terça-feira, 13 de abril de 2010

O diálogo entre as religiões

O DIÁLOGO ENTRE AS RELIGIÕES

 

Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF

Introdução  

 

A realidade do pluralismo religioso faz parte ineludível do cenário do século XXI. Há uma presença crescente da diversidade religiosa no panorama mundial. Surgem por todo canto novas religiosidades e diversas tradições religiosas dão mostras de grande vitalidade. Trata-se de uma afirmação da alteridade que nem sempre vem acolhida na sua positividade. Há que sublinhar também a presença tensa de valores e crenças em viva competitividade, onde se lança mão de vários estratagemas para garantir a plausibilidade e expansão de uma internalização religiosa sempre ameaçada. Se de um lado o pluralismo pode significar a abertura a uma nova conversação dialogal e um certo grau de tolerância, ele tende também a acentuar as heranças confessionais e as dissonâncias cognitivas. O fato é que o pluralismo religioso impõe-se hoje como um componente “intransponível”, que desafia todas as religiões ao exercício fundamental do diálogo. As opções hoje são muito claras, como mostrou Hans Küng: “ou a rivalidade entre as religiões, o choque de culturas, a guerra de nações – ou diálogo das culturas e paz entre as religiões, como condição para a paz entre as nações!” (Küng, 2005: 104)

 

1. O diálogo inter-religioso: uma aproximação

 

Faz parte da natureza do diálogo a busca de uma unidade que preserve e salvaguarde a diferença e a liberdade. O diálogo autêntico traduz um encontro de interlocutores pontuado pela dinâmica da alteridade, do intercâmbio e reciprocidade. É no processo dialogal que os interlocutores vivem e celebram o reconhecimento de sua individualidade e liberdade, estando ao mesmo tempo disponibilizados para o enriquecimento da alteridade. O ser humano é um nó de relações, não podendo ser compreendido de forma destacada do outro com o qual se comunica. O diálogo constitui, assim, uma dimensão integral de toda a vida humana. É na relação com o tu que o sujeito constrói e aperfeiçoa a sua identidade. Como assinala Martin Buber, “o homem se torna EU na relação com o TU”. Trata-se de uma experiência humana fundamental e passagem obrigatória no caminho da auto-realização do indivíduo e da comunidade humana.

 

O que conta no diálogo é a reciprocidade existencial, a dinâmica relacional que envolve a semelhança e a diferença em processo rico de abertura, escuta e enriquecimento mútuos. É neste contexto dialogal que a identidade vai ganhando fisionomia e sentido, enquanto expressão de uma busca que é incessante, árdua e criativa.

 

Dentre a extensa variedade de formas de diálogo, situa-se o diálogo inter-religioso com sua peculiaridade própria. Na definição cunhada pelo então Secretariado para os Não-Cristãos, no documento Diálogo e Missão,  esse diálogo diz respeito ao “conjunto das relações inter-religiosas, positivas e construtivas, com pessoas e comunidades de outras confissões religiosas, para um mútuo conhecimento e um recíproco enriquecimento” (DM 3). Quando falamos em mútuo conhecimento estamos diante de um desafio extremamente delicado: “a arte de compreender”. Como indica Gadamer, compreender não é necessariamente “estar de acordo com o que ou quem se compreende”, nem romper com as próprias convicções fundamentais, mas é um exercício essencial de se recolher, “para deixar valer o outro” (Almeida, C.L.S et al., 2000: 23 e 26). E quando falamos em “recíproco enriquecimento”, estamos abrindo espaço para compreender o diálogo como “intercâmbio de dons”. E para tanto é necessário uma disposição essencial: a “prontidão em se deixar transformar pelo encontro” (DA 47).

 

O diálogo inter-religioso instaura uma comunicação e relacionamento entre fiéis de tradições religiosas diferentes, envolvendo partilha de vida, experiência e conhecimento. Esta comunicação propicia um clima de abertura, empatia, simpatia e acolhimento, removendo preconceitos e suscitando compreensão mútua, enriquecimento mútuo, comprometimento comum e partilha da experiência religiosa (FABC, 2000: 61). Este relacionamento inter-religioso ocorre entre fiéis que estão enraizados e compromissados com sua própria fé, mas igualmente disponíveis ao aprendizado com a diferença.

 

Em nível mais existencial, partilhar o diálogo é disponibilizar-se a entrar em conversação, o que significa viver uma experiência de fronteira. A dinâmica da conversação expressa um “lugar inquietante” onde cada interlocutor é provocado a arriscar sua auto-compreensão atual diante do desafio que acompanha a alteridade. No processo de encontro dialogal pode ocorrer seja uma mudança mais radical, ou outra menos acentuada mas também autêntica, onde o que era diferente e distante torna-se “verdadeiramente possível” (Tracy, 1997, 142-143).

 

O diálogo inter-religioso traduz a riqueza de um novo aprendizado: a relação com a diferença e a alteridade significa a “apropriação de outras possibilidades” e a “abertura à mútua transformação”. Este desafio dialogal, complexo e laborioso, é imprescindível para as religiões. Na ausência deste intercâmbio criativo as religiões fragilizam-se, carecendo da atmosfera essencial para a sua afirmação e crescimento.

 

O teólogo indiano, Raimundo Panikkar, vem sinalizando em sua reflexão a importância essencial deste intercâmbio vital entre as religiões: um intercâmbio que possibilita o encontro da religião consigo mesma. Não há para ele como entender a fundo uma determinada tradição senão mediante a abertura, conhecimento, e diálogo com outros universos religiosos. E radicaliza ainda mais: “aquele que não conhece senão sua própria religião, não a conhece verdadeiramente. É necessário que se conheça ao menos uma outra religião diversa para  poder situar em verdade o conhecimento profundo da religião professada” (Panikkar,1998: 74).

 

Não há como conhecer outra tradição religiosa senão mediante o diálogo inter-religioso. Para que ocorra uma “justa avaliação” de outra tradição religiosa é necessário criar condições para uma aproximação e contato com a mesma, o que deve ser feito com particular sensibilidade  e respeito (DA 14).

 

O diálogo requer “cortesia espiritual” e abertura do coração. Requer igualmente uma espécie de conversão ao universo do outro. Isto não é uma tarefa fácil, mas um processo que pressupõe um indispensável estado espiritual de desapego e hospitalidade. Como assinala com razão Panikkar,

 

“o diálogo religioso requer uma atitude de busca profunda, uma convicção de que estamos caminhando em solo sagrado, de que arriscamos nossa vida. Não se trata de uma curiosidade intelectual  nem de uma bagatela, mas de uma aventura arriscada e exigente. Faz parte daquela peregrinação pessoal para a plenitude de nós mesmos, que se obtém ultrapassando as fronteiras de nossa tradição, escalando e penetrando nos muros daquela cidade onde não há templo porque a Iluminação é uma realidade, como se diz na última das Escrituras cristãs (Ap 22,5)” (Tamayo, 1993: 1149).

 

Para que haja um diálogo inter-religioso autêntico é necessário reconhecer o valor do pluralismo religioso como um pluralismo de princípio, ou seja, um pluralismo que vem acolhido positivamente no desígnio misterioso de Deus. Como assinala Claude Geffré, “a pluralidade dos caminhos que levam a Deus continua sendo um mistério que nos escapa” (Geffré, 2005: 21).

 

Mas não é simples o processo de abertura ao pluralismo, como vem mostrando Peter Berger em suas análises sociológicas. O pluralismo religioso provoca dissonância cognitiva. O pluralismo causa “problemas” na medida em que ele desestabiliza “as auto-evidências das ordens de sentido e de valor que orientam as ações e sustentam a identidade” (Berger & Luckmann, 2004: 71). Nenhum conhecimento ou interpretação permanecem ilesos diante da provocação plural. Perspectiva alguma consegue firmar-se como única e inquestionável, mas permanece sempre aberta à apropriação de outras possibilidades. E é justamente isto que provoca a insegurança em muitos. Estes sentem-se despreparados e desprotegidos num mundo “cheio de possibilidades de interpretações”. Ao acentuar dissonâncias  cognitivas, o pluralismo provoca em indivíduos ou grupos um sentimento de insegurança significativamente  ameaçador para a plausibilidade de sua inserção no mundo.

 

2. Eixos do diálogo inter-religioso

 

O diálogo inter-religioso implica partilha de vida,  experiência e conhecimento. Ele acontece entre pessoas que estão enraizadas e compromissadas com sua fé específica, mas igualmente disponíveis ao aprendizado da diferença. Para as suas condições de possibilidade podem ser indicadas algumas pistas importantes, delineadas a seguir.

 

a.    A consciência da humildade

 

O diálogo exige, antes de qualquer coisa, uma disponibilidade interior de abertura e acolhimento. Ele implica atenção, respeito e acolhida do outro, ao qual se reconhece espaço para a sua identidade pessoal, para suas expressões e valores. A maior resistência ao diálogo advém de pessoas ou grupos animados pela auto-suficiência, pela arrogância e pela hybris totalitária. O sentimento de superioridade constitui um real obstáculo ao diálogo inter-religioso, e só pode ser superado com a experiência fundamental da humildade. Experimenta-se no diálogo a consciência dos limites e a percepão da presença de um mistério que a todos ultrapassa. O diálogo envolve, portanto, o discernimento da vulnerabilidade e da contingência. O diálogo começa a ocorrer  quando se é capaz de reconhecer os próprios limites, quando se assume uma atitude acolhedora e aberta, deixando-se transformar pelo encontro. São os próprios interlocutores que criam o espaço para o diálogo, mas isto pressupõe escuta, que só pode ocorrer quando precedida por um exercício pessoal de esvazimento de si.   A experiência da humildade acontece quando o apego excessivo vem superado e o sujeito vem desafiado a romper as fronteiras de um mundo monocromático para comungar novos horizontes. Mas para que esta experiência de humildade possa ocorrer é necessário um trabalho interior e paciente, com a criação e afirmação de espaços livres para a hospitalidade.

 

b.   A abertura  ao valor da alteridade

 

Há na base do diálogo a percepção do valor da diversidade,  e de que ela traduz  a riqueza da experiência humana. O diálogo só pode acontecer quando se reconhece e respeita a  alteridade  do interlocutor,  bem como o valor de sua convicção. Em concordância com a reflexão do teólogo protestante, Paul Tillich, deve-se reconhecer que o  verdadeiro diálogo entre representantes de tradições religiosas distintas só pode de fato ocorrer quando se respeita o valor da convicção religiosa do outro e de que esta se funda numa experiência de revelação (Tillich, 1968: 133). Não há possibilidade de se reduzir o mistério do outro ao domínio do particular e à lógica da assimilação. O outro humano é um patrimônio de mistério, que se revela a cada momento, deixando sempre adiante uma nova virtualidade a ser captada. A poeta Lya Luft acentuou a presença misteriosa de um “espaço de silêncio intransponível mesmo nos mais íntimos amores”. O outro é um mistério contínuo que escapa a qualquer analogia ou possibilidade de redução à igualdade. Sua diversidade é singular: não se pode pretender “possuir” ou apossar-se do outro, pois isto significa privá-lo  de sua singularidade. Ele deixa de ser “outro”. Quando numa relação, nega-se a singularidade da diferença, o interlocutor permanece só e empobrecido. Há algo de irredutível e irrevogável na experiência da alteridade: isto os místicos experimentam na sua relação com o mistério do “totalmente outro”, os enamorados experimentam na relação com seus parceiros, e os participantes do diálogo inter-religiosos experimentam na sua aventura dialogal.

 

Ao trabalhar o tema da teologia do diálogo, Bruno Forte aponta três formas pelas quais a alteridade emerge como espaço de encontro. Em primeiro lugar, na experiência  da maravilha. É quando ela revela a sua força e a sua surpresa. A admiração nasce precisamente do “impacto do outro”, com a sua indedutível e improgramável presença, que manifesta de forma precisa a incapacidade radical de qualquer possibilidade de posse ou domínio. A alteridade é também experiência da agonia, na medida em que convoca a viver a radicalidade de um exercício de liminaridade e fronteira: de um embate com um irredutível, que remove as entranhas intelectuais e afetivas. A alteridade é, por fim, experiência ética, enquanto significa exigência de existir para os outros. É esse outro que convoca o sujeito a romper com o seu ensimesmamento e dar um pouco de si na luta contra a realidade da dor no mundo (Forte, 1999).

 

Há na dinâmica da alteridade um enigma que traduz  um mistério. A forma como experimentamos o mundo é velada por um “mistério pessoal intransponível” (Gadamer, 2002:246). Há nela algo de único e singular, de irredutível e irrevogável. Este mistério acentua-se na relação com os outros. Como bem sublinhou o teólogo Paul Knitter, “quanto mais se tenta penetrar no mundo de uma outra tradição religiosa, mediante encontros pessoais e o estudo dos textos, tanto mais se depara com um muro de diferenças que são, no final, incompreensíveis” (Knitter, 1998: 33). O outro é “mysterium tremendum”, que  jamais pode ser completado  ou reduzido em seu significado último. Esta realidade da diferença não implica a impossibilidade  de abertura ou comunicação, pois o outro é igualmente “mysterium fascinans”, enquanto  convida ao encontro  e se disponibiliza ao aprendizado da diferença.

 

Há sempre a surpresa no encontro com a alteridade,  ela deixa uma marca que transforma a relação. Como sublinha Gadamer, “o que perfaz um verdadeiro  diálogo não é termos experimentado  algo de novo, mas termos encontrado  no outro algo que ainda não havíamos  encontrado em nossa própria experiência  de mundo” (Gadamer, 2002: 247).

 

c.    A fidelidade à própria  tradição

 

O diálogo inter-religioso  pressupõe igualmente  a fidelidade a si mesmo e ao próprio engajamento  de fé. A sensibilidade dialogal deve ser sempre acompanhada de um ancoradouro referencial. Como diz uma jovem poeta brasileira, Ana Cristina César, “é sempre mais difícil ancorar um navio no espaço”. As pertenças e os marcos referenciais são fundamentais para qualquer disposição ao diálogo e à abertura: “uma disposição militante não nasce em terra devastada. É preciso pertencer a algum lugar, contar com alguma referência social estável, pisar em algum chão firme para tomar um impulso de vôo” (Kehl, 2005).

 

Não é colocando a fé em suspenso que se consegue chegar de forma mais profunda ao universo do outro. Essa travessia pressupõe, antes, uma clara identidade cultural e religiosa, que deve ser sempre alimentada. Na visão de Jürgen Moltman, “digno de participar do diálogo é somente quem conquistou uma posição firme na sua própria religião e vai para o diálogo com a autoconsciência correspondente. Somente a domiciliação na sua própria religião capacita para o encontro com uma outra” (Moltman, 2004: 28).

 

 Não há como ser cidadão do mundo fora de um enraizamento  particular. A abertura dialogal ocorre sempre no seio de um compromisso determinado, de uma tradição referencial. O diálogo ganha riqueza e sustentação quando acompanhado pelo aprofundamento do próprio compromisso identitário. Para melhor dialogar, ninguém precisa romper com a religião de sua própria cultura e herança.

 

Trata-se aqui, evidentemente, de  uma identidade aberta, em construção permanente,  sempre disponível  à dinâmica do dom. Um diálogo autêntico  exige amor à própria tradição: “entre o respeito à identidade pessoal ou confessional e a natureza do diálogo existe uma ligação necessária, que é garantia para o diálogo” (Tillard, 2001: 35-36). As janelas  devem estar sempre abertas,  mas desde que referenciadas  pelas paredes de sua sustentação. Ou como diz o profeta Isaías:  alargar a tenda, alongar as cordas e reforçar as estacas (Is 54,2). Na verdade, são justamente aqueles que sabem encontrar e reconhecer o valor de suas próprias tradições, e que buscam o seu aprofundamento permanente, os que estão em “melhor posição para apreciar e avaliar a preciosidade das outras tradições” (Dalai Lama, 1999:56).

 

d.   A busca comum da verdade

 

Para que haja diálogo, é necessário que os interlocutores  estejam dispostos não somente  a apreender e receber os valores positivos presentes nas tradições religiosas dos outros,  mas igualmente disponíveis e abertos à verdade que os envolve e ultrapassa. É indispensável que esta busca da verdade  ocorra sem restrições mentais, em espírito de acolhida e abertura, pois nínguém pode pretender uma assimilação plena deste horizonte que está sempre adiante. No encontro com o outro abre-se a possibilidade de captar dimensões inusitadas desta verdade que é aletheia: permanente  desvelamento. O outro é capaz  de favorecer  a seu interlocutor, no diálogo, a captação de certos aspectos ou dimensões do mistério divino que escapam à sua visada. Como salienta Schillebeeckx,

 

“há mais verdade (religiosa) em todas as religiões no seu conjunto do que numa única religião, o que também vale para o cristianismo. Existem, pois, aspectos ´verdadeiros`, ´bons`, ´belos` - surpreendentes – nas múltiplas formas (presentes na humanidade) de pacto e entendimento com Deus, formas que não encontraram nem encontram lugar na experiência específica do cristianismo” (Schillebeeckx, 1994: 215).

 

Toda crença  religiosa expressa um vínculo particular:  uma forma de atar  o mistério sempre maior a uma imagem específica.  Os vínculos são como “nós” que atam e modelam a compreensão e traduzem um mundo de sentido. Cada vínculo  em particular  indica  uma compreensão verdadeira, que capta um aspecto ou dimensão da realidade  e da verdade, embora sempre limitado. O que dificulta o diálogo é a incapacidade de compreender  que a realidade última não pode estar limitada às imagens particulares  das crenças. Estas encontram-se envolvidas pelo enígma da gratuidade de Deus, e participam de uma sinfonia que é sempre adiada (“symphonie différée”). As tradições religiosas trazem consigo, assim, um caráter  fragmentário: estão sempre a caminho e envolvidas pelas inusitadas riquezas que o munificente Deus prodigalizou aos povos e à criação (AG 11).

 

e.     A  ecumene da compaixão

 

O imperativo da compaixão é um traço que acompanha as diversas tradições religiosas. Longe de ser identificada com um mero sentimento de piedade ou comiseração, a compaixão diz respeito ao profundo desejo de remediar todas as formas de sofrimento que corroem a humanidade e a criação. Ela vem compreendida sobretudo como empatia, cuidado e responsabilidade para com todos os semelhantes  e, em particular, aqueles que mais sofrem.

 

Por ecumene da compaixão entende-se  a convocação  feita a todas as religiões no sentido de assumirem a responsabilidade global de afirmação do humano e de garantia da dignidade da criação. Cresce hoje a consciência de que o sofrimento dos seres humanos e a devastação do planeta  devem constituir-se  a base fundamental para o encontro  e diálogo entre as tradições religiosas. Na visão de Metz, é em torno desta questão que se apresenta o grande desafio para a “coalizão das religiões em vista da salvação e da promoção da compaixão social e política no nosso mundo”  (Metz, 2003: 398).

 

A dor do mundo e o sofrimento dos pobres e excluídos traduzem um novo desafio para as religiões e apontam para um novo “kairos hermenêutico” para o encontro das religiões. Dialogar para não deixar morrer. A realidade do sofrimento injusto e inocente  aciona o exercíco da compaixão, convocando  as cordas mais profundas do sentimento religioso em favor de uma nova conduta ética.

 

A compaixão é condição de possibilidade de um diálogo que se pretenda renovador. Em muitos casos, é do exercício inter-religioso de compaixão social e de sensibilização diante do sofrimento dos outros que nascem ricas iniciativas de colaboração comum. Uma colaboração que pode quebrar barreiras  doutrinais e favorecer  um novo movimento de compreensão da alteridade  e de mútuo enriquecimento entre os interlocutores.

 

Em entrevista publicada em dezembro de 2006, Panikkar sublinhou que a questão do futuro diz respeito à conversão das religiões. Enquanto no passado as religiões centravam-se na preocupação de converter os outros, o novo desafio a ser enfrentado refere-se à sua própria conversão. A seu ver, as religiões deveriam “concentrar-se menos sobre o nirvana, a mukti, a salvação, o céu, e assim por diante, para dedicar seus esforços no sentido da cura das feridas humanas, curar as pragas históricas da humanidade: numa palava, centrar-se na cultura da paz mais do que sobre a pregação da salvação” (Panikkar, 2006).

 

3. Diálogo e espiritualidade

 

Todas estas pistas para o diálogo inter-religioso são melhor compreendidas e vivenciadas  quando banhadas por uma espiritualidade  peculiar, um trabalho interior  de desapego  e abertura. Como tão bem mostrou L.Boff, é no seio da espiritualidade que “irrompem os grandes sonhos para cima e para frente, sonhos que podem inspirar práticas salvacionistas.” A espiritualidade relaciona-se a tudo o que tem a ver com a experiência profunda do ser humano, com a “experiência integral da vida”.

 

“A singularidade do ser humano consiste em experimentar a sua própria profundidade. Auscultando a si mesmo percebe que emergem de seu profundo apelos de compaixão, de amorização e de identificação com os outros e com o grande Outro, Deus. Dá-se conta de uma Presença que sempre o acampanha, de um Centro ao redor do qual se organiza a vida interior e a partir do qual se elaboram os grandes sonhos e as significações últimas da vida. Trata-se de uma energia originária, com o mesmo direito de cidadania que outras energias como a sexual, a emocional e a intelectual” (Boff, 2006).

 

O diálogo deve começar no interior de cada um, criando e favorecendo espaços de hospitalidade. Em expressiva reflexão, Dalai Lama sublinhou que “o propósito de todas as maiores tradições religiosas não (é) o de construir grandes templos externos, porém criar templos de bondade e compaixão internos em nossos corações. Toda religião maior detém o potencial de criar isso” (Dalai Lama, 1999: 54).

 

Bons interlocutores para o diálogo são aqueles que estão em paz consigo mesmos, aqueles que vivem a experiência de um coração capaz de acolher formas diversificadas, um coração desobstruído  da arrogância e vontade de poder. Há uma íntima vinculação  entre o diálogo inter-religioso e a espiritualidade.  Como mostra Panikkar,

 

“o encontro das religiões tem uma indispensável dimensão experiencial e mística. Sem uma certa experiência que transcende o reino mental, sem um certo elemento místico na própria vida, não se pode esperar  superar o particularismo da própria religiosidade, e menos ainda ampliá-la e aprofundá-la, ao ser defrontado com uma experiência humana diferente” (Panikkar, 1996:156)

 

Não é sem razão que a partilha das experiências  de oração e contemplação,  enquanto expressão da busca do Mistério, vem identificada como o nível  mais profundo do diálogo inter-religioso (DM 35). Este diálogo é, sobretudo, um ato religioso, um ato espiritual,  pois pressupõe uma atitude de confiança e entrega a um mistério sempre maior. O diálogo não pode exigir nada do outro, senão a disposição de ouví-lo, compreendê-lo e respeitá-lo. O que ocorre no diálogo não é necessariamente uma mudança de religião, mas uma “conversão mútua”, a celebração comum de uma verdade sempre maior que  provoca a transformação dos interlocutores  e sua forma de apropriação da própria  fé.

 

Aqueles que no cristianismo trabalham na linha da perspectiva mística vão reforçando uma convicção cada vez mais clara de que quanto mais se aprofunda e se adentra na experiência religiosa, tornada possível na sua própria tradição, tanto mais cresce a consciência de que a Realidade experimentada não se limita à própria religião. No apogeu de sua reflexão teológica, Paul Tillich intuiu de forma extremamente profunda esta questão ao indicar o caminho da profundidade como a condição essencial de ultrapassagem de uma particularidade limitada do cristianismo: não se trata de um caminho que leve ao abandono da própria tradição religiosa, mas de seu aprofundamento mediante a oração, o pensamento e a ação. Para ele, “na profundidade de toda religião viva há um ponto onde a religião como tal perde sua importância e o horizonte para o qual ela se dirige provoca a quebra de sua particularidade, elevando-a à uma liberdade espiritual que possibilita um novo olhar sobre a preseça do divino em todas as expressões do sentido último da vida humana” (Tillich, 1968: 173).

 

Conclusão

 

Neste início de século XXI as igrejas cristãs defrontam-se com um desafio extremamente importante, que é o da abertura ao pluralismo religioso e o exercício dialogal com as  outras tradições religiosas em profundo respeito à sua dignidade e valor. Estamos diante de uma oportunidade única de resgate de uma credibilidade que veio arranhada por posicionamentos recorrentes de desrespeito e descrédito à diversidade religiosa e ao pluralismo religioso. Mas para tanto é necessário uma decisiva mudança de perspectiva eclesial, que rompe com o rotineiro desencontro e acorda para o verdadeiro encontro com o outro. Não há como manter em curso atitudes hostis ou um vocabulário deletério com respeito às outras religiões. Há que recuperar o essencial “espírito do diálogo”, e uma atitude mais positiva e otimista face aos desígnios  misteriosos de Deus para   a humanidade. E ser também capaz de perceber e acolher com alegria as transbordantes riquezas da “sabedoria infinita e multiforme de Deus” (DM 41) que se espalham por toda a história e seguir com entusiasmo sempre renovado os impulsos do Espírito. O pluralismo é um dom não só aceito mas desejado por Deus. Todas as pessoas devem ser respeitadas no seu direito inalienável de buscar a verdade em matéria religiosa, segundo os ditames de sua consciência. E as religiões devem ser respeitadas em sua dignidade singular e única.

 

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Publicado na revista: Vida Pastoral, v. 48, n. 255, julho/agosto 2007, pp. 3-10

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