terça-feira, 13 de abril de 2010

O peregrino e o convertido: D.Hervieu-Léger

Apresentação

 

Faustino Teixeira

PPCIR/UFJF

 

No âmbito das atuais pesquisas realizadas sobre o fenômeno religioso na modernidade, um dos nomes de destaque é o da socióloga francesa, Daniele Hervieu-Léger, atual presidente da Écoles de Hautes Études en Sciences Sociales (Paris) e responsável pela direção da revista Archives des Sciences Sociales des Religions[1]. Com uma significativa produção na área de estudos da religião, que remonta à década de 70, essa autora vem se firmando como uma referência na reflexão sobre modernidade, memória e tradição religiosa. São ricas e provocadoras suas indagações sobre a desconstrução dos sistemas tradicionais de crença e a singular mobilidade religiosa contemporânea.

 

A obra apresentada, O peregrino e o convertido, foi publicada originalmente em 1999, e as diversas traduções realizadas e em curso revelam a importância e atualidade da temática desenvolvida pela autora[2]. Trata-se de uma retomada da reflexão desenvolvida no livro La religion pour mémoire (1993), onde Hervieu-Léger busca trabalhar os processos de construção e transmissão das identidades religiosas na modernidade. O objetivo agora é tentar esclarecer a dinâmica que anima a continuidade crente no campo religioso ao final do século XX, ou seja, o processo de recomposição do imaginário religioso num tempo marcado pela crise das instituições tradicionais e de sua gestão da “memória autorizada”. Como assinala Hervieu-Léger, o panorama religioso que antecede ao novo milênio vem “marcado pela difusão do crer individualista, pela disjunção das crenças e das pertenças confessionais e pela diversificação das trajetórias percorridas por ´crentes passeadores`”[3]. Verifica-se, de um lado, a “desregulação institucional” da religiosidade; e de outro, a disseminação de novas formas de expressão religiosa: de uma religiosidade “flutuante” ou de elaborações sincréticas inéditas. Para além de uma “condensação do religioso no seio das religiões”, há que desocultar sua presença por toda parte, na medida em que esse religioso constitui “uma dimensão transversal do fenômeno humano que trabalha, de modo ativo e latente, explícito ou implícito, em toda a extensão da realidade social, cultural e psicológica, segundo modalidades próprias a cada uma das civilizações dentro dos quais se tenta identificar sua presença”[4].

 

O livro divide-se em seis capítulos. O primeiro deles versa sobre o tema da religião despedaçada (I), e traz uma reflexão primeira sobre a modernidade religiosa. Após situar o quadro geral da modernidade, a autora busca desenvolver a questão do paradoxo religioso nas sociedades seculares e, em particular, a desafiante questão para a sociologia da modernidade religiosa, da crise de credibilidade dos sistemas religiosos e da emergência crescente de novas formas de crença. As sociedades modernas não podem ser encaixadas numa perspectiva restrita de secularização, marcada pela idéia da privação social e cultural da religião. Curiosamente, a mesma modernidade secularizadora faculta a difusão de novas expressões religiosas, na medida em que suscita opacidade, instransparência e incerteza quanto ao futuro. O que caracteriza o tempo atual não é a mera indiferença com respeito à crença, mas a perda de sua “regulamentação” por parte das instituições tradicionais produtoras de sentido. O que ocorre é uma “bricolagem de crenças”, uma individualização e liberdade na dinâmica de construção dos sistemas de fé. Como indica a autora, “as crenças se disseminam. Conformam-se cada vez menos aos modelos estabelecidos. Comandam cada vez menos as práticas controladas pelas instituições”[5]. Torna-se comum a presença de crentes que se afirmam sem a adesão precisa a uma instituição particular. E esta proliferação de crenças que marca o cenário contemporâneo reflete largamente a necessidade sentida pelos indivíduos de “recomporem” o universo de sentido que eles mesmos sentem escapar de suas mãos numa modernidade intransparente.

 

No segundo capítulo, aborda-se a questão do fim das identidades religiosas herdadas (II). A interrogação que move a autora nesse momento refere-se ao modo como se processa a transmissão das identidades religiosas entre as gerações no contexto nebuloso da disseminação de crenças. Com base na singular reflexão de Halbwachs, e sua sociologia das identidades religiosas na modernidade, Hervieu-Léger sublinha a importância da transmissão regular das instituições e valores como elemento fundamental para a continuidade e sobrevivência da sociedade. Isto também se aplica ao campo religioso, pois é no movimento de sua transmissão de uma geração a outra que a religião se firma no tempo. O que ocorre na modernidade é um fenômeno complexo de “crise de transmissão” dessa “memória autorizada”, que é a tradição. As sociedades modernas tendem a ser cada vez menos sociedades da memória, uma vez governadas pelo “paradigma da imediatez”. Esse enfraquecimento ou perda das identidades herdadas vem ocorrendo de forma crescente no âmbito da transmissão religiosa: “os indivíduos constroem sua própria identidade sócio-religiosa a partir dos diversos recursos simbólicos colocados à sua disposição e/ou aos quais eles podem ter acesso em função das diferentes experiências em que estão implicados”[6]. Uma vez enfraquecida a capacidade reguladora das instituições religiosas, bem como os processos tradicionais de identificação religiosa, fica muito mais fácil a “saída da religião”. Ou tende a ocorrer uma nova escolha religiosa, com base nos recursos que os indivíduos vão encontrando pelo caminho ou se engrossa a fila dos que se definem como “sem religião”.

 

O que caracteriza a religiosidade das sociedades modernas é a dinâmica do movimento, mobilidade e dispersão de crenças. É uma dinâmica que tensiona com a figura típica e estável do homem religioso, que é sua condição de praticante. Na paisagem religiosa cristã, a figura do praticante foi sempre a mais evidente: do praticante regular que se insere numa bem definida territorialidade comunitária. Essa “figura emblemática” do praticante tende a pulverizar-se no modernidade, com a nova dinâmica da “mobilidade das pertenças, com a desterritorialização das comunidades, com a desregulação dos procedimentos da transmissão religiosa e com a individualização das formas de identificação”[7]. Em substituição a essa figura modelo de participação religiosa, que é a do praticante, a modernidade favorece a emergência de duas outras figuras que cristalizam melhor a dinâmica de movimento que marca a nova paisagem religiosa, a do peregrino e do convertido.

 

O capítulo terceiro busca situar essas figuras religiosas em movimento, concentrando-se particularmente na figura do peregrino (III). Para a autora, esse novo personagem enquadra-se como luva na especificidade da modernidade religiosa. É uma “figura típica do religioso em movimento, em duplo sentido. Inicialmente ele remete, de maneira metafórica, à fluência dos percursos espirituais individuais, percursos que podem, em certas condições, organizar-se como trajetórias de identificação religiosa. Em seguida, corresponde a uma forma de sociabilidade religiosa em plena expansão que se estabelece, ela mesma, sob o signo da mobilidade e da associação temporária”[8]. Para ilustrar essa sociabilidade peregrina, caracterizada pela mobilidade e confessionalidade fluida, a autora serve-se do exemplo da comunidade ecumênica de Taizé, fundada em 1940 pelo pastor Roger Schutz[9]. Menciona igualmente a experiência das Jornadas Mundiais da Juventude, na versão parisiense de 1997. São exemplos de uma “dinâmica de agregação e dispersão” que, para ela, definem uma distinta “territorialização simbólica da universalidade católica”.

 

A figura do convertido (IV) vem trabalhada no capítulo seguinte, e expressa uma clara perspectiva de identidade religiosa no contexto de mobilidade da modernidade, marcada pela tônica da escolha individual. Essa figura desdobra-se em três modalidades diferentes: do indivíduo que “muda de religião”; do indivíduo que se integra a uma tradição religiosa de forma inaugural; do indivíduo que se re-afilia à mesma tradição religiosa. Nesses diversos casos, a conversão é vivida como imersão num “regime forte de intensidade religiosa”. A emergência dessa nova figura no panorama religioso é expressão da “desregulação institucional” e traduz um dos postulados essenciais da modernidade religiosa, onde a identidade religiosa firma-se como fruto de uma escolha. Como mostra Hervieu-Léger, em todas as formas de conversão em curso cristaliza-se “um processo de individualização, que favorece o caráter que se tornou opcional de identificação religiosa nas sociedades modernas, e o desejo de uma vida reorganizada, que se exprime, muitas vezes, sob uma forma mais ou menos explícita, um protesto contra a desordem do mundo”[10]. É sugestivo perceber como a própria expansão do pluralismo e do relativismo, e o sentimento de insegurança a eles relacionados, acabam provocando a “reativação de identidades confessionais”, bem como o desejo de inserção num “regime intensivo de vida religiosa”.

 

No quinto capítulo, desenvolve-se o tema das comunidades sob o regime do individualismo religioso (V). Os dois capítulos anteriores tinham sublinhado que no centro mesmo da dinâmica de movimento que marca a paisagem das sociedades modernas estava o indivíduo. O traço peculiar e irresistível dessa paisagem é a “individualização” e “subjetivização” das crenças e praticas[11]. Um claro exemplo dessa tendência vem visualizado pela autora na “nebulosa místico-esotérica”. Trata-se de uma “religiosidade inteiramente centrada no indivíduo e sua realização pessoal”[12]. Essa individualização no campo religioso compagina-se com o individualismo moderno e configura uma afirmação de crença desvinculada de uma pertença específica. O “crer sem pertencer” é um dos traços do tempo atual e presentifica-se na lógica de uma “bricolagem de fé” que impossibilita a constituição de comunidades crentes mais definidas. Verifica-se uma “decomposição sem recomposição”, para utilizar uma expressão de F.Champion. Ou seja, a afirmação de um regime subjetivo de verdade que “dissolve, potencialmente, toda forma de comunalização religiosa”[13]. 

 

No capítulo final, aborda-se o tema das instituições em crise e da laicidade em pane (VI). A autora concentra-se aqui num dos temas mais atuais do debate francês em torno da laicidade. A constituição francesa de 1946 define a França como uma “República indivisível e laica”. Ao longo do processo histórico, a percepção dessa laicidade foi ganhando matizes diferenciados: de uma laicidade militante e comprometida, para uma laicidade de mediação. Os embates precisos com a questão do Islã, hoje a segunda religião na França, e a problemática das “seitas”, exigiram um novo posicionamento sobre a laicidade e seu papel na regulação institucional do religioso no regime republicano. A proposta defendida por Hervieu-Léger vai na linha de uma “laicidade mediadora”. Num tempo marcado pela desregulação institucional e pluralização do religioso, em que as instituições religiosas perderam sua capacidade de “enquadramento do crer”, torna-se cada vez mais decisiva a atuação do Estado na gestão e racionalização do debate em torno da delimitação prática do exercício de liberdade religiosa. O diálogo inter-religioso ganha um significado especial nesse debate. Nada mais urgente no tempo atual que a busca de uma nova dinâmica de entendimento entre as religiões, e Hervieu-Léger identifica no desenvolvimento das relações inter-religiosas “uma forma  e inovadora de regulação das identidades crentes às tradições particulares”[14].

 

Nos desdobramentos criativos da “escola francesa” das ciências sociais, Daniele Hervieu-Léger brinda os leitores brasileiros com uma rica e original contribuição para a compreensão do lugar e papel das religiões na paisagem religiosa contemporânea. É uma abordagem inovadora, que lança uma nova perspectiva para o estudo da secularização e a captação das formas contemporâneas de mobilidade religiosa. Mesmo tendo sido publicada na década passada, a obra permanece atual e provocadora. Revela-se particularmente importante para os leitores brasileiros que se deparam com um campo religioso que se mostra cada vez mais diversificado, como indicam os dados do último Censo Demográfico do IBGE (2000).

 

(Publicada no livro: Danièle Hervieu-Léger. O peregrino e o convertido. A religião em movimento. Petrópolis: Vozes, 2008, pp. 7-13)



[1] Dentre suas publicações: Vers un nouveau christianisme? Introduction à la sociologie du christianisme occidental (1986); De l´émotion en religion (1990); La religion pour mémoire (1993); Sociologies et religion. Aproches classiques en sciences sociales des religions (com J.P.Willaime – 2001); La religion en miettes ou la question des sectes (2001); Catholicisme français: la fin d´un monde (2003); Qu´est-ce mourir? (com J.Cl. Ameisen e E.Hirsch – 2003).

[2] O livro já foi traduzido na Itália (Il Mulino, 2003), Alemanha (Ergon, 2004) e Portugal (Gradiva, 2005).

[3] Daniele HERVIEU-LÉGER. Le pèlerin et le converti. La religion en mouvement. Paris: Flammarion, 1999, p. 25 (seguimos aqui, e nas demais citações, a tradução de João Batista Kreuch, para a edição brasileira da obra, publicada pela Vozes).

[4] Daniele HERVIEU-LÉGER. Le pèlerin et le converti, p. 19.

[5] Ibidem, p. 53.

[6] Ibidem, pp. 69-70.

[7] Ibidem, p. 94.

[8] Ibidem, p. 98.

[9] Trata-se de uma comunidade voltada para o trabalho com a juventude.

[10] Daniele HERVIEU-LÉGER. Le pèlerin et le converti, p. 140.

[11] Ibidem, p. 157.

[12] Ibidem, p. 162.

[13] Ibidem, pp. 179-180.

[14] Ibidem, p. 260.

Nenhum comentário:

Postar um comentário