quarta-feira, 2 de setembro de 2015

O Haikai e a revelação do instante

O Haikai e a revelação do instante

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF


“Não há rumor nas coisas,
Elas são o que são,
Não desejam explicar-se.
A porcelana, a cambraia, a murta
E a falta de uma asa”

Mariana Ianelli


Resumo: Dentre as formas mais belas e provocadoras da poesia inserem-se os haikais. São “cápsulas” de poemas dotadas de uma beleza e simplicidade que maravilham. Eles tratam daquilo que é mais terrenal, do que está próximo, embora muitas vezes escape ao olhar desatento. Expressam uma atenção particular ao que advém, nos momentos singulares, de encontros e despedidas; evocam sentimentos e estados que acompanham as estações da vida. Não são movidos por razões explicativas, estão simplesmente aí, para indicar e aludir a força e a vitalidade do instante. Sua relação com o espírito zen é muito clara, e guardam a força secreta do despertar.

Palavras-Chave: literatura; poesia; espiritualidade; cotidiano

Introdução

            O Ocidente antenou para a riqueza dos haikais tardiamente. As primeiras referências aos poemas datam do início do século XX, mas um marco importante foi a publicação dos quatro volumes escritos por R.H. Blith durante a guerra no Japão e publicados entre os anos de 1949 e 1952. Esses volumes, “contendo centenas de poemas comentados se tornariam a bíblia dos cultores desse gênero e marcariam profundamente a Geração Beat americana” (BASHO, 2008 p. 69). É notório o seu influxo sobre autores como Gary Snyder, Jack Kerouac, e Allan Watts; mas também sobre outros escritores: Ezra Pound, Rainer Maria Rilke, Giuseppe Ungaretti, Jorge Luis Borges e Fernando Pessoa. No Brasil, foi objeto de atenção de importantes nomes da literatura, como Guimarães Rosa, Manuel Bandeira e Haroldo de Campos. Mas recentemente, ganhou um impulso importante entre poetas como Paulo Leminski.

            A poesia dos haikais está em íntima sintonia com a tradição zen-budista, com o destaque para o “lado interior das coisas”, aquele que mais importa. No refinamento da palavra, em estado breve, a presença de uma sutileza que encanta, de uma simplicidade que “salta” e de uma comunhão profunda com a natureza. Movido por “metafísica sem sujeito”, e por visão que ressalta o campo da imanência, o haikai reflete uma escritura singular, que faz brilhar o acontecimento, e ao mesmo tempo, suscita a quebra do conhecimento, ou seu abalo sísmico que alude uma linguagem que hospeda o vazio. Na verdade, trata-se de “um vazio de fala que constitui escritura; é desse vazio que partem os traços com que o Zen, na isenção de todo sentido, escreve jardins, os gestos, as casas, os buquês, os rostos, a violência” (BARTHES, 2007, p. 10).
           
Pequena cápsula de poesia

Não há como acessar a cultura japonesa deslocando-a de sua energia e valor espiritual. São traços essenciais para se compreender um universo que é bem distinto daquele que marca a experiência ocidental. Como mostrou com acerto Octavio Paz, “nem antes nem agora o Japão foi para nós uma escola de doutrinas, sistemas ou filosofias, mas uma sensibilidade” (PAZ, 2003, p. 171). Trata-se de uma sensibilidade que vem regada pela experiência do esvaziamento, bem como de uma singular relação com a realidade, pontuada pela “reconquista do instante”. Num dos clássicos fascículos do Shôbôgenzô do grande mestre Dôgen (1200-1253) – Zenki – ele assinala que “cada instante é um instante de plenitude” (DÔGEN, 2011, p. 33), e que o despertar envolve a plena consciência desse instante presente.

Dentre as artes japonesas que despontaram como transfiguradoras do instante situa-se a forma poética conhecida como haikai[1], essa “palavra cápsula carregada de poesia”, esse poema curto de 17 sílabas, com três versos de 5,7 e 5 sílabas, derivado de outra expressão poética, denominada renga ou variação dos poemas curtos do tanka. Os primeiros haikais remontam ao princípio do século XIII (SAVARY, 1980, p. 27), mas ganharam expressão singular com Matsuo Bashô (1644-1694) no século XVII. Os poemas curtos, envolvidos por jogos de palavras, eram traços da poesia tradicional japonesa, reduzidos “metricamente a sequências de cinco e de sete sílabas, e mesmo a prosa cadenciada das narrativas poéticas  mantém, como base rítmica, a alternância desses metros fundamentais” (FRANCHETTI; TAEKO DOI, 2012, p. 10).

A celebração do instante é uma marca do haikai, de um instante incomensurável. Nesses breves poemas há dois elementos importantes: aquele que expressa a circunstância geral e o outro que envolve a percepção momentânea, ligados em geral por uma palavra cortante, kireji, que produz um efeito impactante, semelhante ao exercido por um koan. Pode-se, do ponto de vista formal, falar em duas partes:

“uma da condição geral e da ubiquação temporal ou espacial do poema (outono ou primavera, meio-dia ou entardecer, uma árvore ou um rochedo, a lua, um rouxinol); a outra, relampagueante, de conter um elemento ativo. Uma é descritiva e quase enunciativa; a outra, inesperada. A percepção poética surge do choque entre ambas” (PAZ, 2003, p. 163).

            No clássico exemplo do haikai de Bashô, sobre o sapo ou rã (kawásu) no velho tanque, temos os dois elementos. O elemento passivo, que indica o velho tanque em “seu silêncio”; e o elemento ativo, que envolve a surpresa ou impacto do salto do rã que transforma a quietude (tobikômu). É do encontro desses dois elementos que emerge a iluminação poética.

            Sobre o tanque
            um ruído de rã
            submergindo.[2]

            Furu-ike ya
            Kawasu tobikumu
            Mizu no oto.
           
O poema refere-se “fielmente à beleza tanto como uma espécie de significação que por meio da mais absoluta simplicidade desperta um sentimento de liberdade conceitual do leitor” (SAVARY, 1980, p. 29 ). Algo se irradia desse silêncio de luz, provocando a presença de um “mundo de ressonâncias”.

A relação com o zen budismo é bem evidenciada na dinâmica dos haikais. Assim como nos koans, da tradição rinzai, que levantam dúvidas e interrogações, também os haikais provocam indagações. Igualmente avessos às racionalizações, eles buscam apontar a realidade das coisas por meio do caminho da simplicidade, com ênfase nas intuições. Mais que tudo, é “poesia vivida”. Os grandes mestres desta arte como Basho, Buson ou Issa, deixam sempre algo no ar, nunca dizem tudo: limitam-se “a entregar-nos alguns elementos, os suficientes para acender a chispa” (PAZ, 2003, p. 165). Ainda que alusivamente, os haikais buscam dizer a realidade de forma mais imediata e direta, despojando-se da carcaça racionalista. Seu desafio é acender no olhar a capacidade de ver, de ver as coisas como são. Dizia Alberto Caeiro, num jeito bem familiarizado ao zen: “O que nós vemos das cousas são as cousas” (PESSOA, 1992, p. 217). Ou como expresso num dito zen: “Aprender sobre o pinheiro com o pinheiro, e sobre o bambu com o bambu”.

O haikai provoca um despertar, não há dúvida, e nesse sentido aproxima-se do satori destacado no zen budismo, quando se rompe a relação entre sujeito e objeto, provocando uma sabedoria distinta: prajna[3]. E o sentimento estético é vivido de forma mais intensa. O satori, como assinala Suzuki, revela

“um olhar intuitivo na natureza das coisas, por contraste com a compreensão lógica ou analítica. Praticamente, ele significa a descoberta de um mundo novo, desapercebido até então na confusão de um espírito formado no dualismo. Poderíamos dizer ainda que com o satori, tudo o que nos cerca é visto sob um ângulo de percepção totalmente inesperado” (SUZUKI, 1972, p. 270).

            Assim como no despertar zen, algo semelhante ocorre com a força poética e reveladora do haikai. Tudo concorre para a intensidade de um momento estético único, de poesia pura:

            Diante do relâmpago
            sublime é aquele
            que dele nada sabe!  (Bashô)

            Esta primavera em minha cabana
            Absolutamente nada
            Tudo, absolutamente!  (Yamagushi Sodô)[4]


A presença de Bashô

            Um nome de referência para o estudo dos haikais é Matsuo Bashô, o poeta da delicadeza espiritual. Ele nasce no ano de 1644 em Ueno, pequena cidade japonesa vinculada à província de Iga. Provinha de uma família ligada à casta dos samurais. Aprendeu a arte da poesia quando ainda morava no palácio dos Todo, estando muito ligado ao jovem Todo Yoshimada (Sengin), herdeiro da poderosa família. Sob a orientação de Kitamura Kigin (1624-1705), Bashô – que adota o nome literário de Sobo -, e o amigo, Sengin, estudam a arte poética japonesa, bem como caligrafia. Com a morte prematura de seu amigo, em 1666, Bashô passa a se aprofundar na arte dos haikais, e resolve também assumir uma vida pobre e errante. Inspirava-o o grande poeta do século XII, Saigyô, conhecido por seu amor à natureza. Perambulou por todo o Japão, acomodando-se em ermidas e pousadas, animado por dois grande amores: viver a vida e aprofundar-se na poesia. Desta vida “de perambulações contam-se histórias belíssimas mas o resultado mais importante destes anos consiste na notável técnica alcançada por seus poemas, assim como pela nobreza de seu conteúdo, virtudes que estenderam sua fama por todo o Japão” (SAVARY, 1980, p. 34-35).

            O contato com o zen budismo, através da presença do mestre Bucchô – então abade do templo Konponji em Kashima – revigora a sua poesia, favorecendo uma ampliação de horizontes. Isto ocorre a partir de 1681, quando conhece o mestre zen, e então a concisão do haikai vem enriquecida com “a amplidão do pensamento zen” (BASHÔ, 2008, p. 10; BASHÔ, 2001, p. 60-61). Chegou a viver por um tempo retirado numa cabana em Fukagaha, nas proximidades de uma plantação de bananas, daí a origem de seu nome (bashô: bananeira). Um incêndio em sua cabana, ocorrido um pouco depois, incita-o a retornar a vida de peregrino, reforçando nele ainda mais vivamente a percepção do sentido efêmero da vida.

            Belos são os relatos de suas viagens, entre os quais, o Pequeno manuscrito no alforge (Oi no kobumi), datados de 1687, e publicados postumamente em 1709 (BASHÔ, 2006). Há também o clássico Sendas de Oku (Oku-no-Hoso-Michi).[5]  O poeta definia-se como “uma folha regida pelo vento”, um viajante e itinerante, animado pelas “divindades ancestrais das Estradas”. Outro singular diário de viagem, Trilha estreita ao confim, que recolhe as impressões de um longo período de viagem, de aproximadamente quatro anos – iniciado em 1689 – começa com as seguintes palavras:

“Dias e noites vagueiam pela eternidade. Assim são os anos que vêm e vão como viajantes que lançam os barcos através dos mares ou cavalgam pela terra. Muitos foram os ancestrais que sucumbiram pela estrada. Também tenho sido tentado há muito pela nuvemovente ventania, tomado por um grande desejo de sempre partir” (BASHÔ, 2008, p. 31).

Viagem (tabi) e  viajante (tabi-bito to) são expressões prediletas de Bashô. Estava sempre a caminho, dispondo-se de poucos recursos e embalado pelo ritmo dos ventos filtrados pelos cedros. Tinha sempre diante de si muitas léguas a percorrer: “Assim viajou Bashô, a pé, em sua vida errante, por todo um Japão agreste e agrário, atrás de luas, lagos, templos dentro de florestas, buscando o vaga-lume do haikai” (LEMINSKI, 2013, p. 84).

A cada brisa
A borboleta muda de lugar
Sobre o salgueiro (Bashô).[6] 

O estilo de vida conduzido por Basho, em viagens e peregrinações desgastantes, acabou enfraquecendo-lhe a saúde. Com pouco mais de quarenta anos já estava bem alquebrado. Adoece gravemente no ano de 1694, e nesse mesmo ano morre cercado de discípulos e amigos, sendo “enterrado às margens do lago Biwa alaúde em japonês), no jardim do templo de Yoshinaka à sombra de uma bananeira (BASHÔ, 2008, p. 17).

A poesia de Bashô respira de uma atmosfera peculiar, pontuada pelas cores e sons da natureza. Em tudo o que via pelo caminho reconhecia o brilho e a graça de uma flor. Luminosos eram seus pensamentos. Tudo era para ele motivo de contemplação: a árvore, o corvo sobre a árvore, as cigarras, os patos selvagens, as borboletas, a lua cheia na noite, a neve iluminada, o brilho da luz sobre a pedra, as glicínias e camélias. Tudo era para ele um “convite para viver verdadeiramente a vida e a poesia” (PAZ, 2003, p. 167). Os exemplos são muitos:

            Um doce ruído
            Interrompe meu sonho:
            Gotas de chuva sobre a folhagem.

            Imensa calma.
            Penetrando as rochas
            O canto das cigarras.

            De que árvore florida
            Chega? Não sei.
            Mas é seu perfume...

            Nesta noite
            Ninguém pode deitar-se:
            Lua cheia.

            Para minha fadiga
            Um albergue... Mas, oh,
            Estas glicínias![7]

            Nesses pequenos poemas o mundo aparece em sua concretude mais viva, mais pura, mais iluminada. Tudo está alí, à disposição do olhar: os objetos, os animais, os ventos, as flores. O olhar sensível do poeta capta, num relance, o dado da relação, a dinâmica da harmonia ou tensão que habita o universo, os seus segredos ocultos. É justamente mediante a vigilância e atenção duradouros que o poeta capta e traduz as relações menos perceptíveis e sutis que regem a teia do tempo, a delicada e tenra dinâmica que preside e acalenta estados essenciais do mundo interior, que podem irromper em despertar.

            Na visão de Octavio Paz, estar diante dos haikais de Bashô é ser convocado a uma aventura, que também foi a dele, uma “viagem imóvel” que leva, na verdade, ao conhecimento de si mesmo. Tudo pode ser resumido numa simples expressão: “a de nos perdermos no cotidiano para encontrar o maravilhoso” (PAZ, 2003, p. 166). Sua poesia é um convite insistente para um novo olhar, um olhar atento diante do real, como ele mesmo expressa num de seus haikais:

            Quando olho atentamente
            Vejo florir a nazuna
            Ao pé da sebe!

            O poeta é alguém que experimenta, que participa de um evento essencial: estar diante da flor que, consciente de si mesma, em silêncio expressivo, manifesta-se eloquentemente como dom. Assim como os poetas orientais, Bashô é um “poeta da natureza”, que se identifica com ela, e ainda mais, deixa-se habitar por sua pulsação, que lhe repercute nas veias. É alguém, como diz Suzuki, que “sabe ler em cada pétala o mais profundo mistério da vida ou do ser”, que sabe colher até numa haste de relva silvestre os traços da transcendência. Ou seja, alguém capaz de perceber a “grandeza das coisas” (SUZUKI et al, 1970, p. 10-11).

O instante privilegiado

            Na sétima elegia de Duíno, há uma sentença de Rainer Maria Rilke que traduz a mais viva afirmação da vida: “Estar aqui é esplendor” (Hiersein ist herrlich) (RILKE, 2013, p. 61). Como no canto de Zaratustra, o poeta celebra a força e a beleza de cada instante: as manhãs de estio e a beleza da aurora, os dias junto às flores, os campos nas tardes, a luz que dá sequência às tormentas tardias, as grandes noites  e as estrelas da terra. Tudo vem coberto de um significado íntimo e profundo. Assim também ocorre com os haikais, na celebração do instante incomensurável. Toda a carga de emoção poética, concentrada, vem acionada para indicar o “instante privilegiado”, que é também de silêncio reverencial (BARTHES, 2007, p. 93). Essa pequena “capsula” de poesia não apenas apresenta a realidade, mas também – de certa forma – faz a realidade saltar, suspendendo a linguagem. Uma arte que Bashô conhecia tão bem:

            Como é admirável
            Aquele que não pensa:  “A vida é efêmera”
            Ao ver um relâmpago![8]

            É sabido o influxo do mestre zen Bucchô sobre o poeta Bashô. Num de seus relatos de viagem – Noite de viagem a Kashima – o poeta fala sobre a visita que fez ao mestre-eremita que habita nos declives de um monte em Kashima, e que durante a noite em sua cabana vislumbrou a experiência profunda do que é a pureza do coração. Relata-se, inclusive, que o clássico haikai da rã no poço foi composto depois de um momento de iluminação junto ao mestre Bucchô (BASHÔ, 2001, p. 60; LEMINSKI, 2013, p. 92-93). O salto da rã, na verdade, detém a linguagem e interrompe o fluxo habitual das asserções cotidianas. O objetivo do poeta é trazer de volta o ser humano “ao cotidiano mais elementar”. O que se visa é um “despertar diante do fato”, uma

“captura da coisa como acontecimento e não como substância, acesso à margem anterior da linguagem, contígua à opacidade (aliás inteiramente retrospectiva, reconstituída) da aventura (aquilo que acontece à linguagem, mais ainda do que ao sujeito)” (BARTHES, 2007, p. 102).

            Ao buscar entender a dinâmica que preside a composição do haikai sobre o salto da rã no velho poço – cujo rumor na água teria despertado Bashô para a verdade do zen -  Roland Barthes sinaliza que Bashô teria descoberto nesse ruído

“não o motivo de uma ´iluminação`, de uma hiperestesia simbólica, mas antes o fim da linguagem: há um momento em que a linguagem cessa (momento obtido à custa de muitos exercícios), e é esse corte sem eco que institui, ao mesmo tempo, a verdade do Zen e a forma, breve e vazia do haicai” (BARTHES, 2007, p. 97-98).

            A razão de ser do haikai foge a qualquer objetividade da linguagem, é algo que quebra a tradicional “radiofania interior” que marca a rotina do dia-a-dia. Ele provoca uma suspensão do código da linguagem, levando o leitor a ruminar o seu sentido, “até que o dente caia”, até que ocorra a intuição singular. A pequena capsula poética visa encontrar a “formulação justa”. O que ela busca apontar é muito simples: apenas o “é isso” (BARTHES, 2007, p. 98; PERRONE-MOISÉS, 1982, p. 135):


            No perfume da flores de ameixa
            O sol de súbito surge –
            Ah, o caminho da montanha!   

            A lua da montanha
            Gentilmente ilumina
            O ladrão de flores.
(Issa) 
           
            “Ah!”
            Foi tudo o que disse –
            Monte Yoshino coberto de flores.
(Teishitsu) 

            Chuvas de verão –
            E certa noite, de mansinho,
            A lua entre os pinheiros.
(Ryôta)  

Doce perfume –
Vem de que flor?
Arvoredo de verão.
(Taigi) 

Que maravilha:
Nas folhas verdes, nas folhas novas,
Brilha o sol!
(Bashô) 

É outono
E eu estou velho demais –
Nas nuvens, os pássaros.
(Bashô) 

Ah, o orvalho da manhã –
Completamente invisível
Sobre as flores brancas.
(Kakei) 

O ano chega ao fim –
O vento
Faz soar o vasto céu.
(Gyôdai) 
           
            Jogos e risos
Que cessam:
Lua de outono.
(Bashô) 

Um doce ruído
Interrompe o meu sonho:
Gotas de chuva sobre a folhagem.
(Bashô)

Chegado pra ver as flores,
Sobre elas dormirei
Sem sentir o tempo.
(Buson)[9]

Duas das funções essenciais da escrita clássica, a descrição e a definição, deixam de operar nos haikais. Não há mais simples designação. Algo de mais profundo acontece quando se diz no poema: é tal. Como se num lampejo de luz, o mundo invisível se manifestasse. A palavra emerge como porta do sagrado, como um “arranhão de luz” expresso assim na sua forma instantânea e curta. Mas como indica Barthes, esse flash de luz não tem por que, ele

“não ilumina, não revela nada; é como o de uma fotografia que tirássemos com muito cuidado (à japonesa), mas tendo esquecido de carregar o aparelho com a película. Ou ainda. O haicai (o traço) reproduz o gesto designador da criança pequena que aponta com o dedo qualquer coisa (o haicai não faz acepção do assunto), dizendo apenas: isto!, com um movimento tão imediato (tão privado de toda mediação: a do saber, do nome ou mesmo da posse) que aquilo que é designado é a própria inanidade de toda classificação do objeto: nada de especial, diz o haicai, conforme o espírito do Zen: o acontecimento não é nomeável segundo nenhuma espécie, sua especialidade falha; como um meandro gracioso, o haicai se enrola nele mesmo, e a esteira do signo, que parece ter sido traçada, se apaga: nada foi adquirido, a pedra da palavra foi jogada à-toa: nem vagas nem escorrimento do sentido” (BARTHES, 2007, p. 112-113).

Com sua espantosa simplicidade, o haikai convida o ser humano a participar da dinâmica de seu momento: a apenas estar presente. Trata-se de uma perspectiva muito rica, bem sintonizada com o modo de viver zen. Há também uma provocação no sentido de uma mudança de perspectiva com respeito à natureza. Sugere um caminho novo, que implica o deixar-se habitar pelo mundo, pela natureza. Em geral, a forma como o ser humano relaciona-se com o mundo natural vem marcada pelo traço da distinção, da diferença. Ele se sente diverso e o mundo natural aparece como algo estranho e alheio. E esse sentimento pode se transformar em hostilidade: “Cada galho de árvore fala uma linguagem que não entendemos; em cada matagal dois olhos nos espiam; criaturas desconhecidas nos ameaçam ou escarnecem de nós”. Esse sentimento, porém, pode ser transformado, caso algo aconteça na nossa experiência de contemplação, ou caso nos demoremos na experiência da contemplação. É o que sugere Octavio Paz em linda reflexão sobre o tema:

“Não somos nada diante de tanta existência fechada em si mesma. E desse sentir-nos nada passamos, se a contemplação se prolonga e o pânico não nos embarga, ao estado oposto: o ritmo do mar se adapta ao compasso do nosso sangue; o silêncio das pedras é o nosso próprio silêncio; andar nas areias é caminhar pela extensão da nossa própria consciência, ilimitada como elas; os sons do bosque nos aludem. Todos nós fazemos parte de tudo. O ser emerge do nada. Um mesmo ritmo nos move, um mesmo silêncio nos rodeia” (PAZ, 2012, p. 160-161).

Há um toque de gratuidade no haikai que é essencial, em linha de grande sintonia com a prática do zazen, que envolve atenção e despojamento. Há que deixar “cair” corpo e mente (shinjin datsuraku) e estar simplesmente presente, ou como também se diz: simplesmente sentar (shikantaza). Assim como na zazen, também no haikai rompe-se com a ideia de finalidade. Como expressa Barthes, “o haikai não serve a nenhum dos usos (eles mesmos entretanto gratuitos) concedidos à literatura”. Na verdade, ele é regido por outra dinâmica, sem intenção propriamente produtiva. O que ele indica ou sugere é um “despertar diante do fato”.  Grandes mestres da tradição zen, como Kodo Sawaki (1880-1965), souberam traduzir com muita felicidade essa percepção do cotidiano captado na sua “elementar maravilha”, na dinâmica do respeito e da gratuidade (mushotoku). Em dada ocasião, o mestre havia observado: “Os homens acumulam conhecimentos, mas penso que o fim último seja poder sentir o som dos vales e olhar as cores da montanha” (FAZION, 2003, p. 101).


Referências Bibliográficas:


BARTHES, Roland. O império dos signos. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
BASHÔ, Matsuo. Elogio della quiete. Milano: SE SRL, 2001.
BASHÔ, Matsuo. Piccolo manoscritto nella bisaccia. SE SRL, 2006.
BASHÔ, Matsuo. Trilha estreita ao confim. São Paulo: Iluminuras, 2008.
BRANDÃO. Carlos Rodrigues. Três linhas. Haikais traduzidos e recriados. Disponível em:
DÔGEN, Eihei. Zenki. Chaque instant est un instant de plenitude. St-Just-La-Pendue: Les Belles Lettres, 2011.
FAZION, Gianpietro Sono. Lo Zen di Kodo Sawaki. Roma: Ubaldini, 2003.
FRANCHETTI, Paulo & TAEKO DOI, Elza. Haikai. Antologia poética. 4. Ed. Campinas: Editora Unicamp, 2012.
LEMINSKI, Paulo. Vida. 4 biografias. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
PAZ, Octavio. Signos em rotação. 3 ed.  São Paulo: Perspectiva, 2003.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. O poema. A revelação poética. Poesia e história. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
PESSOA, Fernando. Obra poética. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Fernando Pessoa. Aquém do eu, além do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1982.
RILKE, Rainer Maria. Elegias de Duíno. 6 ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2013.
SAVARY, Olga. O livro dos hai-kais. São Paulo: Massao Ohno & Roswitha Kempf, 1980.
SUZUKI, Daisetz Teitaro. Essais dur le Bouddhisme Zen. Paris: Albin Michel, 1972.
SUZUKI, D.T.; FROMM, E.; MARTINO, Richard de. Zen budismo e psicanálise. São Paulo: Cultrix, 1970.

(Publicado na Revista Interações: Cultura e Comunidade. PUC-Minas, Departamento de Ciências da Religião, v. 10, n. 17, 2015, p. 48-61)



[1] Optamos aqui por trabalhar com a expressão haikai e não haiku, seguindo a mesma argumentação de Leyla Perrone-Moisés, que entende que esta é “a forma mais corrente (aportuguesada) nos textos brasileiros sobre o assunto”: PERRONE-MOISÉS, 1982, p. 134.
[2] Tradução de Olga Savary (O livro dos Hai-Kais).
[3] A expressão prajna envolve um conhecimento transcendental não discriminante. Como sublinha Suzuki, “Prajna é a experiência por que passa o homem quando percebe, no sentido mais fundamental, a infinita totalidade das coisas, isto é, psicologicamente falando, quando o ego finito, rompendo sua crosta rija, se reporta ao infinito, que envolve tudo o que é finito e limitado e, portanto, transitório”: SUZUKI et al, 1970, p. 88.
[4] Traduções de Carlos Rodrigues Brandão (Três linhas).
[5] São ao todo cinco diários de viagem, com apontamentos e impressões colhidos pelo poeta em suas peregrinações. O texto em prosa (haibun) vem complementar os poemas, rodeando os haikais como paisagens referenciais.
[6] SAVARY, 1980, p. 44.
[7] Todos estes haikais de Bashô recolhidos da obra de SAVARI, 1980.
[8] Apud BARTHES, 2007, p. 95.
[9] FRANCHETTI; TAEKO DOI, 2012, p. 86, 87,89, 101,114, 116, 123, 137,153; SAVARY, 1980, p. 60, 63 e 87.