terça-feira, 30 de agosto de 2022

Sobre perdas, alegria e amor

Sobre perdas, alegria e amor


Faustino Teixeira

IHU - Paz e Bem


Já fazem mais de 30 dias que perdi minha mãe, a querida Dama da Delicadeza. Ela partiu leve... Meu último encontro com ela ocorreu três dias antes da morte. Já não falava, mas olhava serena com aquele olhar maravilhoso e terno. Toquei suas mãos e senti a pele linda, lustrosa e o rosto brilhava de uma forma magnífica. De vez em quando ela simplesmente jogava um beijo para nós que estávamos no quarto: eu, Teita e o irmão mais velho, José Geraldo.

Lembrei-me da passagem de meu irmão, André, há tanto tempo, e do natal que passei com minha irmã, Maria Aparecida, junto dele no hospital. Ele, com aquela enorme ferida nas costas, vivendo as dores de uma leucemia fulminante. Eu tinha 13 anos na ocasião. Foi quando a morte apresentou-se a mim pela primeira vez. Dali em diante, o tema sempre esteve no centro de minhas atenções.
Relendo agora o livro de Adriana Lisboa, nesse início de manhã do dia 30 de agosto, memórias lindas tomam o meu coração. Adriana tem o dom da palavra e a capacidade de sintetizar sentimentos que são também os meus.
Adriana diz que "talvez não saibamos como transformar a experiência do luto numa experiência coletiva - sobre a qual se fala, que se vive abertamente, sem que seja preciso pedir desculpas pelas lágrimas que vêm"
O bonito na reflexão de Adriana, que há mais de vinte anos é budista e se define como agnóstica, é o toque da alegria. Perdeu em intervalo pequeno sua mãe e seu pai. Quis, porém, apesar da dor, conservar viva a alegria. Depois da perda dos pais, Adriana quis vestir roupas de cores vivas: "Acho que por isso quis vestir roupas claras e alegres no velório da minha mãe e, sete anos e meio depois, no de meu pai (minha família fez o mesmo)".
Em certa parte do livro, ela fala do anseio impossível cantado por Bob Dylan para seu filho, nos anos 1970: "Forever young". Pensa na canção e na ilusão de Dylan em querer para o filho uma juventude eterna. Nada mais do que o "anseio pelo impossível". Não há cura para a incompletude. São reflexões de Adriana que tem a marca viva e realista do budismo, para mim imprescindível.
A mãe de Adriana tinha morrido antes do pai, num intervalo de seis meses e dezoito dias. Tinha sido vítima de um câncer. Seu pai morreu depois, em decorrência de complicações da Covid, em 20 de agosto de 2021.
Lindas foram suas palavras para o pai no CTI, três dias antes de sua morte. Entre outras coisas disse a ele a importância de ir "às palavras simples, às palavras de dentro, às palavras-cicatrizes".
Adriana, de forma linda, fala da arte japonesa do kintsugi, "que consiste em colar com laca e pó de ouro os objetos de cerâmica quebrados". É uma bela arte que sublinha com apreço o "caráter transitório e imperfeito de tudo". Como diz Adriana, "não se cola um vaso quebrado de cerâmica de modo a fazer sumir as marcas do acidente, mas sim de modo a sublinhá-las, fazê-las reluzir, resplandecer".
Com a memória dessa arte, Adriana viveu com tranquilidade e emoção a passagem de seu pai, como tinha vivido antes a passagem de sua mãe.
Adriana decidiu viver o luto com cores alegres. Ela e os irmãos decidiram por um caixão simples. E reflete: "Oxalá fosse possível chegar ao dia de nossa morte com a roupa do corpo e nada mais". E completava com a amiga: "e um copinho de cachaça e um bom fuminho". Acrescenta, que nós complicamos tudo, mesmo na hora da morte. E indaga sobre a hipótese de se viver esse momento de forma menos pesada.
E entender a vida, com tranquilidade, sabendo com clareza de sua impermanência. E aqui novamente a arte japonesa: "É possível viver em paz num estado de antiautoajuda. Com cicatrizes luminosas, sem a obsessão da cura, sem a obsessão de que tudo tenha que parecer novo e perfeito".
Magnífica a reflexão de Adriana. Penso da mesma forma.
No caso de seus pais, lembra Adriana, já estavam quase fazendo 60 anos de casados. Um tempo antes, tinham decidido casar-se de novo, no meio da rua, no pandemônio do Largo do Machado. Ele pediu a ela novamente em casamento e trocaram alianças. Comenta Adriana:
"Para passar mais de sessenta anos com alguém, é preciso, eu suponho, entender essa ´pureza da improvisação`. Improvisação da vida que vai, também, retirando. Das cicatrizes que não têm como ser apagadas. Esse singelo kintsugi do dia-a-dia."
Adriana lembra uma bela passagem do livro de Rosa Montero, em que ela diz:
"Contar-nos o que fomos um para o outro, dizer-nos todas as palavras belas e necessárias, construir pontes sobre as fissuras, limpar a paisagem das ervas daninhas. E há que se talhar esse retrato redondo na pedra sepulcral da nossa memória".
Adriana reflete também, pertinentemente, sobre a importância de não querer "imortalizar" nossos nomes: "Deixar um feito ou uma obra que sobreviva por um pouco mais de tempo, com o nosso carimbo? Que bobagem".
Adriana tem razão, também na sua crítica a essa loucura que ocorreu na pandemia entre alguns de querer fazer perdurar tudo: uma tendência quase obrigatória em querer "gravar tudo, de guardar tudo, o registro audiovisual de todas as palestras e encontros virtuais de que participamos"... Como se tudo tivesse que, necessariamente, conter nossa "pegada indelével"!
Diz com razão Adriana, que às vezes "precisamos esquecer" para nos transformar, como fazem as borboletas esquecendo os casulos. Vivemos, sim, num "caráter cruzado`de existências: "Gente, pedra, rio, planta, palavra, tudo que existe pode estar sob a condição de encantamento ou desencantamento". E saber, com a lembrança bonita das palavras do suave monge vietnamita Thich Nhat Hanh, que todos "vamos nos encontrar sempre nas miríades de caminhos da vida".

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Ainda sobre os Pentecostais

 Ainda sobre os Pentecostais

 

Faustino Teixeira

IHU / Paz e Bem

 

 

Escrevi recentemente aqui no Face reagindo às palavras de Leonardo Boff a respeito da presença dos neo-pentecostais no Brasil, particularmente nas eleições que se aproximam. Dentre os comentários que recebi, gostei da abordagem feita pelo amigo sociólogo Pedro Ribeiro de Oliveira. Ele mencionou, com razão, que na minha reflexão elenquei reflexões provenientes de artigos mais antigos, o que tem razão. Fui então buscar novos elementos em reflexões mais recentes e percebi que por parte de autores sérios, a perspectiva não tinha se alterado substancialmente.

 

Vejo que trabalhos importantes continuam sendo feitos por autores como Regina Novaes e Ronaldo de Almeida, bem como as reflexões do pessoal do ISER, no Rio de Janeiro. É o caso de Ana Carolina Evangelista, pesquisadora naquela ONG. Li com carinho o seu artigo: Desvendando o voto evangélico. Ela nos chama a atenção para um detalhe nem sempre percebido. Não há como pensar que todo o bloco evangélico voto como se fosse um rebanho. É uma visão curta e problemática. Diante da orientação de um pastor, não significa que todos os que participam de sua comunidade partilhem de sua influência, embora esta não seja negada. Algumas igrejas em particular, como as Assembleias de Deus e a Igreja Universal do Reino de Deus, como mostra a autora, vêm se organizando para firmar presença de candidatos definidos pelas lideranças dessas igrejas. 

 

Não se pode negar o “ativismo de fé” exercido pelos pentecostais , também fora dos templos. É de impressionar a estratégia adotada por segmentos dessas igrejas em ocupar cargos importantes no governo federal atual: Ministério da Mulher, Casa Civil, Advocacia Geral da União, Ministério do Turismo e Secretaria do Governo. Os dados estão aí para comprovar. A busca de um alinhamento religioso dos setores conservadores está em curso, mas não envolve apenas o mundo evangélico, mas também o católico, não nos esqueçamos disso. O importante é entender claramente que não há voto homogêneo no campo evangélico, e isso a Ana Carolina mostrou com pertinência.

 

As pesquisas realizadas pelo antropólogo da Unicamp, Ronaldo de Almeida, indicam que além da visibilidade da presença evangélica no Congresso Nacional, temos também hoje o crescimento de presença católica conservadora, de parlamentares vinculados à Renovação Carismática Católica. Ele lembra também que começam a se articular os núcleos de parlamentares com ligação com a matriz afro-brasileira, com a irradiação da Frente Parlamentar dos Terreiros. É uma frente nova e importante, com um trabalho significativo voltado para reagir às ações violentas hoje em curso no Brasil contra o povo de santo, o que envolve também a violência dos chamados “traficantes evangélicos”.

 

Não podemos desconhecer, lembra Ronaldo de Almeida, que o “campo dito progressista” procura ganhar espaço no mundo legislativo, embora com menos visibilidade e amplitude, mas com presença importante de resistência contra os conservadores. Veja o seu artigo: Religião e política (em parceria com Clayton Guerreiro - 2022).

 

 

Segundo pesquisa recente do Datafolha, verificamos que o desempenho de Lula entre os evangélicos de baixa renda ainda é frágil, embora os dados apontem um “empate técnico” entre ele e Bolsonaro no apoio desses segmentos evangélicos mais pobres. É o que não ocorre entre os eleitores evangélicos de renda média e alta, onde o apoio a Bolsonaro é maior.

 

Li também com grande interesse o livro publicado por Christina Vital da Cunha, Oração de traficante(Garamond/Faperj, 2015), onde ela divulga os dados de sua longa pesquisa realizada por mais de 13 anos no conjunto de favelas de Acari (Rio de Janeiro).

 

Num dos capítulos de seu livro, ela fala da importância que as igrejas pentecostais exercem no campo da afirmação da cidadania dos pobres. Fala, por exemplo, do significativo empenho em favor do lazer, com as inúmeras atividades exercidas para as crianças, jovens e adultos. Fala também da “preservação de redes de solidariedade”, bem como dos mecanismos implementados em favor da preservação e cuidado com a segurança dos fiéis, num território marcado por um quadro de viva insegurança.

 

O autora toca igualmente no tema da teologia da prosperidade, objeto de tantos questionamentos. Ela sinaliza que esta teologia serve, muitas vezes, como artimanha de socorro aos pentecostais, pensando aqui em particular na Igreja Universal. Segundo Christina, essa teologia é responsável por grande motivação dos frequentadores dos cultos, sendo fundamental para “o enfrentamento de problemas emocionais, materiais e/ou espirituais”. 

 

Christina desenvolve também na sua obra a delicada questão dos traficantes e evangélicos. Sublinha que nas favelas, em áreas de presença do tráfico, os evangélicos são muito respeitados. Eles “desfrutam de um lugar privilegiado no imaginário local”. As lideranças evangélica são respeitadas entre os traficantes, por serem “identificadas como portadoras de um poder” e “mediadoras privilegiadas de uma mensagem”. 

 

E houve mudanças importantes com respeito ao posicionamento religioso dos traficantes nas favelas cariocas. Se antes eles se identificavam mais com as religiões de matriz africana (décadas de 1980 e 1990), hoje a situação mudou drasticamente, com a transferência de influxo para as igrejas pentecostais e neo-pentecostais. Hoje verificamos, com tristeza, a prática recorrente de “destruição” das imagens e símbolos identificados com a matriz afro e sua substituição por símbolos evangélicos: imagens de Jesus Cristo. 

 

Os convertidos evangélicos falam que sentem agora um clima de maior paz e segurança: de tranquilidade vivida na favela. Quando a autora fala em “traficantes evangélicos” ela quer falar do “conjunto de atores sociais, os traficantes, que estabelecem com a religião evangélica e com as redes que as compõem no território múltiplas formas de aproximação/relação”. São núcleos que frequentam os cultos, participam das campanhas das igrejas, financiam eventos programados pelas igrejas, promovem cultos de ação de graça, pintam muros com mensagens evangélicas etc.

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

Jesus e as outras religiões

 Jesus e as outras religiões

 

Faustino Teixeira

IHU / Paz e Bem

 

 

Sou um profundo admirador do papa Francisco, todos sabem. Semanalmente posto mensagens suas, seja as da Audiência Geral, como a Angelus. Suas palavra encantam e provocam: trazem um sentido de vida que é simplesmente fantástico.

 

No campo do diálogo com as religiões, há momentos ricos em reflexões tecidas ao longo do seu pontificado.

 

Ontem, 21/08/22, porém, ele marcou presença numa perspectiva mais tímida, se pensarmos no desafio da abertura inter-religiosa. Sua fala no Angelus provoca dificuldades para os que trabalhamos com o tema do diálogo inter-religioso. Se for entendida como uma mensagem específica para os cristão, é possível celebrar sua fala, mas como a mensagem teve um tom universalista, já tendo a discordar, com todo o respeito. A reflexão é a seguinte:

 

"Pensemos então em quando Jesus diz: ´Eu sou a porta: se alguém entrar por mim, será salvo` (Jo 10, 9). Significa que para entrar na vida de Deus, na salvação, é preciso passar por Ele, e não por outro, por Ele; acolher a Ele e à sua Palavra. Assim como para entrar na cidade era preciso ´medir-se` com a única porta estreita deixada aberta, também aquela do cristão é uma vida ´à medida de Cristo`, fundada e modelada n’Ele. Significa que a medida é Jesus e o seu Evangelho: não o que pensamos, mas o que Ele nos diz."

 

Vejo como algo extremamente complicado nesse tempo de pluralismo religioso dizer, sem mais, que "para entrar na vida de Deus, na salvação, é preciso passar por Ele, e não por outro". A frase, dita assim, sem um traço de maior precisão, acaba sendo ofensiva para com as outras religiões não cristãs. O cristão, sim, pode dizer que para ele, Jesus é o horizonte fundamental de referência para o acesso a Deus, mas não estender essa perspectiva universalmente para todos os outros crentes.

 

O meu orientador de pós-doutorado, o jesuíta Jacques Dupuis, dizia em sua obra fundamental, "Rumo a uma teologia cristã das religiões" (1997), que não se pode entender Jesus como "absoluto", e muito menos o cristianismo como único caminho de salvação. O atributo "Absoluto" só pode ser aplicado a Deus, à Realidade última. Deus, como Ser Infinito, está para além de toda realidade finita, incluindo aqui "a existência humana do Filho-de-Deus-feito-homem". Não se pode, portanto, atribuir a Jesus o qualificativo de salvador absoluto.

 

Outro jesuíta que trabalhou com pertinência essa delicada questão foi Roger Haight, em seu livro "Jesus símbolo de Deus" (2003). Haight pontua que aqueles que não conseguem "reconhecer a verdade salvífica de outras religiões podem implicitamente estar operando com uma concepção de Deus distante da criação". Isso é muito sério e exige de nós um olhar mais ampliado e respeitoso a propósito de outros caminhos de busca religiosa. Segundo Haight, "Jesus não é constitutivo da salvação em termos universais".

 

Hoje sabemos com clareza teológica que o pluralismo religioso deve ser abraçado como um valor essencial. Sabemos também que nenhuma religião específica detém o primado da salvação, e que toda tradição religiosa, incluindo o cristianismo, é capaz "de aprender mais acerca da realidade última e da existência humana do que se acha disponível em uma única tradição". Há que ter muita humildade nesse campo. Entender também que não se "perde" passos da densidade salvífica quando se reconhece autenticamente a presença de Deus, de outras formas, nas outras religiões. Caso contrário, estimula-se não a comunhão mas a competição entre as religiões. 

 

Há que reconhecer hoje, com nitidez, que em determinadas tradições religiosas, Jesus não aparece como "o" caminho, na medida em que o Mistério Maior Inominado manifesta-se por outras formas e mediações. Reduzir todo o espaço salvífico em Jesus é, a meu ver, restringir o campo da salvação. Os amigos de outras tradições religiosas são capazes de responder ao Mistério Maior na prática mesmo de suas tradições, com as mediações específicas que ali são reconhecidas e validadas.

 

O mesmo vale para a igreja. Não se pode considerá-la, sem mais, como "sacramento universal da salvação". É outro equívoco. O fato dela ser "sacramento do Reino" não implica - como diz Dupuis - necessariamente que ela “exerça uma atividade de mediação universal da graça em favor dos membros das outras tradições religiosas que entraram no Reino de Deus respondendo ao convite de Deus pela fé e pelo amor".

 

domingo, 21 de agosto de 2022

Perplexidades em torno ao mundo pentecostal: dialogando com Leonardo Boff

 Perplexidades em torno ao mundo pentecostal: dialogando com Leonardo Boff

 

Faustino Teixeira

IHU / Paz e Bem


 

Confesso a vocês que fiquei preocupado ao ler o artigo recente de Leonardo Boff publicado no IHU de 19/08/2022. O título do artigo: A importância do fator religioso nas atuais eleições presidenciais. Na linha de posicionamentos tradicionais da igreja católica e de segmentos da sociologia, Boff ficou refém da visão recorrente entre segmentos da esquerda na avaliação das igrejas neopentecostais. Cito aqui uma parte do texto onde ele fala a respeito:

 

“(...) O grande desafio da campanha da coligação ao redor de Lula/Alckmin, que é também das Igrejas cristãs históricas, principalmente da Católica, é como atrair estas massas, manipuladas e ludibriadas pelas igrejas pentecostais, para os valores do Jesus histórico, muito mais humanitários e espirituais do que aqueles apresentados pelos “pastores e bispos” autoproclamados e verdadeiros lobos em pele de ovelha. Estes usam a lógica do mercado, da propaganda e estilos que contradizem diretamente a mensagem bíblica e de Jesus, pois utilizam-se diretamente da mentira, da calúnia, da fake news.

 

Vale mostrar a estes seguidores das Igrejas pentecostais como o Jesus dos evangelhos sempre esteve ao lado os pobres, dos cegos, dos coxos, dos hansenianos, das mulheres doentes, e os curava. Era extremamente sensível aos invisíveis e aos mais vulneráveis, homens ou mulheres, enfim, àqueles cujas vidas viviam ameaçadas. Vale muito mais o amor, a solidariedade, a verdade, e acolhida de todos sem discriminação, como os de outra opção sexual, vendo nos negros, quilombolas e indígenas nossos irmãos e irmãs sofredores. Importa se solidarizar com eles e estar junto com eles para fazerem o seu próprio caminho. Esse comportamento vale muito mais que o “evangelho da prosperidade” de bens materiais que não podemos carregar para a eternidade e, no fundo, não preenchem nossos corações e não nos fazem felizes. Ao passo que os outros valores do Jesus histórico vão conosco como expressão de nosso amor ao próximo e a Deus e nos trazem paz no coração e uma felicidade que ninguém nos pode roubar.[1]

 

Vejo na passagem alguns riscos bem concretos na avaliação das igrejas pentecostais. Há algum tempo somos provocados por autores específicos a questionar nossa visão tradicional sobre os pentecostais, para além da posição enrijecida de parte da esquerda que não vê nos pentecostais senão alienação. Cito aqui o exemplar livro de Waldo Cesar & Richard Shaull, Pentecostalismo e futuro das igrejas cristãs[2].

 

Richard Schaull relata com rigor a difícil estrutura social no Brasil, que provocou um duro enrijecimento das condições de vida dos pobres. Reconhece que foi justamente nessa situação de precariedade social e humana que “muitos passam a conhecer uma rica experiência , que não podemos imaginar, de cura e presença salvadora de Deus”[3]. Mais adiante, continua o autor: “Hoje os pentecostais pregam para os pobres e excluídos, humilhados e oprimidos sob o poder esmagador da opressão. Sua experiência é de impotência e falta de dignidade (...). Em tal situação, os neopentecostais anunciam o amor de um Deus cheio de graça, que deseja que eles tenham, aqui e agora, uma vida plena, bem como a presença do Espírito Santo com poder, para dar vida àqueles a quem ela havia sido negada”[4].

 

Vejam que é outra perspectiva de abordagem, que resgata positivamente traços da experiência neopentecostal. No âmbito das ciências sociais, acompanhamos as reflexões serenas e precisas de Regina Novaes sobre a Assembleia de Deus num município do Nordeste, com nome fictício de Santa Maria. Foi sua tese de mestrado no Museu Nacional. Regina lembrava em seu trabalho, publicado em 1985[5], a “proposta de vida” que encontrou entre os camponeses da religião em sua experiência pentecostal. De forma revolucionária, Regina foi uma pioneira em reconhecer o trabalho social dos pentecostais, quebrando aquela ideia jargão que são alienados. Mostrou com sua pesquisa, o empenho de núcleos pentecostais na luta pela terra. O elemento novo que ela nos trouxe foi sublinhar “a contaminação da área dos direitos trabalhistas e dos direitos pela posse e uso da terra por categorias religiosas. Os ´salmos` , a ´sagrada escritura` estariam, neste sentido, legitimando e até sacralizando a luta pelos direitos”[6]. Como vemos, o traço da relativização acontece aqui com pertinência, pontuando a complexidade de tirar impressões apressadas sobre os pentecostais. O trabalho de Regina foi pioneiro nesse campo.

 

A mesma Regina, em outro trabalho importante - publicado no livro "Religião e cultura popular" (2001), volta a relativizar esse paradigma que encerra o pentecostalismo no universo conservador. Vai sublinhar, com muito pertinência, o papel dos pentecostais numa fundamental rede de sociabilidade e de ajuda mútua. Mostra igualmente a presença dos pentecostais em rincões que não foram atingidos pela pastoral católica, ali onde estão os mais pobres dos pobres:

 

“Várias pesquisas já demonstraram que são os evangélicos os que mais chegam nas margens da sociedade. Chegam a lugares de onde nenhuma outra instituição civil ou religiosa ousa se aproximar. Estudos demonstram também que são apenas eles que – ao fazer nascer novas e independentes denominações – provocam dinâmicas agregadoras locais sem contar com nenhum recurso material e simbólico externo”[7].

 

O historiador Marcos Alvito comenta também essa capacidade dos pentecostais avançarem para “dentro da favela”, como dizem eles, ou alcançarem “as vielas mais recôndidas e as áreas mais pobres”[8]. Diz ainda que é nos cultos “que se reconstrói o significado de tantas vidas ameaçadas pelo caos, paralisadas pela perplexidade, mergulhadas na dor e acossadas pela iniquidade, pelo Mal”[9]. Muito rica também a descrição feita pelo autor no livro sobre o carisma de uma liderança pentecostal, que em culto ecumênico realça o papel de um "exército de anjos" que protegem os quatro cantos de Acari[10]. Trata-se de uma descrição de beleza única.

 

Beleza que também percebi no filme "Santa Cruz", de João Moreira Sales e Marcos Sá Corrêa, abordando o nascimento e desenvolvimento de uma pequena comunidade pentecostal na periferia do Rio de Janeiro. O retrato que ele passa dos pentecostais vem tecido por um enorme respeito, no sentido de uma ressignificação do sujeito empobrecido pela experiência espiritual. Em artigo que publiquei sobre os pentecostais na Revista Concilium em 2014, caminhei nessa direção alternativa e sublinhei a importância desse filme: 

 

“O filme quebra, assim, a imagem de certas representações correntes sobre o pentecostalismo, apontando caminhos novos de interpretação, favorecendo um olhar internalista e compreensivo sobre esse complexo fenômeno. Possibilita, em verdade, um olhar sobre o potencial da igreja em “formar comunidade moral e rede de ajuda mútua”. Como se a experiência comunitária “preenchesse aos poucos um espaço vazio”, de baixo potencial de dignidade. O filme busca retratar os três primeiros meses da comunidade e as mudanças suscitadas pela nova igreja: “A integração promovida pela igreja criou amizade entre os vizinhos, formou rede de apoio e ajuda mútua entre iguais, valorizando e ´preenchendo` de relações positivas o bairro antes ruim, ´terra de ninguém` , vazio civilizatório.”[11]

 

Retomei depois semelhante reflexão em outro trabalho publicado no IHU-Notícias, em novembro de 2021: Um outro olhar sobre os pentecostais: um desafio para o nosso tempo[12].

 

Menciono também um trabalho premiado nas ciências sociais, de autoria de Maria das Dores Campos Machado, Carismáticos e pentecostais. Adesão religiosa na esfera familiar[13]. A autora, que chegou a escrever na própria Folha Universal, mostrou em seu livro o papel exercido pelas igrejas pentecostais no campo da “autonomização feminina”. Ela mostrou como a prática pentecostal acaba proporcionando aos fiéis experiência importantes de intensificação da qualidade de sujeitos: muitos dos participantes conseguem, via religião, romper com vícios problemáticos (álcool e drogas) e reconstituir o tecido familiar. A autora revela que aqueles que buscam nas igrejas pentecostais uma “vida santificada”, acabam exercendo concretamente em suas igrejas e atuações sociais algo que reforça a dignidade de pessoa de cada um, e que levado às últimas consequências, abala “não só a autoridade masculina, mas a própria instituição que se coloca como responsável pela salvação das almas”[14]. São práticas religiosas que acabam, na verdade, proporcionando uma maior igualdade de gênero e um arrefecimento da violência doméstica. Como também indica o antropólogo Ronaldo de Almeida, numa perspectiva mais sociológica, verifica-se no pentecostalismo o estabelecimento de “vínculos sociais que atenuam a situação de vulnerabilidade sociais das camadas mais pobres”[15]. Algo que vem igualmente partilhado pela análise de Regina Novaes, para quem os evangélicos são “os que mais chegam nas margens da sociedade”, provocando “dinâmicas agregadoras locais sem contar com nenhum recurso material e simbólico externo”[16].

 

Mais recentemente, o livro de Juliano Spyer, Povo de Deus. Quem são os evangélicos e porque eles importam, com apresentação de Caetano Veloso[17](Geração Editorial, 2020). Já no prefácio, com sabedoria, Caetano Veloso, que tem dois filhos ligados à Igreja Universal do Reino de Deus, falou sobre “o clima de honestidade dos fiéis que não podem ser confundidos com descaminhos éticos de certas lideranças”[18]

 

Os dados têm-nos revelado que os evangélicos e pentecostais constituem hoje “a religião mais negra do país”, sendo a preferência principal a Assembleia de Deus[19]. O autor mostra que “para muitos negros e pardos que são encarcerados ou se tornam dependente de drogas baratas como o crack, o pentecostalismo constitui hoje um caminho para a reintegração à sociedade”[20]. Adverte também que “para as pessoas dispostas a romper o vínculo com o álcool, as igrejas servem como rede social alternativa aos bares e às amizades formadas em virtude do vício”[21]. O crescimento desse cristianismo evangélico, como indica Spyer, “tem menos a ver com pastores oportunistas e carismáticos, e mais com a influência das igrejas para melhorar as condições de vida dos mais pobres

 

As igrejas evangélicas, como mostra Spyer, constituem um “espaço que, na localidade em que se instala, cumpre a função de estado de bem-estar social informal”[22]. É contra “estereótipos” comuns em segmentos da esquerda, que Spyer se contrapõe, com base em pesquisas sólidas em torno do mundo evangélico e pentecostal. Dentre os estereótipos mais comuns estão aqueles que “descrevem o evangélico como mercador da fé que se aproveita da superstição de um povo ingênuo e ignorante”[23].

 

Nesse livro, que foi admirado por Lula, o autor sublinha que a promessa apresentada pelos pentecostais, diferentemente do que ocorria nessas igrejas da década de 1920, refere-se ao paraíso que deve ser buscado já aqui no tempo. A própria ideia de “teologia da prosperidade” pode ser entendida de forma diversa do que normalmente apresentada. Firma-se uma percepção de que “a Terra é uma dádiva de Deus aos homens para que todos possam prosperar e viver com abundância de bens materiais”[24]. É uma teologia que acaba firmando-se como um “demarcador simbólico”, onde os pobres encontram o estímulo e motivação para iniciativas singulares[25]. A preocupação dos fiéis não é tanto com as grandes abstrações, mas com o que vem acontecendo nas suas famílias e igrejas, e como encontrar soluções de saída para o desamparo social.

 

O que concretamente sabemos, segundo os dados que vão aparecendo, e que poderão ser confirmados pelo Censo que agora começa, é que os evangélicos no Brasil superarão já na próxima década o número de católicos. Temos como desafio essencial buscar um olhar mais especializado e menos a-priorístico sobre os evangélicos e pentecostais, que possa dar conta da grande complexidade que envolve o tema. 

 

 

 



[2]Waldo Cesar & Richard Schaull. Pentecostalismo e futuro das igrejas cristãs. Promessas e desafios. São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal/Vozes, 1999.

[3]Ibidem, p. 167.

[4]Ibidem, p. 194.

[5]Regina Reyes Novaes. Os escolhidos de Deus. Pentecostais, trabalhadores & cidadania. São Paulo: Marco Zero, 1985 (Cadernos do Iser, n. 19).

[6]Ibidem, p. 131.

[7]Regina Reyes Novaes. Pentecostalismo, política, mídia e favela. In: Victor Vincent Valla (Org). Religião e cultura popular. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p. 69.

[8]Marcos Alvito. As cores de Acari. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2001, p. 166.

[9]Ibidem, p. 179.

[10]Ibidem, p. 193.

[11]Faustino Teixeira. O Deus da prosperidade: desconstruindo imagens. Concilium, n. 3, 2014 (Cristianism:o, consumismo e mercado). Ver também: Cláudio Mesquita. Santa Cruz, de João Moreira Sales e Marcos Sá Corrêa. O mundo preenchido. Sexta Feira, n. 8, 2006, p. 178.

[13]Maria das Dores Campos Machado. Carismáticos e pentecostais. Adesão religiosa na esfera familiar. Campinas: ANPOCS / Editora Autores Associados, 1996.

[14]Ibidem, p. 199.

[15]Ronaldo de Almeida. A expansão pentecostal: circulação e flexibilidade. In: Faustino Teixeira & Renata Menezes. As religiões no Brasil: Continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p.121.

[16]Regina Reyes Novaes. Pentecostalismo, política, mídia e favela. In: Victor Vincent Valla (Org.). Religião e cultura popular. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2001, p. 69.

[17]Juliano Spyer. Povo de Deus. Quem são os evangélicos e porque eles importam. São Paulo: Geração Editorial, 2020.

[18]Ibidem, p. 13.

[19]Ibidem, p. 38

[20]Ibidem, p. 150.

[21]Ibidem, p. 112.

[22]Ibidem, p. 114

[23]Ibidem, p. 94.

[24]Ibidem, p. 218.

[25]Ronaldo de Almeida. A expansão pentecostal: circulação e flexibilidade, p. 120. 

sábado, 20 de agosto de 2022

Amor à flor da pele - Filmes em Perspectiva

 Amor à flor da pele - Filmes em Perspectiva – 17/08/2022

 

Faustino Teixeira

IHU / Paz e Bem

 

Fui tocado de forma muita particular por esse filme do cineasta chinês de Honk Kong, Wong Kar-Wai: Amor à flor da pele (Fa Yeung Nin Wa – In the Mood for Love). Trata-se do sétimo longa metragem desse importante diretor, que integra o movimento chamado de Segunda Nova Onda do Cinema de Hong Kong. Além dessa obra prima, o cineasta fez ainda outros trabalhos importantes como: Amores expressos (1994), Anjos Caídos (1995),  Felizes Juntos (1997) e Cinzas do Passado (2009).

 

Saiu no Brasil com o título de Amor à flor da pele, com data de 2000. O filme ganhou em Cannes o prêmio de melhor ator (Tony Leung Chiu Wai), bem como o Technical Grand Prize (pela edição e fotografia). Numa tradução mais fiel ao original mandarim, o título poderia ser algo como Anos com flores. Com base na tradução inglesa, o mais preciso seria Clima de amor. As filmagens, realizadas em película, duraram 15 meses.

 

Destaco algumas coisas que em particular me tocaram. Começo pelos  dois lindos intérpretes, movidos por delicadeza impecável: Su Li-Zhen (no papel de Chan) e Tony Leung Chiu Wai (no papel de Chow). 

 

Maravilhosa também a trilha sonora, em particular a canção de Shigeru Umebayashi, Yumeji´s Theme, com o diálogo exemplar de violinos e violoncelos, que dão um toque de sensualidade e neblina. Admiráveis também as interpretações de Nat King Cole: Aquellos ojos verdes, Quizas, quizas, quizas, Te quiero Dijiste. Há também as composições de Michael Galasso: Angkok what Theme Finale e Blue.

 

A fotografia de Christopher Doyle, retomada depois por Mark Lee Ping Bin nos últimos meses de filmagem, revela-se  igualmente preciosa: num jogo de cores que transita de um verde singular em contraponto com um vermelho vivo. Fiquei muito impressionado com a dança da fumaça que escorria fluida do intérprete principal em vários trechos do filme, expressando um cuidado particular, e indicando, talvez, a fragilidade e a contingência da passagem do tempo.

 

O zelo com o figurino dos dois intérpretes principais, assinados por William Chang, é também um traço importante a se destacar. Como sublinha Dalmo de Oliveira Souza e Silva em análise minuciosa, “a câmara segue a Sra. Chan a cada plano revelando suas formas, seu caminhar e sua feminilidade – como se o desejo do Sr. Chow estivesse na lente. A visão da bela mulher caminhando, suas costas, seu vestido justo (...) é sem dúvida, um plano lírico”[1]. Os vestidos da atriz são simplesmente maravilhosos: nos fazem pensar na música de Fito Paes: Un vestido y un amor:  “Só tinhas um vestido e um amor... E eu simplesmente te vi”.

 

O filme se passa em Hong Kong, em 1962, num período que coincide com o auge da Revolução Cultural na China de Mao Tse Tung, quando importantes transformações políticas e sociais ocorreram no país, com impactos precisos nas vidas das famílias. Foi um tempo de muita movimentação de pessoas e também de contenção de despesas, quando muitos tiveram que dividir sua moradia com outras famílias. Isto se vê claramente no filme.

 

O cenário apresentado é muito marcado pelos espaços apertados, num clima claramente claustrofóbico. O encontro dos dois personagens ocorre no momento em que buscam residência num apartamento de subúrbio, e alugam dois quartos contíguos para acolher os cônjuges. São quartos pequenos e sem muita privacidade. A Sra. Chan e o Sr. Chow acabam se aproximando, sem imaginar, a princípio, que seus cônjuges  estivessem vivendo uma experiência amorosa, que na sequência descobrirão:

 

“Naquele prédio, homem e mulher se tornam próximos pela dor e, ao mesmo tempo, estão separados pelas convenções morais, afinal, eles são casados. Da condição de traídos, gradativamente, tomam ações de traidores (sem a consumação do fato). Assombrados pelo pejo, os traídos/traidores resistem em assumir aquilo que um sente pelo outro – o roteiro do filme dá ênfase à situação”[2].

 

Na visão de Ayelen Indra Lago, em sua resenha[3], o filme traduz um sentimento: “delicado e suave como um beijo de despedida”. Toda a movimentação da película é marcada por delicadeza: câmara lenta e tons avermelhados. A atmosfera é tecida por planos curtos. O traço sensorial do filme é como uma “carícia tímida”. Os momentos de maior aproximação são poucos: reduzidos a tímidos toques de mãos.

 

Leung e Cheung fazem um par singular, completam-se, irradiando uma ternura única: conseguem transmitir para os que assistem o filme uma “delicadeza do não toque, ou do quase toque”, que pontuam calor e sentimento. No percurso dos encontros, o jogo singelo de expressões e comportamentos simples. Tudo, porém, regado igualmente por muito silêncio. O desejo se manifesta num sentir que transborda cada olhar, e o diretor consegue transmitir tudo isso também no que ali “se cala”. Evitam a transgressão para não repetir o equívoco dos cônjuges, mas o fazem com muita dor. 

 

O cenário é incômodo, com corredores e escada apertados, lugares entulhados, que aproximam os personagens de forma difícil: A vizinhança se torna inevitável, num ambiente claustrofóbico: “Sempre é um bom dia para ir comprar macarrão ou ir ao cinema e sair do confinamento, sempre é bom colocar um vestido bonito, se encontrar e dividir (...). Os vizinhos são um ruído constante, às vezes uma interrupção justa, como esse lamento de solidão, e outras vezes incômodo como as leis morais da sociedade”[4].

 

Como assinalou Rodrigo Rodrigues, “o diretor criou, de maneira delicada como de praxe, um manifesto de amor, o desejo de expor seus sentimentos diante da paixão ao lado, mas magistralmente velados, contidos e proibidos”. Os dois vivem num “ambiente em que se sentem enclausurados, mesmo estando tão próximos”[5].

 

No filme, há pouco diálogo e muito sentimento: “Os protagonistas esperam, escutam e dizem o necessário”. Os dois vizinhos vivem um momento particular de dor, com o distanciamento de seus cônjuges, que em verdade vivem um romance. Eles aparecem como neblinas, sempre fora do quadro. Nós espectadores não conseguimos conhecer suas faces, e toda a concentração do diretor está fixada no casal principal.

 

Eles evitam a aproximação maior: não querem ser como seus companheiros... O que assistimos, em verdade, é a força do instante de um encontro, de sinceridade e cumplicidade, de um “silêncio compartilhado e inesperado”. O amor estava ali, tão próximo, detrás da parede do quarto, detrás da traição. Tão próximo e tão longe, “Como se a aproximação inevitável fosse uma penitência”.

 

A verdade, expressa por Leung ao final do filme, está contida naquele oco das ruínas no Camboja, onde ele traduz no pequeno buraco o sentimento guardado, repetindo um gesto tradicional presente em sua memória.  O segredo ficou ali ficou contido e tapado com lama e folhagem.

 

Estamos diante de algo que é mais que um filme, mas um sentimento, a gana do amor interrompido: “Cada cena, cada plano é um intenso sentir. O tempo se congela, as vozes estão em planos distantes, nada importa mais que o amor. Está aí a semelhança com a própria vida”[6]. Ele porém se estanca... Em sua fragilidade, transborda em cada olhar numa chamada silenciosa.

 

Como bem sublinhou Isadora Sinay, há no filme um brilhante jogo entre imagem, música e interpretações, presencializando um exemplo fantástico de linguagem cinematográfica[7]. Fica para o expectador, ao final do espetáculo, a sensação de que o passado é fugidio, algo que não se pode tocar, e que se borra indistintamente quando focado pelo olhar.

 



[1]Dalmo de Oliveira Souza e Silva. Sob o signo do silêncio no amor à flor da pele. XII EHA – Encontro de história da arte, UNICAMP:

https://www.ifch.unicamp.br/eha/atas/2017/Dalmo%20de%20Oliveira%20Souza%20e%20Silva.pdf(acesso em 25/08/2022).

[2]Ibidem.

[3]Ayelen Indra Lago. Um filme, um sentimento: In the Mood for Love, Wong Kar Wai (2001). R.Nott Magazine, 19/03/2021:

https://rnottmagazine.com/blog/2021/03/19/um-filme-um-sentimento-in-the-mood-for-love-wong-kar-wai-2000/(acesso em 25/08/2025).

[4]Ibidem.

[5]Rodrigo Rodrigues. Amor à flor da pele. Maxiverso, 04/07/2021:

https://maxiverso.com.br/blog/2021/07/14/critica-amor-a-flor-da-pele-in-the-mood-for-love/(acesso em 25/08/2022).

 

[6]Ayelen Indra Lago. Um filme, um sentimento.

[7]Isadora Sinay. Crítica – Amor à flor da pele. Vortex Cultural, 08/06/2012:

https://vortexcultural.com.br/cinema/critica-amor-a-flor-da-pele/(acesso em 25/08/2022).

 

quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Sobre o amor

 Sobre o amor

 

Faustino Teixeira

IHU / Paz e Bem

 

 

No percurso de minhas leituras sobre o Grande Sertão: Veredas, uma questão que brotou nas minhas reflexões envolveu a temática do amor. Foram raras as obras que suscitaram tantas meditações sobre o tema. Esta foi, certamente, uma delas. Com a preciosa ajuda do livro de Kathrin Rosenfield, Os descaminhos do demo[1](Imago/Edusp, 1993), fui tomando ciência da experiência de Diadorim, que segundo a autora, “nunca manifesta um amor feminino ou sensual” por Riobaldo. Vemos, sim, pistas de sua feminilidade ao longo do livro, mas não um amor que visaria um “corpo sexuado”. Em mais de uma vez, ele manifesta a Riobaldo o desejo de ser apenas amigo ou parente. É alguém que “evita a necessidade de dar forma e significado ao seu amor através da palavra ou do gesto que afirma ou nega simbolicamente a dimensão física e sexual do amor”[2]. Num mundo jagunço marcado pelo machismo incontestável, Diadorim se protege, evitando o ciúme e a violência. 

 

A trilha aberta pela interpretação de Kathrin, ajudou-me a trabalhar outras questões ligadas ao tema. Foi importante para lidar com a questão do amor maduro, que vivo agora nos meus 68 anos de idade. Revendo a letra da canção de Gilberto Gil, A faca e o queijo, de 1995[3], vejo uma bonita identificação. Ajuda a entender as mudanças que sofrem a vida amorosa, quando a “chama da paixão” vem temperada pelo amor sereno e delicado. Isto é estar diante do que Gil chama de transformações do amor, quando as mãos ganham um jeito novo e peculiar de lidar com o outro. Tornam-se mais sutis, garantida agora por “novos desejos”; também os beijos ganham um tom mais azul e menos carmim. Estamos diante de uma letra poderosa para ilustrar o amor maduro.

 

Em seu aprendizado amoroso, Gil conseguiu uma ampliação do olhar com a ajuda de Caetano Veloso, que o favoreceu captar “o traço feminino como complementação do masculino”. Foi o bonito aprendizado “de uma arte e de uma cultura mais doce, o mundo de ternura e leveza”. Vemos isso com muita clareza na canção Super Homem, de 1979[4]. É quando Gil expressa o traço de sua “porção mulher”, até então resguardada, e assinala que ela é o que de melhor traz em si e o ajuda a viver com esse amplo horizonte que assistimos em suas canções e em sua presença no tempo.

 

Numa bonita canção de Caetano Veloso, Tiranizar, musicada por César Mendes, ele toca no tema do amor, sinalizando a importância do respeito e liberdade que a vida em comum supõe. A garantia de um amor profundo está na capacidade que ele tem de gerar respeito, confiança, delicadeza. O amor não pode frutificar num ambiente nocivo de controle e ciúme. Diz Caetano na letra, que quando o amor vem construído na prisão, ele já começa a fenecer, se, ao contrário, vem regado com a liberdade, tem muita chance de durar: “Me deixe solto e eu sou todo seu”.

 

Num livro precioso de Lya Luft, Mar de dentro(ARX, 2002), ela sublinha que há um “espaço de silêncio intransponível mesmo nos mais íntimos amores”[5]. Nas famosas Cartas a um jovem poeta, Rilke assinala que muitos jovens acabam tropeçando no amor por não respeitarem esse espaço de silêncio e solidão que habita o mundo do parceiro[6]. O amor, segundo o poeta, vem resguardado quando se respeita esse limite do outro e o espaço de sua solidão vem acolhido e saudado. Na visão de Rilke, “o amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer”. Ele requer momentos preciosos de solidão e de respeito à impermeável alteridade. O poeta sublinha que o amor entre duas pessoas constitui “a tarefa mais difícil”, mas também mais nobre, desde que se respeite o espaço do outro. Diante desta tarefa, “todas as outras são apenas uma preparação”[7].

 

O amor requer o respeito profundo ao “mundo interior” do outro, a paciência nobre de entender a complexidade e mistério que habitam a alteridade. Em outra obra importante, Elegias de Duíno, Rilke fala do complexo mundo dos amantes, que junto com as crianças e os moribundos, são os que mais se aproximam do Aberto e do espaço puro. Através do gozo, eles conseguem atingir quase o ápice da felicidade, mas como tudo que é humano, eles acabam retornando do gozo ao tempo, por receio a um “estado de graça” inalcançável. Vislumbra-se o “espaço livre”, mas o temor ou o limite acendem as luzes de alerta, e se escapa ao passo maravilhoso do desabrochar das flores. Os amantes chegam a participar, por aproximação, da dinâmica do inefável: eles sentem “a obscura presença e se espantam”[8].

 

Todas essas questões vêm acompanhando minha jornada, seja na forma de meditação pessoal, seja no encontro com os amigos, nas conversas com minha companheira querida, ou nos cursos que venho ministrando sobre Rosa e Clarice Lispector. Num bonito texto que li no dia 13 de agosto, de autoria de Pedro Mairal[9](FSP), ele faz uma comparação do amor com os acordes da música. Diz que às vezes temos a grande sorte de encontrar uma rica “sucessão de acordes”. Não estamos livres das notas dissonantes, dos conflitos e tensões que marcam qualquer relação. Mas se esta vem pontuada pelo cuidado e delicadeza, há maiores chances de provocar alegria e fruição. 

 

Como mostra Mairal, “somos uma sucessão de acordes bem encaixados, que combina harmoniosamente as tensões, as surpresas, a satisfação do já conhecido, a variações. Funcionam bem”. Isso não acontece, assim, de repente, mas leva tempo e requer maturidade. Ninguém está protegido dos “momentos obscuros” ou “acordes menores e tristes”. Eles também fazem parte da sinfonia da vida, mas podem passar e revelar o outro lado da musicalidade, numa linda sequência de acordes novidadeiros. O autor nos adverte para estar atento ao andar na rua e não observar apenas as demolições em curso, mas captar igualmente as construções que vão se operando. É também muito bonito, continua ele, poder verificar o “esforço gradual” que acompanha a dinâmica de escorar aquilo que cresce aos poucos, e que é musical.

 

Toda essa dinâmica reflexiva que me habita no momento tem também a ver com o meu olhar sobre o mundo circundante. Tenho visto e em alguns casos acompanhado muitos casais que estão passando por crises no relacionamento, o que me entristece muito. Tive a sorte e a alegria de ter encontrado uma companheira no meu caminho que foi sempre apoio, presença, delicadeza e incentivo. São já quase 45 anos de união que se recria a cada dia, no respeito e na amizade. Vejo, porém, que relações assim são hoje exceção e não regra. 

 

Acho que com minha experiência e vontade posso dar uma contribuição importante nesse campo para muitas pessoas queridas da minha convivência e que passam por situações dolorosas. Lendo hoje o jornal O Globo, deparei-me com uma bonita entrevista de Maria Fortuna com o ator Caio Blat[10]. O ator e Luisa Arraes fazem um par bem interessante, com uma escolha relacional inovadora. Pude conhecer os dois na peça de Bia Lessa: Grande Sertão: Veredas. Fiquei tão comovido e impressionado com o espetáculo, que assisti três vezes. Os dois agora darão continuidade ao mesmo tema em filme que deverá sair em breve. 

 

Caio Blat estará também atuando na próxima novela das seis, Mar do sertão, cujo tema promete. Em sua entrevista, Caio comenta o novo filme em que ele estreia na direção, O debate, que conta com a presença de dois atores experientes: Debora Bloch e Paulo Betti. Os dois vivem a experiência de um casal que ama, mas que depois de 17 anos de casados resolvem se separar. Foi um processo difícil, como indica o roteiro. Eles resolvem romper a aliança “não sem antes expor as entranhas divergindo sobre monogamia, sexo, desejo, ciúme e liberdade”. A separação ocorre num clima de respeito mútuo, com maturidade e afeto. Bem diferente do que costuma ocorrer nesses casos, quando a separação vem acompanhada de raiva ou mesmo ódio, e as pessoas envolvidas acabam perdendo a sanidade. Caio Blat se inspirou em Domingos de Oliveira, que viveu recentemente as dores de uma separação.

 

Conforme expressou o ator, esse tempo da pandemia foi também um tempo difícil para os casais. Ele diz: “Perdemos a capacidade de ouvir o outro. Famílias brigaram, casais se separaram. O diálogo se rompeu na política e nos relacionamentos”. Atento aos novos tempos e também ao risco do esgarçamento nas relações, Caio Blat buscou junto com Luisa Arraes, sua companheira, um caminho diferente, que me faz lembrar Sartre e Simone de Beauvoir. Cada um tem seu apartamento próprio, no mesmo andar do edifício. Os dois moram “porta com porta” em um prédio da Zona Sul do Rio. Estão divididos apenas por um corredor, e “as portas vivem abertas, mas quando o bicho pega, cada um vai para o seu canto. Para evitar climão, eles mantêm diálogo franco e reveem acordos com frequência”. Busca-se respeitar o momento singular e o espaço de cada um, sem querer uma “fusão” que ofusque as identidades. Como ele assinala: “A gente ajusta de acordo com o momento, encontrando a liberdade e o desejo de cada um”.

 

Cada casal deve encontrar o seu melhor caminho, no respeito da companheira ou companheiro. E o que é muito importante: evitar deixar que o “vapor do mal” tome conta da relação. É sempre bom prevenir as situações mais difíceis com conversas maduras. E seguir sempre o sábio conselho de santo Inácio: nunca decidir abruptamente nos momentos de maior paixão. Os místicos sempre aconselham o caminho da paciência e da temperança. São conselhos sábios, de quem passou muito tempo trabalhando o mundo interior. 

 

O mestre vietnamita Tich Nhat Hanh, em seu livro Paz a cada passo(Rocco, 1993) alerta-nos para o risco das “formações internas” que podem nascer e crescer quando não abrimos espaços para a auto-crítica. Devemos evitar o máximo que “nós” interiores se firmem, provocando tumultos perigosos para o desenvolvimento de qualquer relação ou diálogo. Há que saber, diuturnamente, desatar nós, e isto pode ocorrer com um ritmo diferente na relação: de acolhida, gentileza, generosidade e cortesia. Não é difícil buscar esse equilíbrio interior e na relação. Diz o monge budista que “se não desfizermos esses nós enquanto eles estão se formando, eles ficarão cada vez mais fortes e apertados”[11].

 

 

 

 

 

 



[1]Kathrin H. Rosenfield. Os descaminhos do demo. Tradição e ruptura em Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro / São Paulo: Imago, 1993.

[2]Ibidem, p. 97.

[3]Carlos Rennó (Org.). Gilberto Gil. Todas as letras. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 433.

[4]Ibidem, p. 266 e 268.

[5]Lya Luft. Mar de dentro. 3 ed. São Paulo: ARX, 2002, p. 30.

[6]Rainer Maria Rilke. Cartas a um jovem poeta. 4 ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 56.

[7]Ibidem, p. 54-55.

[8]Rainer Maria Rilke. Elegias de Duíno. 6 ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 69.

[9]Pedro Mairal. Nosso estranho amor. O Globo, 13/08/2022.

[10]Maria Fortuna. “Perdemos a capacidade de ouvir o outro”. O Globo, 16/08/2022. Segundo Caderno, p. 1 e 3.

[11]Thich Nhat Hanh. Paz a cada passo. Como manter a mente desperta em seu dia-a-dia. 3 ed.  Rio de Janeiro: Rocco, 1996, p. 87-88.