quarta-feira, 21 de abril de 2010

Abertura à cortesia e hospitalidade inter-religiosa

Abertura à cortesia e hospitalidade inter-religiosa

Entrevista com Marco Lucchese e Faustino Teixeira

IHU Onlind - Edição 242 - 05/11/2007


Faustino Teixeira, professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais (UFJF), e o poeta Marco Lucchesi concederam a entrevista que segue, por e-mail, sobre o livro que acabam de lançar pela Editora Fissus, intitulado O canto da unidade. Em torno da poética do Rûmî.

Faustino Teixeira é doutor e pós-doutor em Teologia, pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma. Ele é autor de vários livros sobre a teologia do diálogo inter-religioso. É um dos grandes parceiros do IHU. Entre suas obras citamos os livros, por ele organizados, Nas teias da delicadeza (São Paulo: Paulinas, 2006) e As religiões no Brasil: continuidades e rupturas (Petrópolis: Vozes, 2006), este em parceria com Renata Menezes. Pierre Sanchis fez uma resenha deste livro que foi publicada na revista IHU On-Line, número 195, de 11-09-2006. Confira, também, uma entrevista com Faustino na edição 209 da IHU On-Line, com o tema “Por que ainda ser cristão?”; uma resenha feita por ele sobre o filme O grande silêncio, publicada na edição de número 212 da revista IHU On-Line, de 19-03-2007; e uma entrevista sobre a Teologia da Libertação, publicada edição número 214 da IHU On-Line de 2-04-2007.

Marco Lucchesi é graduado em História pela Universidade Federal Fluminense, mestre e doutor em Letras (Ciência da Literatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-doutor pela Universidade de Colônia. Atualmente, é professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria Literária, atuando principalmente com temas que envolvem filosofia, literatura italiana, neoplatonismo e teoria literária. Lucchesi é autor de vários livros, entre os quais citamos A sombra do amado (Rio de Janeiro: Fisus, 2000); Caminhos do Islã (Rio de Janeiro: Record, 2002); e Esphera (Rio de Janeiro: Record, 2003).

Sobre o poeta e místico Rûmi, confira a edição especial da IHU On-Line número222, de 04-06-2007, cujo tema de capa é intitulado Rûmî. O poeta e místico da dança do Amor e da Unidade. Nessa edição, leia as entrevistas concedidas porFaustino Teixeira“Rûmî é o poeta da dança da Unidade”, e por Marco Lucchesi, “Rûmî se utiliza do poder soberbo das metáforas”.

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Entrevista com Faustino Teixeira e Marco Lucchesi: Rûmi: um dos místicos mais abertos à cortesia e hospitalidade inter-religiosos

“Hei de lançar-me bêbado sem medo
a contemplar a alma do universo:
ou meus passos se apressam ao destino,
ou perco a vida, além do coração” (Rûmî)

IHU On-Line - Qual é a atualidade da poética de Rumi?
Faustino Teixeira -
 A poesia tem a força fabulosa de transformar a função natural das palavras. Na transmutação poética, a palavra destaca-se de sua função natural de reproduzir as coisas e deixa-se guiar pelas asas da imaginação criadora. Michel de Certeau  fala em “manipulação técnica”, mediante a qual as palavras se vêem atormentadas para poder dizer aquilo que literalmente não podem expressar. A poesia tem esse poder encantador de dar asas à imaginação para poder expressar o “rumor das coisas”, e se aproximar da “matéria volátil e incandescente da vida”. A poesia mística de Rûmî tem esse maravilhoso dom de nos despertar para o Real ensolarado que se camufla no coração de toda realidade. Ele diz num de seus mais lindos poemas, que “dentro deste mundo há outro mundo impermeável às palavras”. Para acessar esse mundo, é necessário ter um coração polido e transformar a paisagem interior. Há que lavar as mãos e o rosto “nas águas deste lugar” para poder sorver a riqueza de cenários que são inusitados.  É importante essa educação da sensibilidade para poder lutar contra um mundo marcado pelo “desgaste da compaixão”. O que é sempre atual na poética de Rûmî é a convocação ao amor. A seu ver, é a chama do amor que mantém a perseverança dos buscadores e faz despertar em seu coração o “perfume do Sedutor”. É a flama do amor que possibilita aos “amigos de Deus” captar o “perfume difuso” do Mistério maior que se espraia pela criação e história, convocando-os ao dinamismo de hospitalidade e solidariedade.

IHU On-Line - O que essa poética pode ensinar ao homem contemporâneo em termos de cultivo do espírito? 
Faustino Teixeira -
 O grande líder religioso mundial Dalai Lama  tem mostrado de forma muito clara a importância da distinção entre espiritualidade e religião. A espiritualidade relaciona-se com qualidades específicas do espírito humano, que podem ser desenvolvidas em alto grau também em pessoas não religiosas. São qualidades como a cortesia, o amor, a compaixão, a delicadeza, o cuidado, a hospitalidade, a solidariedade etc. Na poética de Rûmî, todas essas qualidades estão presentes de forma muito rica e trazem um ensinamento muito preciso aos nossos contemporâneos. Para ele, e tantos outros místicos de tradições diversificadas, o coração é a porta de entrada para a percepção do Real, é o órgão sutil, por excelência, da percepção mística. Não há como cultivar o espírito sem o trabalho incessante e diuturno de purificar o coração. Como diz o evangelho de Mateus, os “puros de coração” verão a Deus (Mt 5,8). Em várias passagens de sua poética, Rûmî sinaliza que os puros de coração mostram-se capazes de acolher a diversidade, de atuarem movidos pelos dons do cuidado, da generosidade e da delicadeza para com os outros.  Os valores que se desdobram da “lógica do coração” são bem diversos dos contra-valores que dominam hoje na racionalidade do mercado: a competição, a produtividade, o sucesso, o individualismo, o lucro, a vantagem a todo custo e o consumismo. Nesse sentido, a poética de Rûmî aponta para um horizonte distinto.

IHU On-Line - Rumi dizia que o espírito não está confinado aos limites da identidade, não sendo nem judeu, cristão ou muçulmano. Como essa idéia pode fomentar o diálogo inter-religioso na atualidade? 
Faustino Teixeira -
 Há um belo poema de Rûmî, no divan de Shams de Tabriz, no qual ele diz que não se reconhece como cristão, judeu ou muçulmano; nem como alguém do Ocidente ou do Oriente, nem “das minas, da terra ou do céu”. Não se reconhece como sendo feito de terra ou argila, mas como alguém que habita na sombra do Amado. Ele sinaliza que o seu lugar é o “não-lugar”, que venceu o dois e segue sempre a cantar e buscar o Um. O seu canto e sua dança traduzem a sede da Unidade. Não existem para ele nós ou vínculos que o impedem de sonhar com a ecumene universal. Talvez seja um dos místicos mais abertos à cortesia e hospitalidade inter-religiosos. O que mais importa para ele não são os nomes e a as formas, o que é espuma e está na superfície. Sua sede mais funda é da água pura, das qualidades mais profundas, que tocam a essência que está para além dos namarupa (nomes e formas). São qualidades que estão presentes e vivas em todo coração generoso e aberto, ainda que suas expressões não se adequem às regras das ortodoxias. Em passagem muito citada de seu mathnawi, Rûmî destaca o valor da oração simples e afetuosa de um pastor, animada por um coração que arde de amor. Ela se faz mais importante que muitos ritos enclausurados em sua exterioridade. E assinala que os verdadeiros mergulhadores não precisam de sapatos. 
  
IHU On-Line - Como o amor enquanto presença e ausência se faz notar nas obras do poeta?
Faustino Teixeira -
 Para Rûmî, o amor é a expressão mais clara da sede metafísica que anima os amantes em sua busca do Mistério maior, simultaneamente transcendente e imanente (tashbih e tanzih). É a flama do amor que inspira a flauta de bambu (ney), arrancada de sua raiz, a desvelar os segredos mais íntimos do Amado criador de todas as coisas. O tema do amor está presente tanto em sua produção poética como na sua prosa. O ser humano, como a cana de bambu (flauta), traz consigo o grito de alguém que foi destacado de sua fonte, mas que anseia pela integração no mistério do Uno. É nesta árvore da Unidade que o ser humano pode encontrar a verdadeira paz. Na visão de Rûmî, mesmo sem poder compreender o mistério desta árvore, é na sua sombra que se desvela um caminho alternativo: “Se não posso compreender que árvore é essa, contudo sei que, depois que deitei meu olhar sobre ela, meu coração e minha alma se tornaram frescos e verdes. Vou então me colocar à sua sombra”.

IHU On-Line - Leonardo Boff  aproxima São Francisco e Rumi em função de suas experiências místicas radicais. Em que sentido podemos reinterpretar essas duas trajetórias a fim de resgatar a autenticidade do homem reencontrado com o cosmos?
Faustino Teixeira -
 Rûmî e São Francisco  são contemporâneos. Quando Rûmî nasceu, São Francisco tinha 26 anos. Os dois viveram quase no mesmo período. Mesmo sendo de lugares diferentes, Pérsia e Itália Central, partilharam de valores e ideais muito semelhantes. Como sublinhou Boff, “ambos são expressões notáveis do tempo do eixo ou do Espírito no mundo”. Os dois foram portadores de uma missão kairológica, de um tempo seminal, grávido de esperança, vida e hospitalidade. Os dois nunca se encontraram, mas muitos pontos comuns os irmanam, como o amor pelos mais simples, a humildade radical, a pobreza e a paixão pelo cosmo sagrado. 
 
IHU On-Line - Quais foram os ecos do lançamento do livro O canto da Unidade?
Faustino Teixeira -
 O livro foi lançado no dia 18 de outubro, no Rio de Janeiro, na livraria Letras e Expressões (Leblon). Foi um evento marcado por muita alegria e informalidade. Estavam presentes não só os dois organizadores do livro, Marco Lucchesi e Faustino Teixeira, como também dois dos autores de artigos publicados no livro: Leonardo Boff e Mário Werneck . 
Não há como deixar de destacar o resultado do trabalho editorial de Armando EriK e sua equipe (editora Fissus). O livro apresenta uma capa extremamente feliz, de autoria de Daniela Cronolly de Carvalho, e uma apresentação gráfica de primeira qualidade. Vale também destacar o lindo texto de Pablo Beneito  e Pillar Garrido  que apresentam a obra.

IHU On-Line - Quais são as maiores dificuldades de se traduzir Rumi e de tornar sua obra conhecida?  
Marco Lucchesi -
 São muitas e bem variadas. Primeiro o volume. Rumi é um poeta oceânico. A vastidão de sua obra e a variedade das formas poéticas assumidas representam algo comparável à obra de Dante  ou de Petrarca . Depois, o problema do acesso às edições críticas e isentas de um emaranhado de autoria e remissão. O trabalho monumental de Furuzanfar dá bem a idéia do que vamos dizendo. Não fossem bastantes esses desafios, a língua de Rûmî guarda uma extrema complexidade, que vai além do estudo da gramática persa, mas que se localiza na riqueza de suas metáforas e alegorias, translatos, similitudes inesperadas e remissões delicadíssimas. Finalmente, a música do original e a sua releitura na língua de chegada, com a sua tradição poética. Foi trabalho intenso em que a presença de Rafi Moussavi se mostrou essencial.    

IHU On-Line - Quais são as maiores peculiaridades de sua poética? 
Marco Lucchesi -
 A de uma simplicidade absoluta, praticamente inatingível. Água pura. Água de fonte cristalina. As metáforas surgem em estado larval. As imagens tomam um sentido físico, táctil e visual. Como se víssemos a coisa. Mesmo quando não. Como se a descobríssemos áspera e forte, mesmo como promessa de um estado que ainda não se completa. Temos uma cascata de imagens. Imagem de imagem. Alusão de alusão. Alegoria de alegoria. E o resultado muitas vezes não deixa de ser vertiginoso, de saltos largos, de elementos que se mostram, de tão claros, quase nebulosos.  A dialética do véu e do rosto. Quando muito o primeiro. Raras vezes o segundo. Quase um suplício, de espera de promessa.  E – como diria Machado – se nem sempre compreendemos, a culpa é do leitor e não do poeta...

IHU On-Line - Como percebe o uso de uma lógica não linear em seus poemas?  O que essa poética pode ensinar ao homem contemporâneo em termos de  cultivo do espírito?
Marco Lucchesi -
 A poesia mística não está além ou acima, ao lado ou ao longe das categorias poéticas e de suas lógicas plurais. Deslocamentos. Inversões. Dislates aparentes. Absurdos luminosos. Metonímias. E grandes repertórios de metáforas. São elementos que pertencem à poesia mística e não mística. E Rûmî permanece vivo e autônomo (diante de outras de suas inúmeras facetas) como poeta de marca. E do muito que se pode aprender com ele, Faustino Teixeira e Leonardo Boff já o disseram com acerto. E também Mário e Heliane. Quanto a mim, penso que a leitura de Rûmî para o leitor atual é a de um poeta que, pela beleza de sua obra, é tão ou mais contemporâneo do que nós, e nos acena para um exercício de silêncio e abandono ativo, que caracteriza a digital da poesia. 

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