quinta-feira, 21 de abril de 2016

Outros caminhos

Outros Caminhos

Entrevista concedida à Revista Cristianismo Hoje - Edição 51/Ano 9 - 2016


1)Na sua opinião, quais os motivos pelos quais tantos cristãos, atualmente - e, particularmente, no segmento evangélico - se dizem "cansados com a Igreja"?

Esta questão da crise das instituições religiosas não é um traço particular brasileiro, mas vem ocorrendo por todo canto. O que se verifica é algo singular: uma multiplicação e diversificação das instituições portadoras de sentido, e ao mesmo tempo uma menor fidelidade a elas. São mudanças bem perceptíveis no campo das filiações tradicionais. Como bem observou o antropólogo Pierre Sanchis, mudanças são bem nítidas no âmbito das declarações de pertença religiosa. E isso nem sempre o Censo consegue captar de forma precisa. Com base nos dados apresentados, temos hoje no Brasil uma declaração de crença majoritariamente cristã: são cerca de 87% de de pessoas envolvidas no circuito cristão: 64,6% de católicos e 22,2% de evangélicos (dos quais 13,3% são pentecostais). E mesmo nesse circuito há muita diversificação, bem como interconexões originais. Mas de fato, há um cansaço crescente com respeito às instituições tradicionais, uma certa “desafeição” com respeito aos caminhos mais oficiais. Isto vem se refletindo também no mundo evangélico, com o crescimento dos “evangélicos não determinados”. Eles representam hoje no Brasil um percentual de 21,8% do contingente evangélico, em torno de 5% de toda a população brasileira. São evangélicos que não se enquadram nos canais tradicionais, sendo chamados por alguns de “evangélicos genéricos” ou “evangélicos sem igreja”. É algo que indica uma diversificação na própria pertença evangélica. Muitos daqueles que se “desencantam” com as formas tradicionais de inserção passam a se declarar “sem religião”, uma categoria que também cresce significativamente no Brasil, alcançando a cifra de 8% da declaração de filiação.


2) Desde as origens do protestantismo, o chamado pertencimento eclesiástico é muito enfatizado e estimulado. É na comunidade da fé, conforme sempre disseram os líderes e os fiéis, que a comunhão com Deus e os irmãos é exercida de forma mais efetiva - basta lembrar a ideia bíblica de "ovelhas no aprisco". Hoje, contudo, segundo o IBGE, cerca de 10 milhões de cristãos, no Brasil, assumem sua profissão de fé, mas dizem que não frequentam igrejas. São os que se convencionou chamar de "desigrejados". Diante desse fato, desdobro a pergunta em duas: a) o que mudou, na igreja e na percepção destes cristãos, para que ela (a igreja) já não seja mais considerada indispensável?; e b) Na sua opinião como cientista da religião, o que esse movimento tem representado, em termos de mudança na mensagem e na práxis evangélica, sobretudo na questão da conquista de novos adeptos?

Muita coisa vem mudando no mundo evangélico nas últimas décadas, não há dúvida sobre isso. Acentuo em particular o crescimento pentecostal. É algo que impressiona a qualquer observador. Verifica-se uma “explosão” pentecostal e também uma pentecostalização do protestantismo histórico. Os estudiosos vem apontando um crescimento evangelical nas denominações históricas, algo que é significativo. Em termos de estatística, os evangélicos de missão permanecem em certa letargia, não ultrapassando os 4% de declaração de crença. O fenômeno importante envolve, sim, o mundo pentecostal. A pujança de algumas igrejas, como a Assembleia de Deus, é bem significativa. É ela a responsável pela maior presença pentecostal no Brasil, envolvendo 12,3 milhões de adeptos. Impressionante a forma como se instala e se desenvolve por todo o pais, com um incrível poder de penetração nos lugares mais distantes e inacessíveis. Como indicou Leonildo Campos, os evangélicos – sobretudo pentecostais – mostram um crescimento espantoso: de cerca 4.408 fieis por dia. Gostaria de acrescentar ainda um outro elementos que marca a recente prática pentecostal e neopentecostal: a irradiação de um sincretismo religioso. Aquela “rigidez” anterior ou ascetismo na relação igreja-mundo deixam de ser notas dominantes. O que se vê, e por toda parte, é a introdução de uma dinâmica religiosa sincretizada com elementos de outras tradições religiosa, incluindo aquelas da tradição afro-brasileira. Sem dúvida, não há como negar esse traço tão atual dos “desigrejados” nas religiões evangélicas, que somam cerca de 1/5 de todo o contingente evangélico. Isso é um sinal importante, manifestando um desencontro ou um desencaixe com respeito aos vínculos tradicionais. Isso tem suscitado reflexão e também mudanças importantes na forma de exercício da experiência evangélica e de prática missionária.


3) A recente e crescente contestação aos chamados modelos convencionais de igreja tem adquirido contornos de pós-modernidade, mas pode-se dizer que é fenômeno essencialmente contemporâneo? Se não, onde podemos situar suas origens, particularmente no Brasil?

Trata-se de um fenômeno recorrente, com presença diversificada por toda parte. As religiões continuam marcando sua presença, não tenho dúvida sobre isso, mas agora de forma distinta, com metamorfoses bem evidentes. E ao lado das religiões, o crescimento de espiritualidades laicais, que não se encaixam no tradicional perfil religioso. A sede de espiritualidade é talvez um dos fenômenos mais característicos de nosso tempo. Uma sede que traduz uma resistência viva aos caminhos da modernidade, pontuada pelo anonimado, pela aceleração impressionante, acompanhada de individualização e burocratização. Tenho dito com frequência, na mesma linha de outros pensadores, que o avanço da modernidade não produziu um recuo da religião, mas uma outra forma de exercício da dinâmica religiosa. As religiões permanecem, bemo como as espiritualidades – em estado crescente – transformando-se sob o impacto da individualização e globalização. Como lembrou o historiador francês, Frédéric Lenoir, a busca pelas respostas a um mundo de incertezas permaece acesa, mas não mais “como no passado, no seio de uma tradição imutável ou mediante um dispositivo institucional normativo”.


4) Ao longo da história da Igreja Cristã e, mais particularmente, nos últimos 50 anos, quais foram os principais momentos de crítica ao chamado sistema religioso, quem foram seus protagonistas e motivações e a quais resultados isso levou?

Podemos mencionar como marco fundamental, no campo do catolicismo, o evento do Concílio Vaticano II (1962-1965). Foi um terremoto na vida da igreja católica, cujas repercussões continuam ainda em curso. O evento suscitou muita reação e também muita resistência, dado o seu potencial renovador, mas vemos hoje com o papa Francisco um despertar maravilhoso de seus potenciais mais incisivos. Em viva sintonia com o espírito conciliar, Francisco vem provocando mudanças essenciais no modo de ser igreja, retomando uma dinâmica evangélica que estava sob cinzas. Os efeitos dessa dinâmica poderão, talvez, ser sentidos nos próximo anos, trazendo um novo alento para a experiência dos católicos. Esse fermento renovador poderia também começar a acontecer no mundo evangélico, que viveu momentos importantes de renovação em décadas anteriores, mas que no momento atual vive um tempo de certa estagnação ou mesmo de sedução fundamentalista.


5) Existe um elevado percentual de cristãos evangélicos que, simplesmente, optaram por seguir sua caminhada de fé longe da igreja. Eles não sofreram decepções ou foram explorados por líderes, necessariamente (embora tais elementos não possam ser desconsiderados na análise do fenômeno); porém, prescindem de uma liderança formal e do pertencimento eclesiástico. Eles se pergunta, afinal de contas, por que precisam de uma igreja? O que se pode dizer disso à luz da Ciência da Religião e que futuro se pode esperar, a médio e longo prazo, da Igreja, tal como a conhecemos hoje?


No meu modo de ver, a saída essencial está na busca de uma nova espiritualidade, que saiba conjugar com sabedoria o humus profético e a vida espiritual. Com base na sabedoria de uma grande mística, Teresa de Ávila, o desafio consiste em buscar a harmonia entre Maria e Marta. As duas devem caminhar sempre juntas.  Não creio, sinceramente, que o único caminho seja o da vinculação institucional. É possível, e viável, que uma vida espiritual madura e autêntica possa ser vivida igualmente em caminhos alternativos. A vida espiritual é essencial, e que possa ser vivida de maneira cada vez mais holística, integrando o ser humano nessa linda cadeia da vida, em todas as suas formas. Não somos o “umbigo do mundo”, mas parte integrante de uma teia muito maior, que nos envolve e abraça. A vida espiritual hoje deve estar marcada por essa dinâmica de atenção e cuidado, de ternura e delicadeza com o horizonte mais amplo da vida. Mais importante que a declaração de crença ou ou exercício de exclusividade na pertença religiosa é a disposição dialogal e a capacidade de acolhida do mundo da alteridade. Como disse recentemente o papa Francisco – em entrevista concedida a Eugenio Scalfari – o mundo vem percorrido por estradas que nos aproximam e nos distanciam. Mas o que é mais importante è que elas nos conduzam ao Bem. Esse é o passo fundamental.

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Passos da realização espiritual: o boi e o pastor

Passos da realização espiritual: o boi e o pastor

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

Introdução

            Assim como ocorre nas tradições cristã e islâmica, com mestres como João da Cruz (1542-1591), Teresa de Ávila (1515-1582) e Farid ud-Din Attar (1142-1220), também a tradição zen apresenta abordagens que tratam do processo de realização espiritual do ser humano. Um dos exemplos apontados encontra-se na série de dez imagens, com seus respectivos comentários, conhecida como “o boi e o pastor”. Essas clássicas pinturas, atribuídas ao mestre zen Seïkyo (Ching-chu), remontam à dinastia Sung[1],  e  retratam as fases do progresso espiritual. Inicialmente eram seis imagens,  mas elas se perderam. Outra série de imagens retomando o mesmo tema foi também descoberta, e eram oito, concluindo com o círculo vazio[2].

A série de imagens que serão trabalhadas aqui neste artigo são atribuídas ao monge e pintor Shûbun (1432-1460 – período Ashikaga), que talvez tenha se inspirado, por razões estilísticas, numa versão mais antiga de autoria do mestre zen chinês, Guo´an Shiyuan (século XII)[3]. Os comentários em prosa que acompanham as imagens são de autoria de Zekkai Chûshin (1336-1405), que se tornou o sexto abade de Shôkoku-ji em 1392. O conjunto de imagens e comentários serviram como base essencial de iniciação à prática de meditação budista. Os comentários sobre o tema elaborados por Shizuteru Ueda em diversas produções serviram como referência fundamental para o desenvolvimento deste trabalho, de forma especial as reflexões presentes na obra Zen y Filosofía[4] e três outros artigos publicados em sequência, onde o tema vem igualmente desenvolvido[5].

As dez imagens de Shûbun, que se encontram conservadas no mosteiro de Shôkoku-ji em Kyoto, ganharam grande divulgação no Japão. Constituem peças fundamentais para tratar o delicado processo que envolve a caminhada do ser humano em busca do si-mesmo segundo a perspectiva do Zen Budismo. O tema central desenvolvido relaciona-se ao processo do despertar: o tornar-se verdadeiramente humano na descoberta do si mesmo essencial. Como assinala Ueda, “o fundamental no zen é o despertar para a verdade do si mesmo e realizar o eu verdadeiro. O budismo zen entende que o eu verdadeiro é ´o eu sem eu`”[6].

1. A procura do boi


            Na série de imagens que se seguem, dois personagens estão presentes: o boi e o pastor. O pastor representa o ser humano na sua permanente busca em atingir o seu verdadeiro si-mesmo. Por sua vez, o boi simboliza o si-mesmo que está sendo temporariamente buscado pelo humano. Nem sempre o boi aparece nas figuras apresentadas, como nesta primeira que se revela ao olhar. Em verdade, o boi aparece apenas em quatro das imagens.

            Na primeira ilustração o que vemos é o pastor que inicia sua busca. Neste momento inaugural ele ainda se encontra perdido e disperso. A imagem apresentada relaciona-se com a dinâmica que envolve a caminhada do ser humano. Inicialmente aparece a questão fundamental em torno de algo que escapa ao sujeito ou que não foi ainda detectado por ele. É o momento da pergunta primeira, em torno do acesso a esse algo tão importante para o sujeito, mas que ele ainda não consegue captar com clareza. Trata-se do primeiro arranque existencial, da dúvida preambular ou indagação, da suspeita em torno de um modo determinado de existência, quando o sujeito levanta a pergunta sobre a densidade de seu eu: a dúvida sobre a sua realidade e verdade. A primeira imagem relata justamente isto. O início de uma indagação que interpela e incomoda o sujeito. Mas é assim que se inicia o processo da busca do verdadeiro si mesmo. Esta indagação essencial vem carregada de uma dinâmica existencial: “despertar para o morrer ou para a vida”[7].

            O si verdadeiro já se delineia nesse primeiro momento, quando a pergunta inicial vem lançada, jogada no tempo. E o processo que leva à possível resposta não é linear nem simplificado. Muitas vezes, essa dinâmica de busca vem pontuada por angústia ou mesmo desespero, quando o sujeito não consegue encontrar acolhida ou refúgio. No início o que ocorre é o titubeio: não se sabe onde andar ou o que fazer. Não se trata de uma pergunta que se restringe ao domínio intelectual, mas algo que envolve toda a existência e que pode lançar o sujeito no desespero. E isto pode durar tempo. A pista de acesso ao caminho pode acontecer em um ano, cinco anos, dez anos. O importante é manter acesa a vontade e firmar com teimosia o desejo da busca.

            Curioso perceber que a indagação filosófica começa assim, com uma atitude de admiração. O ato de filosofar se inicia com um “afastar-se”, não das coisas concretas, mas das interpretações usuais que são tecidas sobre elas. É quando o sujeito desperta para o mirandum, ou seja, para uma percepção distinta e singular que destoa da ocular sobre a vida diária e comum. É um momento ímpar, quando uma nova indagação provoca a busca por transparência, para além das necessidades mais imediatas da vida, num horizonte novo, num mundo mais profundo, mais essencial, mais “invisível”[8].

2. O encontrar das pegadas do boi


            Na primeira figura o pastor estava ainda desviado de si mesmo, perdido na “imensidão empoeirada”. Não conseguia encontrar algo que pudesse orientar a sua busca. Ao seu redor apenas “o canto das cigarras entre as árvores”, num ambiente marcado por densa névoa[9]. Com a nova imagem uma mudança acontece: surge um rastro, uma alusão. Ele consegue encontrar as pegadas do boi, mesmo não sendo ainda capaz de discernir sobre o autêntico e o inautêntico. Consegue acessar agora “parte do significado da verdade”, o que nem sempre ocorre com aqueles que se lançam numa busca. Depois de tanta aventura uma luz se anuncia: Ah... são estes rastros! Olhe! E os traços são encontrados justamente no momento em que nos defrontamos com palavras que nos interpelam e apontam caminhos possíveis, nos aludem vertentes novidadeiras.

            Os grandes mestres zen sublinham que a vida cotidiana é marcada pelos passos simples: levantar, comer, dormir... e morrer. Às vezes o buscador passa por toda sua existência sem perceber as marcas de seu mundo interior, mas pode também ocorrer uma abertura em razão de uma sugestão, de uma alusão, de um acontecimento, de um ensinamento que se dá ao longo do caminho, e de forma muitas vezes sutil e inesperada. E então o rastro se evidencia. No momento em que se consegue encontrar uma verdadeira pista, uma saída, os sentidos ganham uma acuidade distinta. É quando se passa a escutar e sentir, verdadeiramente, aquela palavra. A compreensão inicial pode ainda ser prejudicada pela imaturidade: a luz se anuncia mas escapa. Já ocorre, entretanto, um primeiro passo de transformação, quando se coloca para o sujeito a importância essencial de uma prática contínua, que envolve todos os sentidos. Isto vem nomeado no zen como zazen, a meditação sentada. Como sinaliza Ueda, o zazen vem complementado no budismo pelo samu, que é o despojamento no serviço prático, e o sanzen, que a interlocução de aprendizado com o outro, em particular com o mestre[10].

            A prática meditativa, em particular o zazen, revela-se como caminho por excelência no método do Zen budismo. Nada de muito complexo, apenas sentar-se (shikantaza) e deixar-se habitar pelo tecido interdependente do real. A prática contínua, ou Gyôji – como a nomeou o mestre Dôgen -, revela-se como o “lugar de confluência da presença de todas as coisas em uma situação ominiabarcante, total”[11]. Esta prática não é exclusiva do ser humano, mas envolve todos os seres do universo. São, porém, os humanos aqueles que se esqueceram dessa “teia cósmica”, ou cuja memória de sua originação interdependente falhou, daí a importância de através da prática contínua realizar esse esforço para retornar o caminho de sua perspectiva original, de volta à sua própria casa[12].

            O zazen acontece não apenas quando se senta para meditar, mas traduz um posicionamento vital que ocorre a todo o tempo, desde quando nos levantamos e nos colocamos em relação com os outros, trabalhando e vivendo ativamente. A dimensão dessa prática, que não é só teórica, vem retratada na terceira imagem.
  

3. O encontro do boi


            Trata-se agora do momento em que o pastor vê o boi, quando então capta sua forma e sua voz. E ao abrir os olhos e acionar a visão se dá conta de que está diante de si mesmo: “já não há lugar onde o boi possa esconder-se”. Os sentidos oscilantes ganham nova vitalidade quando capturados pela voz do boi e uma nova sintonia se firma: “O boi, em sua totalidade, orienta agora todo agir do pastor. Ele orienta de modo tão imprescindível, como o sal para a água do mar, e como a cor para a tinta do pintor”. O pastor, tocado pela maravilhosa paisagem, põe-se a correr, ardentemente, mas o boi escapa. Não há ainda posse ou domínio, mas já se sente a proximidade de sua presença, o brilho de sua cor. Há que capturá-lo, e para tanto, a exigência de acionar todas as energias dos sentidos. Na simbologia zen é o momento por excelência da prática, de sua continuidade e perseverança. De nada adiantaria ter chegado até aqui e abandonar a empreitada.

4. A captura do boi


            O boi vem agora capturado, mas ainda resiste. Ele que estava por muito tempo “escondido em uma região distante e deserta” reage ao pastor. Fala ainda forte “o desejo do aroma dos brotos do pasto”, e a teimosia não cede facilmente lugar ao domínio que se anuncia. Ao pastor cabe a tenacidade e a severidade de um empenho essencial. Por fim, consegue laçar o animal e retê-lo com vigor. A imagem traduz um novo momento da prática, de agonia e combate. Os traços apresentados denotam dinamicidade, sobretudo com o tensionamento da corda. O que vigora entre os personagens é tensão e conflito. A unidade se anuncia, mas ainda sob resistência e oposição. O boi busca escapar a todo custo, e assim fazendo entra em conflito com seu interlocutor. A tensão é visível. Fazendo a analogia com o zen, esse momento traduz o passo da impregnação da prática na existência, mas a dualidade ainda mostra a sua face: são dois corpos que lutam avidamente. De um lado, o corpo que anseia a inserção serena na prática; de outro, o corpo dominado pelas paixões e desejos. São dois corpos que se frontejam, traduzindo um campo de tensões. De fato, com o exercício da prática as paixões se reforçam. A dinâmica do zazen não revela apenas passividade, mas também agonia, luta empedernida contra as paixões que se agigantam. A paz dos sentidos não se alcança sem luta e tenacidade. No processo de encarnação da prática é como se encontrássemos dois corpos que se combatem. E para superar isso, perseverando na prática, é necessário tempo e constância. Não se sabe quanto tempo requer esse combate. O importante é continuar com a prática, pois só assim pode-se passar para o nível seguinte. Há um modo de dizer na tradição zen: praticar preocupando-se, praticar inquietando-se. O que isto quer dizer? Não se deve entender a prática nem como um passeio ou como coisa aprazível, mas como um processo que envolve luta e combate.

5. O domar do boi


            A constância do pastor foi decisiva para o adestramento necessário. Com a rédea firme e a paciência duradoura o pastor acaba conseguindo vencer a hesitação e amansar o boi. Como assinala o comentário que acompanha a gravura, “no despertar tudo se torna verdadeiro, na errância tudo se torna não verdadeiro”. O conflito ganha agora pacificação, e os dois corpos antes em litígio ganham nova sintonia. Trata-se de um resultado que advém da prática contínua. Em vez de tensão, o que ocorre agora é relaxamento, retomada da unidade, e isto vem representado pela corda afrouxada. Não existe mais a virulência anterior. Visto sob o ponto de vista da prática, a figura revela uma coisa muito importante: o fato de que mesmo considerando o zazen como fundamental, enquanto base e eixo da prática, há que entender que é toda a existência cotidiana que deve tornar-se prática. Não pode haver distinção entre o momento da prática e o momento da não-prática. O ser humano deve estar inserido na teia cósmica, consciente desta ligação, assim como o peixe está interpenetrado com a água, e esta relação é constitutiva para a sua vida. Peixe e água formam um contínuo, em unidade não dualística, no exercício vivo e costurado pela prática da natação. No momento em que esta unidade vem quebrada, “a essência do peixe, sua piscidade, desaparece” [13]. Como assinalado num dito zen, a prática do zazen ocorre mesmo quando não se faz zazen. Ou seja, o zazen envolve toda a existência. Trata-se de uma meditação que se desdobra na vida prática, no movimento de todos os dias. A inscrição verdadeira no zen, e o penetrar em sua verdade, é algo que envolve todo o cotidiano:

“Se realmente desejais penetrar a verdade do zen, fazei-o enquanto estais de pé ou andando, dormindo ou sentados, enquanto falais ou ficais em silêncio, ou quando estais ocupados nos diversos afazeres do trabalho cotidiano. Quando tiverdes feito isso, procurais saber de quem é a doutrina que estais seguindo ou que Sutras estais estudando”[14].

                  Mesmo no continuar do movimento há espaço para a tranquilidade e calma, para a dinâmica de acomodação. E aqui se vê uma coisa muito importante: doma-se o boi por longo tempo.

6. A volta para casa no dorso do boi


            A imagem agora traduz uma intensa serenidade. O contraste com a quarta figura é marcante. O pastor torna-se então um com o animal, e no campo desta unidade não há lugar para altercação. Montado no boi ele canta uma antiga canção de lenhadores e toca a sua flauta, como fazem as crianças das pequenas cidades do interior. É o que relata o comentário da presente figura.  A força desta união é de intensidade impar, e nada ao redor pode desviar a atenção: “se alguém o chama ele (o pastor) sequer olhar. Se alguém o puxa pela manga da camisa, mesmo assim ele não quer parar”.  Ele é alguém que simplesmente senta e contempla o céu azul.

            Um aspecto importante nesta imagem relaciona-se com a ideia de retornar à casa, de recolher-se à habitação. O pastor retorna à casa montado no boi. Está agora unido a si mesmo, reina uma harmonia entre o eu e o e si mesmo. E uma harmonia que reverbera no ambiente. Ela vem expressa pelo toque da flauta, num som que traduz a teia de relação entre todas as coisas. A unidade entre o boi e o pastor indica ainda a presença de duas existências que são vizinhas mas distintas. Mas não há ainda total garantia de paz derradeira, pois a possibilidade de recaída permanece vigente. O pastor pode ainda cair do boi e se dar mal. Os grandes mestres zen sublinham a importância da permanente atenção, do zelo contínuo na prática meditativa. Nada impede que ao chegar a um grau intenso de alegria e satisfação venha o praticante sofrer um revés. Isto significa que em momento algum, mesmo naquele que anuncia uma grande liberdade, a prática pode deixar de acontecer. O caminho se faz no caminho, e esta condição de peregrinação permanente é um dado essencial. Não pode haver sentimento de aquisição ou posse, de garantia de chegada ou de orgulho plenificador. Em verdade, todo e qualquer sentimento de posse deve ser rechaçado radicalmente. Como diz o ditado tradicional: “Se encontrares o Buda, mate-o”. Para a tradição zen, esse é um ponto extremamente sensível e perigoso: o risco da hybris  totalitária e da desmesura. Não pode haver consciência de chegada, mesmo na proximidade da habitação. Aqui aparece pela primeira vez a palavra “casa”, no sentido de retorno à casa. É uma palavra muito importante, pois está a indicar o lugar fundamental em que se encontra situado o verdadeiro si.

7. O boi foi esquecido e o pastor permanece


            Procedendo a hermenêutica das ilustrações, com o aporte de Shizuteru Ueda, verifica-se que as sete primeiras figuras retratam em progressão os momentos singulares que traduzem os ensinamentos budistas como a meditação, a disciplina e a unificação na bem-aventurança. Como indica Ueda, “o caminho da primeira até a sétima estação é ao mesmo tempo o processo de desprendimento do eu-sou-eu”[15]. Mas na compreensão do Zen-budismo não ocorre ainda a realização plena do si-mesmo, o que só irá ocorrer na oitava estação.

            Na sétima ilustração o pastor encontra-se só. Se antes havia o boi, que passageiramente vinha designado como indicador do caminho, agora o boi desaparece e o pastor “se encontra como uma pepita brilhante retirada da mina, ou como a lua que, se desvencilhando das nuvens, reaparece”. Isto vem indicado   no comentário da ilustração. Na verdade, quem se encontra ali, devotado em meditação, não é mais o pastor, mas o homem que se revela a si mesmo, como o verdadeiro si (Jiko). É como se o boi tivesse adentrado o homem. Aqui se dá, de certa forma, a realização da pergunta que tinha sido colocada antes. É quando começa o discurso do budismo em geral e do zen em particular. Aqui ocorre também um grave problema para o budismo: a consciência do tornar-se si verdadeiro. A questão envolve o risco de que junto a essa tomada de consciência venha em seu bojo o retorno do velho eu. Na imagem vemos o homem em postura de veneração diante da lua, como agradecendo pelo fato de ter conseguido alcançar essa unidade consigo mesmo. É alguém que se encontra agora “existindo de modo ´calmo e sereno`, como seu próprio senhor entre o céu e a terra, como é dito no prefácio respectivo”[16].

            Há agora um posicionamento de reconhecimento: depois de toda a luta, conseguiu-se chegar aqui. E justo neste momento ocorre uma possível fenda ou fissura, algo que nem sempre se revela perceptível. Numa outra versão da imagem, o homem não está venerando a lua, mas dormindo pacificamente. Como se agora o sono fosse permitido, uma vez alcançada a consciência da chegada e o mistério da união consigo mesmo. Até esta imagem, verifica-se um claro processo lógico: da inquietude inicial, da busca dos rastros do boi, do encontro com o boi, de sua captura e domesticação. São todas situações articuladas. Algo que é fácil captar. Agora, a partir desta nova fase, verifica-se um salto de nível. Começa então algo de diverso e radicalmente diferente.

8. O esquecimento completo do boi e do pastor


            A figura que agora emerge é a do círculo vazio, do radical esquecimento do boi e do pastor. É o momento da apófase do desejo, quando todo o passado vem abandonado, com suas ambições ou volições: tudo o mais “se esvaziou sem deixar vestígios”. É o que também indica o comentário que acompanha a imagem: “Não se detenha com prazer no lugar onde Buda mora. Passe rapidamente pelo lugar onde Buda mora”. Na oitava estação, o que ocorre é um “decisivo e determinado salto ao nada absoluto, aonde não há mais nem pastor que procura nem boi que é procurado, nem homem nem Buda, nem dualidade nem unidade”[17]. Com essa ilustração firma-se uma estação espiritual nova.

            Em clássico prefácio publicado por C.G. Jung em obra de Daisetz Teitaro Suzuki, ele faz a distinção entre o si mesmo e o eu. Para Jung, o si-mesmo é algo bem diverso do eu, de alcance maior e mais amplo. Ele “engloba a experiência do eu e, por isso mesmo, o ultrapassa”. O si-mesmo “é uma experiência de mim próprio, a qual, entretanto, já não é vivida sob a forma de um eu mais amplo ou mais alto, e sim sob a forma de um não-eu”[18].

            Não há mais vestígios do eu na oitava ilustração, mas a irrupção do verdadeiro si-mesmo, o que corresponde ao incondicional despojamento de si mesmo, à incondicional abnegação. Nesse momento, todas as experiências ou conhecimentos anteriores escapam sem deixar vestígios, incluindo também as aquisições religiosas. O humano “deve tornar-se o seu si-mesmo e Buda na forma mais simples e, de uma vez por todas, entrar no nada puro, ou seja, no ´grande morrer`, como se diz no Zen-budismo”[19].

            Nesta imagem, o boi desaparece, como também o homem que tinha absorvido o boi. E desaparece também o si verdadeiro. Tudo desaparece e só o nada brilha. Com base no budismo mahayana este momento corresponde ao nível (ou posição) do ku, ou seja, do vazio (sunyata). É o momento do nada absoluto. Do ponto de vista do praticante, esta situação é vista como a “grande morte” (Taishi)[20]. Na figura em tela está representado o momento “não sendo  eu” (“non essendo io”). Ou seja, o eu que não sendo eu é eu. Agora vive-se, propriamente, o momento do “não sendo”.

            A figura reflete o círculo vazio, dentro do qual não há nada desenhado. Trata-se do nada absoluto, infinito, que também não é nada, mas que simultaneamente envolve uma plenitude peculiar: um nada mergulhado no infinitamente aberto [21]. Atua como “negação infinita, como um radical nem isso nem aquilo, como negação de todo tipo de dualidade, assim como de unidade”[22]. Pode-se talvez aventar a ideia de que a lua observada na figura anterior era esse “mero nada vazio”, percebido como anseio profundo do sujeito em estado de meditação[23]. Justamente em favor da busca desse eu verdadeiro, revestido de profundo desprendimento, é que se explica essa sede de penetração no puro nada. Esse é o significado da “grande morte”, que não é só do eu egocêntrico, mas do eu mesmo. Daí ter Goethe exclamado com vigor em sua Nostalgia de bem aventurança (Divã Ocidental-Oriental): “Morre e devém” (Stirbe und werde), ou então “Morre e chega a ser”. A afirmação do nada absoluto traduz na verdade a libertação de todo pensamento substancializante e a transparência de um si-mesmo abnegado. Trata-se da ruptura da ideia do “eu sou eu”, com suas auto-intoxicações derivantes: o ódio contra os outros, contra si mesmo e a cobiça[24].

            O que este ciclo de imagens introduz como novidade para a reflexão é que o círculo vazio não vem entendido como o fim do caminho. Se assim ocorresse poderia dar uma ideia de vazio extremamente negativo. Como se o exercício de despojamento apresentado nas figuras anteriores desembocasse num nihil  sem sentido. O oitavo quadro, na verdade, não implica em nihilismo absoluto, mas aponta para um meio termo livre do ser e do nada. Esse mesmo nada que tudo nadifica é, de algum modo, “o nada que gera a afirmação”[25]. É com base na experiência radical do nada e do esvaziamento que um novo horizonte pode se firmar com sentido, como tão bem expresso nesse dito Zen:

            “Antes que eu penetrasse no Zen,
                  as montanhas nada mais eram senão montanhas
                  e os rios nada a não ser rios.
                  Quando aderi ao Zen,
                  as montanhas não eram mais montanhas
                  nem os rios eram rios.
                  Mas quando compreendi o Zen,
                  as montanhas eram só montanhas
                  e os rios, só rios”[26].

9. O retorno ao fundamento da origem

           
            Após passar pelo mergulho essencial no nada absoluto, a subjetividade renasce em sua perspectiva elemental, com o toque singular de um fundamento novidadeiro. O ego empírico passa por radical transformação, anulando-se a si mesmo e renascendo numa dimensão totalmente distinta. O sujeito vem agora habitado por um novo conhecimento, que é transcendental e não discriminante. Trata-se do conhecimento prajna. Neste estado, “todo o Ser transformou-se no vasto e ilimitado espaço do Vazio, onde coisa alguma pode ser apreendida como algo definido”[27]. É o momento sublime do retorno à origem, ao fundamento. A imagem apresentada é singular, um lugar “cego e surdo”, habitado apenas pelo fluir do rio e pela presença da flor. O rio simplesmente flui e a flor simplesmente floresce. Nada além disso.

            O vazio representado na figura anterior era um vazio em movimento, um vazio gerador. A passagem por esse estado essencial transformou o sujeito e a sua mirada. O olhar capta agora uma dimensão que estava antes ocultada, possibilitando ver as coisas como verdadeiramente são. Não se trata, na figura, de uma paisagem unicamente natural, mas de uma imagem que traduz o verdadeiro si, a verdadeira forma de si. Enquanto na imagem anterior tínhamos a representação da “Grande morte” (“não sendo eu” – “non essendo io”), aqui temos o momento em que o eu “não sendo eu” é verdadeiramente eu. É uma espécie de renascimento, ou ressurreição, como indica Ueda. Trata-se de um concretizar-se, figurativamente, fenomenicamente, daquele mesmo Nada Absoluto. Representando isso com outras palavras, é como quando observamos as flores. Vendo as flores, esquecemos de nós mesmos e admiramos as flores. E aí estão só as flores. Nesse esquecimento de si e nesta emergência, aparecimento das flores, das coisas, vistas como coisas, vem configurada concretamente esta nona figura. Também aí o correr do rio indica a dimensão lúdica desse “não sendo eu”. Ou dito de outra forma, nós somos o rio e nos tornamos o rio, e esquecemos de nós mesmos. Nos deixamos habitar e transportar pelo rio que vemos. Não é somente algo que vemos ali, mas somos por ele totalmente absorvidos.

            O “não sendo” da figura anterior, representado de forma abstrata, vem agora representado pelas coisas, de forma bem concreta. O verdadeiro si reaparece aqui como não si. E isto pode ser assim configurado: “eu não sendo eu, sou eu”. A quebra do dualismo sujeito/objeto, representado na figura anterior, vem agora retomada como “ressurreição” a partir do nada[28]. A árvore que floresce e o rio que flui simbolizam e encarnam o eu despojado, ou seja, o sem-eu do eu, ou ainda o “jogo da liberdade do eu sem eu”. Assim como há desprendimento no rio que flui ou na floração gratuita, o eu também floresce em seu desprendimento. Como indica Ueda, o Zen percebe uma força originária no florescer, e reconhece uma conexão existencial que vincula esse florescer com a abertura infinita do sujeito quando de fato “afetado” pelas coisas. Ao participar desse simples acontecimento – as flores florescem – o ser humano “pela força  presencial dessa percepção, vem reduzido a nada e despertado de novo para a vida, florescendo junto com as flores”[29].



10. O entrar no mercado com  mãos abertas


             
               A última figura é bem simbólica. Nela aparece um caminhante que se encontra com um jovem. Ele emerge com sua natureza irradiante, o peito descoberto e os pés descalços. O rosto vem carregado com o pó da terra e sua cabeça adornada com cinzas. É alguém que procede de uma estirpe estrangeira e  vem de longe. Mas nada nele traduz desânimo ou cansaço. Ele se apresenta com seu sorriso largo, iluminador, e uma perspectiva amigável. Os comentários que acompanham a ilustração indicam esse horizonte aberto. Em seu trajeto de vida visita agora “bares ou quiosques de peixes para fazer com que os homens bêbados se despertem para si mesmos”.

            Na imagem apresentada, o velho caminhante – que é o verdadeiro si – encontra com um jovem que está apenas iniciando sua jornada espiritual. O interesse do caminhante não está voltado para si mas para o outro. É alguém que passou pela experiência do desapego e despojamento radical. Alguém que agora vive a experiência do “eu sem eu como eu”.  O seu único foco de interesse é o outro. É o que a figura indica claramente: alguém que entra no mercado, na cidade, com as mãos abertas; alguém que “deixa cair” os braços, suavemente, o que na tradição budista significa gesto de doação. E o seu doar não é um doar qualquer coisa, mas um simplesmente estar ali, disponível e atento. Para o jovem, o fato de encontrar o andarilho deste modo significa viver uma completa transformação. Estar diante de alguém que não doa qualquer coisa. Esse momento de encontro representa para o jovem a possibilidade de desvendar seu próprio caminho, o seu próprio futuro, a sua própria identidade mais secreta. O ancião oferece ao jovem o caminho a ser percorrido. O que para um significa a décima estação, para o outro é o despertar para a primeira estação.

            Se a oitava figura representava o Nada Absoluto ou o Vazio, a nona desvendava o mundo da Natureza, e esta última o mundo da História. Neste novo momento, de interlocução dialogal, o gesto que marca o encontro é a saudação. Os dois amigos se inclinam um diante do outro, e o fazem de forma profunda e reverencial. Na perspectiva tradicional japonesa, o inclinar-se guarda um significado muito especial. Reclinar-se significa retornar ao nada, à origem, para então voltar rejuvenescido a si mesmo. É o momento onde os interlocutores deixam de ser si mesmos para deixarem-se habitar pela alteridade. Ao comentar sobre isso, Ueda indica que este gesto de saudação é bem mais profundo que uma mera cortesia. Ao inclinar-se o sujeito rompe com o seu eu na profundidade do “entre”, onde não há nem eu nem tu. A partir dessa zona de profundidade – que também pode ser identificada com o nada ou com a ausência de fundamento – ele retorna de forma radicalmente despojada. Isso significa que a relação dialogal vem penetrada pelo nada do nem-eu-nem-tu[30]. Por parte do ancião, o que ocorre é um “abandono no encontro com o outro desde sí mesmo”[31].

            O “nada” aqui vem entendido em sua dinamicidade global, como aquele espaço do “entre” que motiva a afirmação do verdadeiro si. Quando se assinala no comentário (figura 10) que o ancião vem de uma “estirpe estrangeira”, de um território desconhecido, o que se quer provavelmente indicar é que ele procede do nada absoluto, ou seja, passou pela radical experiência do despojamento. Daí a dinâmica de seu encontro ser pontuada pela hospitalidade mais essencial, pelo cuidado fundamental. E o curioso é que as questões que ele levanta são as mais simples possíveis, nascidas da dinâmica mais cotidiana, do território da humildade: “De onde você vem?”, “Qual o seu nome?”, “Como vai você”, “Você já comeu?”, “Você vê as flores?”. Tudo muito simples, como nas mais belas histórias do Zen. São perguntas cotidianas, despojadas e discretas.

            O movimento que acompanha a última figura é aquele do sujeito que sai de si mesmo para retornar a si mesmo. Tudo para chegar a uma conclusão que é profundamente simples: eu sou eu. Mas aqui estamos diante de uma identidade que atravessou o vale do nada e renasceu com liberdade e gratuidade singulares. E renasceu no solo vivo do cotidiano elementar. É na percorrida estrada do mundo, no calor vital do tempo e no encontro com outras pessoas que o verdadeiro si-mesmo desdobra a sua existência, e não num nirvana deslocado ou mal situado. O que ocorre, como dizem os grandes mestre, é o nirvana-em-samsara. Aquele modo de ser, que passou pelo embaraço do nada, desperta agora sereno para o envolvimento no mundo, sem perder jamais a referência daquele nada inaugural. Na décima estação, que é a última de um longo percurso, o tema pontual é o do encontro entre pessoas. Agora “o verdadeiro si-mesmo, ressuscitado do nada, age e joga entre homem e homem como uma dinâmica abnegada do ´entre`”[32].

(Publicado em: Faustino Teixeira Org. Mística e Literatura. São Paulo: Fonte Editorial, 2015, p. 15-30)




......
           
           



[1] E o mestre relacionado é Kaku-an Shji-en (Kuo-an Shih-yuan), da escola Rinzai.
[2] Daisetz Teitaro SUZUKI. Essais sur le Bouddhisme Zen. Première Série. Paris: Albin Michel, 1972, p. 436. Ver também: Id. Manuale di buddhismo zen. Roma: Ubaldini, 1976, p. 95-110.
[3] Suzuki faz menção a quatro séries de imagens da caça ao boi: as atribuídas a Kaku-an (relacionadas ao pintor Shûbun), a Seikyo, a Jitoku e de um autor desconhecido. Cf. Manuale di buddhismo zen, p. 96.
[4] Shizuteru UEDA. Zen y Filosofía. Barcelona: Herder, 2004.
[5] Shizuteru UEDA. O Nada absoluto no Zen em Eckhart e em Nietzsche. In: Antonio FLORENTINO NETO & Oswaldo GIACOIA Jr (Orgs). O nada absoluto e a superação do niilismo: os fundamentos filosóficos da Escola de Kyoto. Campinas: PHI,  2013, p. 205-237; Shizuteru UEDA. Le bouddhisme zen et Maïtre Eckhart. In: Julie CASTEIGT  (Ed). Maître Eckhart. Paris: Cerf, 2012, p.  343-361; Shizuteru UEDA. Silencio y habla en el budismo zen. In: Óscar PUJOL y Amador VEGA (Eds). Las palavras del silencio.  El lenguaje de la ausencia en las distintas tradiciones místicas. Madrid: Trotta, 2006, p. 13-38.  E ainda:
[6] Shizuteru UEDA. Zen y filosofia, p. 101.
[7] Shizuteru UEDA. O nada absoluto no zen..., p. 212.
[8] Josef PIPER. Que é filosofar? Que é acadêmico? São Paulo: EPU, 1981, p. 26-27.
[9] Para o acesso aos comentários das dez imagens cf. Shizuteru UEDA. Zen y filosofia, p. 137-158 (El buey e el boyero. Una antigua historia Zen china); Antonio FLORENTINO NETO & Oswaldo GIACOIA Jr (Orgs). O nada absoluto e a superação do niilismo..., p. 241-250 (Uma antiga história Zen chinesa com gravuras japonesas do século XV). As referências aos comentários no texto serão tomadas dessas obras.
[10] Shizuteru UEDA. Zen y filosofia, p. 109.
[11] José Carlos MICHELAZZO. Desapego e entrega: atitudes centrais da meditação Zen-budista e suas ressonâncias nos pensamentos de Eckhart e de Heidegger. Rever, Ano 11, n. 2, jul./dez. 2011, p. 145.
[12] Ibidem, p. 147.
[13] José Carlos MICHELAZZO. Desapego e entrega, p. 147.
[14] D.T. SUZUKI. A doutina zen da não-mente.  São Paulo: Pensamento, 1993, p. 92-93.
[15] Shizuteru UEDA. O nada absoluto no Zen..., p. 169.
[16] Ibidem, p. 166.
[17] Ibidem, p. 170. Como indica Ueda, o nada traduz “a quintessência da negação de qualquer possível designação predicativa”: Shizuteru UEDA. Zen e filosofia, Palermo: L´Epos, 2006, p. 236.  Uma analogia pode ser feita com Mestre Eckhart: “Os termos de negação em Eckhart, que levam a teologia negativa aos seus limites extremos, deixam sentir o ar gélido de uma abertura particularmente clara, mas tensa e infinita; ao mesmo tempo, como o cume de uma montanha alta que ao tocar a abóbada celeste se desvanece negando a si mesma. Este ar gélido é quase como o ar do Zen”: Ibidem, p. 178.
[18] C.G. JUNG. Psicologia e religião oriental. São Paulo: Círculo do Livro, 1990, p. 78.
[19] Shizuteru UEDA. O nada absoluto no Zen..., p. 170. Esse “morrer maior” ou “grande morrer” equivale ao último deixar do “ego”. Na mística cristã, com M. Porete, Eckhart ou Silesius, fala-se inclusive em “deixar Deus”, se esvaziar de Deus, de forma a romper com o lugar mesmo onde Deus pudesse atuar. Cf. M.PORETE. O espelho das almas simples. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 158 (92,9); M.ECKHART. Sermões alemães 1. Bragança Paulista/Petrópolis: São Francisco/Vozes, 2006, p. 289 e 290 (Sermão 52); Angelus SILESIUS. Il pellegrino cherubico. Cinisello Balsamo: San Paolo, 1989, p. 176 (PQ II, 92). Segundo Ueda, esse “deixar Deus” equivale ao “último deixar do ´ego`”. Trata-se para ele do “extremo ápice da negação existencial absoluta”, que encontra parentesco com o “matar o Buda”, ou o “matar o mestre do Zen”: cf. Shizuteru UEDA. O nada absoluto no Zen..., p. 179.
[20] Essa “grande morte” ou “morte fundamental” ganha semelhança com a “pobreza mais extrema” de que fala Eckhart em seu Sermão Alemão 52. Isso significa “lançar-se a si mesmo no ´deserto` sem Deus. Mas este deserto é ao mesmo tempo o lugar onde jorra a fonte da ´vida pura sem porquê`”: Shizuteru UEDA. O nada absoluto no Zen..., p. 180-181.
[21] Na visão de Hôseki Schinichi Hisamatsu, ao falar sobre o “Nada”, o Zen budismo aponta para algo que está além do êxtase ou da unio mystica, envolvendo uma “situação de plena consciência”, relacionada ao samadhi, num patamar onde sujeito e objeto encontram-se inseparavelmente unidos: La pienezza del nula. Sulla essenza del buddismo Zen. Genova: Melangolo, 1993, p. 20.
[22] Shizuteru UEDA. Zen y filosofia, p. 102.
[23] Shizuteru UEDA. O nada absoluto no Zen..., p. 189.
[24] Ibidem,  p. 169.
[25] Ibidem, p. 192.
[26] Thomas MERTON. Zen e as aves de rapina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p. 129.
[27] Toshihiko ISUTSU. Hacia una filosofia del budismo zen. Madrid: Trotta, 2009, p. 39.
[28] Shizuteru UEDA. Zen y filosofia, p. 103.
[29] Ibidem, p. 130.
[30] Shizuteru UEDA. Zen e filosofia. Palermo: L´Epos, 2006, p. 246-247.
[31] Shizuteru UEDA. Zen y filosofia, p. 103.
[32] Shizuteru UEDA. O nada absoluto no Zen..., p. 173. Ver ainda p. 175.