinco tradicionais pilares do Islã, ele acrescentará um sexto, a jihad, entendida como luta contra as forças que provocam o aniquilamente cultural e religioso do Islã. A influência  deste ideólogo se fará sentir em outro grande nome do fundamentalismo islâmico, Sayyid Qutb (1906-1966).  Este reformador exercerá uma forte oposição ao laicismo e “paganismo” de al-Nasser no Egito, em nome da criação de um verdadeiro Estado muçulmano. Na base do fundamentalismo sunita está a influência da ideologia de Qutb, que pontuou igualmente a afirmação do poder dos talibãs em 1994 no Afeganistão.

 

  Para estes e tantos outros movimentos fundamentalistas que estarão presentes no campo islâmico, sobretudo a partir dos anos 70, a solução para os problemas políticos  dos muçulmanos não pode encontrar sua resposta em valores exógenos, mas na afirmação efetiva de um Estado islâmico que aplique  concretamente a lei muçulmana (shari’a).  A revolução iraniana de 1978-1979 foi um divisor de águas importante, e a partir dela a ofensiva fundamentalista ganhará expressão mais decisiva. Ela não surgiu, porém, do nada, mas foi longamente gestada numa contra cultura religiosa. O sucesso e prestígio deste empreendimento revolucionário acabaram alimentando uma série de fenômenos aproximativos seja nas zonas diretamente marcadas pelo xiismo iraniano, como o Líbano e os Estados do Golfo, bem como em outras partes.[32]

 

Não há como desconhecer a presença do fenômeno fundamentalista em curso no Islã. Mas seria incorreto e equivocado concluir que todo o Islã é fundamentalista, como afirmou ultimamente o historiador inglês Paul Johson[33]. Na verdade, “a atual explosão integralista, nas suas várias formas e facetas, significa certamente um fenômeno profundo e preocupante mas claramente minoritário (e se espera não duradouro) da secular tensão entre tradição e modernidade, entre sabedoria divina e sabedoria humana que caracteriza o Islã desde suas origens”[34] As formas mais “explosivas” e contundentes dos movimentos islamitas  acabam prevalecendo e abafando a realidade mais ampla e complexa do fenômeno do Islã. A exigência de uma relativização não invalida  a importância de um trabalho crítico  e científico que deve ser feito em favor da compreensão da tradição islâmica para além das transgressões que ela sofreu ao longo da história[35]. Não se pode, entretanto deixar de acentuar a difícil  e dolorosa situação que vem provocando a insurgência e afirmação fundamentalista no Islã. Embora seja difícil diagnosticar  com precisão  as causas deste fundamentalismo, não há como negar sua realidade de “efeito objetivo  de fatores cuja eliminação requer nada menos que uma correção de rumos na estrutura de nossa modernidade”[36]

 

3.    O desafio do diálogo

 

Para quem quer que esteja acompanhando a situação mundial, não há dúvida sobre a realidade tensa, delicada e ameaçadora que paira como um horizonte sombrio sobre o destino da humanidade. A imagem que hoje vigora, como acentuou Cliffort Geertz, não é a da celebração e solidariedade inter-cultural, mas de “um mundo repleto de pessoas que glorificam alegremente seus heróis e diabolizam seus inimigos”[37]. O etnocentrismo ganha hoje uma fisionomia  problemática, lançando uns povos contra os outros e afirmando a dinâmica de uma “incomunicabilidade” letal.  Nesta dinâmica de impermeabilidade  aos valores da alteridade, torna-se mais que urgente o desafio do diálogo  e, em particular, do diálogo inter-religioso.

 

Os acontecimentos de setembro de 2001 acabaram provocando o acirramento de ânimos em favor de teses como a do “choque de civilizações”. Falou-se  em cruzada, em luta do bem contra o mal, da liberdade contra o medo etc. Vem ganhando cada vez mais cidadania um pensamento e prática agressivos e violentos contra o outro, motivados pelo mote da caça aos terroristas. A reformução da ideologia da guerra fria, agora temperada com a tensão paradigmática do Ocidente contra o resto do mundo, ganha terreno em corações e mentes. A afirmação das teses que buscam opor as civilizações  acaba favorecendo a hostilidade  e impedindo o fomento de melhor compreensão do momento atual. Defender posturas que limitam o lugar e o sentido das identidades culturais, é ocultar um dado fundamental da realidade atual: a passagem da identidade no mundo moderno para um “regime plural”. Não se pode mais limitar o alcance das identidades, e o sentido de sua pertença. A defesa de um “choque de civilizações” acaba por revelar, na realidade, um “choque de ignorâncias”, ou seja, querer

 

tranformar ‘civilizações’ e ‘identidades’ em algo que elas não são, entidades estanques e fechadas, destituídas das múltiplas correntes e contracorrentes que animam a história humana e que, ao longo dos séculos, tornaram possível que essa história não apenas contenha guerras de religião e conquista imperial, mas que também seja feita de intercâmbios, fertilizações cruzadas e partilhas[38].

 

Embora a perspectiva de paz no século que se inicia seja ainda bem  remota, permanece o desafio essencial da abertura ao outro, da mútua compreensão e do recíproco enriquecimento. O novo século começa marcado pela presença inquietante e desafiadora do outro, do diferente, daquele que não pode ser negado em sua peculiaridade; do outro como realidade irreversível e irrevogável. Como sublinha Sanchis, “o mundo mexeu: deslocamentos, divisões, expansões. Encontros, encaixes, recobrimentos”[39]. A globalização encurtou o mundo, mas instaurou o impacto da presença da diversidade.  Esta presença tão numerosa de outros tão diversos é um dado característico deste século XXI.[40] Diante desta realidade, “o que  é intolerável não é a diferença, mas a indiferença”, ou seja a incapacidade  de reagir ao “desgaste da compaixão” que cresce a cada momento. O grande perigo que ronda o tempo atual é o da afirmação dogmática de comunidades humanas que funcionam como “mônadas semânticas, quase sem janelas”, especializadas em cultivar a arte do solilóquio  e da surdez. As religiões  podem estar envolvidas neste círculo isolacionista  e imobilizadas pela incomunicabilidade  dogmática, ou pela heresia maior do descompromisso com o outro, mas podem exercer sua influência  em favor de um encontro renovador e enriquecedor, direcionadas à solidariedade mútua, à paz e o bem da humanidade. É nesta segunda direção que se encontra a aposta dialogal, e a possibilidade  única das religiões  poderem adquirir sua credibilidade:  dialogar para não morrer.

 

 

(Publicado na Revista Convergência, v. 37, n. 356, p. 495-506, outubro 2002 )



[1] Pierre SANCHIS. Religiões no mundo contemporâneo: convivência e conflitos. Belo Horizonte, 2001, mimeo., p. 2. Para Sanchis, a presença da religião nos atuais conflitos a nível  mundial é muito mais do que ‘ideológica’. Ela é parte constituinte dos conjuntos em presença, articulada a outras dimensões que, segundo os casos e segundo os momentos se revezam com ela nos planos mais visíveis  ou mais ocultos da relação”: Ibidem, p. 2.

[2] José SARAMAGO. O fator Deus. Folha de São Paulo, 19 de setembro de 2001, p. 8 (Especial Guerra na América).

[3] Salman RUSHDIE. O nome do problema é Deus. Folha de São Paulo, 17 de março de 2002, p. A29.

[4] Giornata di preghiera di Assisi. Impegno per la pace. Il Regno-documenti, n. 3, p. 65-80, 2002.

[5] Peter L. BERGER. A dessecularização do mundo: uma visão global. Religião e Sociedade, v. 21, n. 1, p. 18, 2001.

[6] Gianni VÁTTIMO. Acreditar em acreditar. Lisboa: Relógio D´água, 1998, p. 12-13; Id. O vestígio do vestígio. In: Jacques DERRIDA & Gianni VATTIMO (Org.) A religião. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p. 92-93.

[7] Anthony GIDDENS. Para além da esquerda e da direita. São Paulo: Unesp, 1995, p. 13. Segundo este autor, “no contexto de uma ordem cosmopolita e globalizadora, as tradições são constantemente colocadas em contato umas com as outras e forçadas a ‘se declararem’”: Ibidem, p. 99

[8] Danièle HERVIEU-LÉGER. Religione e memoria. Bologna: Il Mulino, 1996, p. 138.

[9] O conceito de reflexividade é de grande importância na obra de Anthony Giddens. Para ele, “a reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que  as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter”: As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991, p. 45.

[10] Clifford GEERTZ. Novo olhar sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 158.

[11] Pierre SANCHIS. Religiões no mundo contemporâneo... Art.cit., p. 4.

[12] Anthony GIDDENS. Mundo em descontrole. Op.cit.,p. 59.

[13] Peter L. BERGER. Una gloria remota: avere fede nell’epoca del pluralismo. Bologna: Il Mulino, 1994, p. 48.

[14] Anthony GIDDENS. Para além da esquerda e da direita. Op.cit., p. 277.

[15] Ibidem, p. 14.

[16] Sérgio Paulo ROUANET. Os três fundamentalismos. Folha de São Paulo – Caderno Mais, 21 de outubro de 2001, p. 13. Mas apesar das aparências, a “a identidade fundamentalista é uma identidade ameaçada, amedrontada, cheia de incertezas e, por isso, uma identidade que reage agressivamente. É uma identidade que não tem consciência de si mesma, mas se define pela delimitação ou negação de inimigos reais ou supostos”: Jurgen MOLTMANN. Fundamentalismo e modernidade. Concilium, v. 241, n. 3, p. 146, 1992.

[17] Antônio Gouvêa MENDONÇA & Prócoro VELASQUES FILHO. Introdução ao protestantismo no Brasil. São Paulo:  Loyola, 1990, p. 120-129.

[18] A questão do medo do Islã, afirmada em território europeu e atualmente disseminada por outros lugares, tem uma longa história. Está relacionada ao impressionante crescimento do Islã desde a morte de seu profeta, em 632. Como bem sublinhou  Edward Said, “o Islã passou a simbolizar o terror, a devastação, o demoníaco,  as hordas de odiosos bárbaros. Para a Europa, o Islã era um trauma duradouro”: Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 69. Este temor vem  acentuado hoje no espaço americano, com a afirmação de teses como a de  Samuel Huntington, para o qual o ressurgimento islâmico significa um risco concreto de choque civilizacional. Cf. Samuel P. HUNTINGTON. O choque de civilizações. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.

[19] Karen ARMSTRONG. O Islã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 219-220.

[20] Para uma abordagem sintética dos fundamentalismos etno-religiosos na Índia contemporânea e no neo-hinduísmo cf. Enzo PACE. Il regime della verità. Bologna: Il Mulino, 1990, p. 120-131. Neste trabalho nos restringiremos à abordagem do fenômeno nas tradições judaico, cristã e islâmica.

[21] Marc-Alain QUAKNIN. O Deus dos judeus. In: Jean BOTTÉRO & Marc-Alain QUAKNIN & Joseph Moingt. A mais bela história de Deus. São Paulo: Difel, 2001, p. 64.

[22] Jacob NEUSNER. O desafio do fundamentalismo judaico contemporâneo. Concilium, v. 241, n. 3, p. 67-71, 1992.

[23] Nilton BONDER & Bernardo SORJ. Judaísmo para o século XXI. Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 56.

[24] José SARAMAGO. Das pedras de Davi aos tanques de Golias. O Globo, 14 de abril de 2002, p. 44.

[25] Giuseppe ALBERIGO. Instituições eclesiais para a salvaguarda da ortodoxia. Concilium, v. 212, n. 4, p. 95-96, 1987; Hans KUNG. Contra o fundamentalismo romano-católico hodierno. Concilium, v. 241, n. 3, p. 151, 1992; Pierre LATHULIÈRE. Le fondamentalisme catholique. Paris: Cerf, 1995.

[26] Os exemplos mais vivos podem ser encontrados nos diversos documentos produzidos pela Congregação para a Doutrina da Fé, a partir dos anos 80, e outros a ela relacionados, elaborados pelo Prefeito da mesma Congregação, o cardeal Joseph Ratzinger.

[27] Alguns autores como Roger Arnaldez sublinham a crucialidade deste momento histórico, cuja contribuição foi fundamental para a gênese da Europa e do Ocidente moderno. Cf. Roger ARNALDEZ. A la croisée des trois monotheísmes: une communauté de pensée au Moyen-Age. Paris: Albin Michel, 1993, p. 7-8.

[28] Carlo SACCONE. Allora Ismaele s’allontanò nel deserto... I percorsi dell’Islam da Maometto ai nostri giorni. Padova: Editrice Messaggero Padova, 1999, p. 287-297.

[29] Karen ARMSTRONG. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 220-221.

[30] Ibidem, p. 249-250 e 257-258.

[31] Gilles KEPEL. Jihad Ascesa e declino: storia del fondamentalismo islamico. Roma: Carocci, 2001, p. 28.

[32] Dentre os movimentos fundamentalistas surgidos a partir da década de 70 no mundo islâmico podem ser assinalados os seguintes: Jihad al-islami (Egito-1970), Fronte de salvação islâmico (Algéria-1989), Fronte nacional islâmico (Sudão-1978), Hesbollah (Líbano-1982),  Hamas (Palestina-1987).

[33] Em entrevista à revista Veja, de 26 de setembro de 2001, p. 9.

[34] Carlo SACCONE. Allora Ismaelle..., Op.cit., p. 306.

[35] Vale registrar o esforço que vem sendo feito por islamólogos como Mohammad Arkoun, no sentido da construção de uma teologia da tradição islâmica, bem como de abertura para a investigação antropológica e semiótica com respeito ao Corão e aos Hadith. Cf. Mohammed ARKOUN. L’islam actuel devant sa tradition. In: Joseph DORÉ (Ed.) Christianisme judaisme et islam: fidelité et ouverture. Paris: Cerf, 1999, p. 126-140.

[36] Sérgio Paulo ROUANET. Os três fundamentalismos. Art.cit., p. 13. Conhecendo a triste e dolorosa situação de determinados campos de refugiados, como os de Sabra e Chatila, verdadeiro “holocausto dos vivos”, pode-se compreender, como indica Saramago, as razões que levam “um ser humano a transformar-se em bomba”. Em impressionante romance do escritor afegão Atiq Rahimi, há uma passagem que descreve esta realidade: “A dor é assim, ela derrete ou escorre pelos olhos, ou ela se torna afiada como uma lâmina brotando da boca, ou então ela se transforma em bomba dentro do peito, uma bomba que explode num belo dia e faz explodir também...”: Terra e cinzas: um conto afegão. São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p. 30.

[37] Cliffort GEERTZ. Nova luz sobre a antropologia. Op.cit., p. 84.

[38] Edward SAID. O choque de ignorâncias. Folha de São Paulo, 17 de outubro de 2001, p. A16.

[39] Pierre SANCHIS. Religiões no mundo contemporâneo... Art.cit., p. 1.

[40] Há hoje uma presença viva da diversidade cultural dentro das sociedades, e não mais simplesmente entre elas. “As fronteiras sociais e culturais têm uma coincidência cada vez menor – há japoneses no Brasil, turcos às margens do Main e nativos das Índias Ocidentais e Orientais encontrando-se nas ruas de Birmingham -, num processo de baralhamento que já vem acontecendo há um bom tempo (...), mas que em nossos dias, aproxima-se de proporções extremas e quase universais”: Clifford GEERTZ. Nova luz sobre a antropologia. Op.cit., p. 76. O mesmo vale para a questão da presença “inquietante” dos muçulmanos, que não mais se encontram na periferia do Ocidente, mas que habitam o seu centro nevrálgico: em toda a Europa e nos Estados Unidos. 

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