Espiritualidades e reencantamento do mundo
A espiritualidade aponta para a presença de um outro mundo neste mundo, onde a vida não teme a morte e o sonho permanece possível. Nesse contexto, o 5º Fórum Social Mundial foi um acontecimento grandioso.
Faustino Teixeira
O 5º Fórum Social Mundial foi um acontecimento grandioso. O resultado em números foi bem superior aos Fóruns anteriores. Inscreveram-se 155.000 pessoas, de 135 países, envolvendo 6.588 organizações para participarem aproximadamente de 2.500 atividades. Entretanto, conforme o Comitê Organizador, o Fórum chegou a acolher 180 mil participantes.
Merece destaque a presença dos jovens, que vieram em peso a Porto Alegre. Só no acampamento da juventude estavam 35.000 pessoas. Os jovens definiram a “paisagem humana” do 5º FSM, com presença majoritária em quase todos os eventos. Foi uma contribuição decisiva para o clima de abertura, liberdade, espontaneidade, generosidade e diversidade deste evento único. Observou-se a presença de uma juventude militante, que reforçou o sonho e a esperança em um mundo novo.
Se o Fórum foi uma “ilha de invenção de utopias”, como lembrou Maria Rita Kehl, ou a “prefiguração de um mundo à medida dos valores do humanismo”, como acentuou Emir Sader, deve-se em grande parte ao vigor desta presença jovem. E os jovens estavam sedentos, em busca de novos horizontes e de um novo sentido para a vida. Daí seu êxodo para as oficinas e experiências que apontavam para caminhos distintos, que favoreciam novas fragrâncias.
Todas elas estavam repletas de jovens peregrinos, muitos deles em busca de algo em que confiar. Mesmo aqueles que se definiam “sem religião” não estavam desprovidos de espiritualidade, ou seja, aderiam a formas não institucionais de espiritualidade como as esotéricas, de nova era, holísticas, da ecologia profunda e assim por diante. Basta ver as atividades paralelas que ocorreram no Fórum, seja no acampamento da juventude, seja nos espaços ao longo do Guaíba, com as rodas de música, com as cirandas e danças de diversas procedências, como as verificadas no curioso espaço ocupado pelos “Nômades Galácticos”, que fizeram lembrar os anos 70, bem ao estilo de Woodstock.
Uma das novidades deste Fórum foi a inclusão de um novo espaço temático, dedicado ao tema da ética, novas cosmovisões e espiritualidades. Trata-se de uma demanda suscitada nos Fóruns anteriores. Em pesquisa realizada pelo Ibase com os participantes do 3º FSM, verificou-se que 62,2% dos entrevistados afirmaram ter uma religião. Nas diversas oficinas realizadas no 4º FSM, em Mumbai, na Índia, a relação com as espiritualidades era igualmente um traço característico. Em consulta feita pela internet antes do 5º FSM sobre sugestões para os temas de oficinas, a questão da espiritualidade apareceu com ênfase. Um tema que emergia quase como clandestino nos primeiros Fóruns foi ganhando força e vigor até merecer um espaço singular no Fórum de 2005. E o interessante é verificar que esta questão das espiritualidades irradiou-se pelas inúmeras oficinas ocorridas em outros espaços temáticos.
As oficinas realizadas no espaço temático “K”, dedicado ao tema das espiritualidades, mostraram com muito clareza a íntima relação que vigora entre a vida espiritual e a transformação social. Foram apresentadas e mapeadas uma série de iniciativas concretas de práticas espirituais e religiosas de diversas procedências envolvidas em trabalhos sociais, projetos educacionais e ambientais de longo alcance. A experiência das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e sua espiritualidade libertadora foi apresentada num dos dias, bem como as teologias libertadoras e sua presença social.
A ativista social americana Eve Marko relatou suas experiências no âmbito do zen budismo em favor de uma espiritualidade engajada, sobretudo o seu reconhecido trabalho no círculo internacional Peacemaker; o militante hindu Siddhartha, da organização Fireflies Ashram Dinnepalya (Bangalore), participou de diversas oficinas falando sobre o seu trabalho em favor da defesa e promoção dos direitos humanos; André Porto, da organização Viva Rio e URI (Iniciativa das Religiões Unidas), relatou os trabalhos sociais desenvolvidos pelas diversas tradições religiosas no Rio de Janeiro, em particular o engajamento religioso em favor do desarmamento; Monja Coen, missionária da tradição Soto Zen, falou de seu empenho no Conselho Parlamentar pela Cultura da Paz, em São Paulo.
Estiveram igualmente presentes nas oficinas outros núcleos inter-religiosos envolvidos em trabalhos sociais, que se articularam na Coalização Inter-Religiosa de Porto Alegre, voltada para a questão do diálogo para um mundo de paz. Estas experiências mostraram com clareza que a dinâmica de engajamento social e político necessita de um ancoradouro seguro. Como apontou Maria Rita Kehl, “uma disposição militante não nasce em terra devastada. É preciso pertencer a algum lugar, contar com alguma referência social estável, pisar em algum chão firme para tomar um impulso de vôo”.
As discussões e experiências sintonizavam-se com as grandes questões do 5º FSM, como o engajamento contra a guerra e em favor de uma cultura da paz. Temas de grande atualidade foram abordados: as religiões como elemento de transformação social; comunicação não violenta, ética, valores universais e cultura da paz; o budismo e a transformação social; ética internacional, conflitos religiosos e paz; a democratização das religiões; o combate ao fundamentalismo e à intolerância religiosa; o pluralismo religioso na gestação de um outro mundo possível; as religiões e a responsabilidade universal; o engajamento religioso na luta contra o desarmamento etc.
Chamou a atenção de todos os que participaram neste específico espaço temático a sede de espiritualidade, entendida como busca de um novo modo de inserção no mundo, marcada pelas dimensões de profundidade e interioridade. Foi recorrente a idéia da presença essencial da espiritualidade na formação do sujeito e na ampliação do olhar para o compromisso de transformação social. Algumas oficinas enfatizaram a importância da meditação como elemento de transformação social e o seu lugar na mudança de paradigmas da mente.
A espiritualidade aponta para a presença de um outro mundo neste mundo, onde a vida não teme a morte e onde o sonho permanece possível. A espiritualidade é fator de mudança pois é capaz de transformar paisagens com o trabalho interior de oxigenação dos sentimentos e facultar a emergência de um ser humano integralizado. Num tempo devastado pelo desgaste da solidariedade e compaixão, pelo risco da apatia e egocentrismo, a espiritualidade contribui para o reencantamento do mundo.
Há algo de espiritualidade na teimosa presença da utopia gestadora de tantos sonhos apresentados no Fórum Social Mundial. Apesar do pessimismo de José Saramago, a utopia está tatuada na sede de transformar o mundo, na busca de um novo tempo. As utopias são como os sonhos, nunca envelhecem. O escritor uruguaio, Eduardo Galeano, captou com maior sensibilidade a força desta utopia viva, ao lembrar os versos do cineasta argentino Fernando Birri: “O que eu posso dizer é que, para mim, a utopia está no horizonte. Eu sei perfeitamente que nunca a alcançarei. Se eu caminho dois passos, ela se afasta dois passos. Se eu dou dez passos, ela fica dez passos mais distantes. Para que ela serve então? Para caminhar”.
O que se viu em Porto Alegre, talvez um dos traços mais marcantes do evento, foi a presença partilhada deste sentimento quase-certeza de que o mundo pode ganhar no amanhã uma fisionomia diferente.
(Publicado na Agência Carta Maior - 19/02/2005)
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