terça-feira, 13 de abril de 2010

O sagrado no grande sertão

                    “Muita religião, seu moço!”

 

     O sagrado no Grande Sertão

 

Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF

 

Em sua tese doutoral, o antropólogo Carlos Rodrigues Brandão assinalou que a cultura popular ganha uma compreensão particular quando abordada sob a luz da religião. Os pesquisadores das formas populares de cultura consideram que a religião é porta de entrada da consciência, não havendo esfera alguma da vida social que não esteja envolvida e significada pelos valores do sagrado. Para os setores populares “a religião dá nome a todas as coisas e torna, até mesmo o incrível, possível e legítimo. Para os efeitos da vida, ela pretende sempre envolver o repertório mais abrangente das questões e fazer as respostas mais essenciais, de acordo com os interesses políticos, mas também de acordo com os medos e esperanças das mais diversas categorias de pessoas”. Para tais setores a religião é muitas vezes o explicador “mais usual e, muitas vezes, o mais acreditado”. [1]

 

O livro de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas, é um exemplo bem concreto desta tese de Brandão. É uma obra que retrata de maneira admirável e criativa as formas populares de religião no Brasil. É um traço da genuinidade brasileira a rica ampliação das possibilidades de comunicação com o sagrado ou com o “outro mundo”. O que para o protestante tradicional ou católico romanizado seria uma expressão de pernicioso sincretismo ou superstição, para boa parte dos fiéis significa um modo de alargar as “possibilidades de proteção”[2]. Em várias passagens desta obra de Guimarães Rosa o personagem Riobaldo Tartarana expressa a força da presença religiosa e a dinâmica de sua complementaridade:

 

“Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. (...) Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca”.[3]

 

O sagrado acompanha os jagunços por toda a jornada nos sertões. Não há como escapar de sua mirada. Não há lugar para a lógica secularizada. Ao relatar a posição de um doutor do vale do Araçuaí, que desacreditava na presença de Deus, Riobaldo reage de forma contundente:

 

“Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. (...) Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada – erra rumo, dá em aleijões como esses, dos meninos sem pernas e braços”.[4]

 

A presença de Deus atua como um “escudo contra o terror”, mas não livra os jagunços da presença sempre ameaçadora do “demo”, que traduz uma situação de vulnerabilidade psicológica e de precariedade social extrema. Riobaldo expressa uma preocupação, que é comum, de evitar que o diabo nele ponha sela ou que o governe. O diabo está sempre rondando: “na rua, no meio do redemoinho”. Ele pode surgir, de repente, e exige uma vigilância constante. Ele é o “Arrenegado”, o “Cramulhão”, o “Tisnado”, o “Temba”. Para fazer-lhe frente é necessário muita firmeza e coragem, e “Deus é alegria e coragem”. Na expressão do jagunço Jôe Bexiguento, “Deus a gente respeita, do demônio se esconjura e aparta”.

 

Visto na perspectiva da religião, esta obra de Guimarães Rosa traduz de forma magnífica a sabedoria popular, animada e reforçada pelo traço dinamogênico da presença do sagrado, de seu poder que ajuda a viver, a enfrentar as dificuldades da existência e a impulsionar a ação transformadora. A compreensão  positiva da vida é uma das mensagens mais ricas que o livro traduz, permeando as singulares reflexões do jagunço Riobaldo:

 

“Acho que o espírito da gente é cavalo que escolhe estrada: quando ruma para tristeza e morte, vai não vendo o que é bonito e bom”.[5]

 

Na visão de Tartarana, a vida é invenção e continuação permanente. Nunca está acabada. É construída na partilha e mutirão de todos. Tem momentos de dureza, dor e ingratidão, mas também lumiares de esperança, que brotam no fundo do desespero e da escuridão. Para enfrentar a vida “carece de ter muita coragem”, foi o que sempre disse Diadorim, uma presença permanente, terna e enigmática na vida de Riobaldo. Há que aprender a levantar mesmo quando o caminho é “resvaloso”.

 

“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem. O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre no meio da tristeza”![6]

 

http://www.jfmg.com.br/index.php?centro=not/ver.php&id_noticia=9007&tipo=destaque

 



[1] Carlos Rodrigues BRANDÃO. Os deuses do povo. São Paulo: Brasiliense, 1980, pp. 16-17.

[2] Roberto DA MATTA. O que faz o brasil Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1986, p. 115.

[3] Guimarães ROSA. Grande sertão: veredas. 14 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, p. 15

[4] Ibidem, p. 48.

[5] Ibidem, p. 143.

[6] Ibidem, p. 241-242.

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