quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Oração

Oração

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF

A oração ou prece é um procedimento fundamental do homem religioso, talvez “o ato religioso essencial”, presente em todas as tradições. É o “respiro” que anima o homem espiritual, de uma universalidade que supera a fé explícita num Deus pessoal (C. Geffré, Passion de l´homme passion de Dieu, p. 124). Trata-se de um procedimento que transcende a diversidade das distintas religiões do mundo. Segundo a expressão cunhada pelo antropólogo Marcel Mauss, “a prece é um rito religioso, oral, diretamente relacionada com as coisas sagradas” (R.C. Oliveira, Mauss, p. 146). A oração é um ato, um movimento, mesmo que não venha acompanhada de palavra. Expressa uma “atitude da alma”. Trata-se de um ato “eficaz” pois pode suscitar fenômenos extraordinários. É um ato que expressa uma ação sobre os seres sagrados, que envolve sua presença e suscita modificações no fiel, numa perspectiva dinamogênica. Mesmo quando realizado individualmente e solitariamente, a oração é um “fenômeno social”, como bem mostrou Marcel Mauss. Mesmo em sua forma mental, traduz uma dinâmica social, pois “o espírito que a domina é o da igreja, as ideias que suscita são as da dogmática de sua seita, os sentimentos que aí dominam são os da moral de sua facção” (R.C. Oliveira, Mauss, p. 117).
Em suas diversas expressões linguísticas (prece, prière, prayer, Gebet, proseukh etc.), a oração envolve dois movimentos: uma súplica dirigida ao Mistério, ao Sagrado; e uma crença de que essa comunicação é possível. Implica também uma atitude essencial de “escuta”, de deixar-se habitar pelo hálito do Misericordioso, como pode ser verificado na devoção judaica, no exemplo da vocação de Samuel (1Sm 3). Essa atitude orante pode ocorrer em qualquer lugar, não se restringindo aos locais de culto. Dizia com razão Thomas Merton: “Nenhum escrito sobre as dimensões de solidão, de meditação da vida pode dizer algo que já não tenha sido dito melhor pelo vento nos pinheiros” (T.Merton, Amor e vida, p. 17). O essencial é saber escutar, disponibilizar o mundo interior, com atitude de paz e equilíbrio, para escutar o canto das coisas. Na visão de Merton, não há momento despido da presença do Mistério, o que se requer é disponibilidade interior para ouvir o seu canto. Todo momento é um “bom momento para Deus, seu kairós. Tudo se limita a darmos oportunidade, na oração, para a consciência de que temos o que buscamos. Não temos que perseguí-lo. Ele está sempre aí, e se lhe damos tempo ele se apresenta a nós” (W. Shannon; C. M. Bochen; Patrick F. O´Connel, Diccionario de Thomas Merton, p. 403).
O orante é alguém que se vê interpelado, que se dirige a um Tu amoroso, num campo aceso de sentido: “Quando te invoco, responde-me, ó meu justo Deus! Na angústia tu me aliviaste: tem piedade de mim, ouve a minha prece!” (Sl 4, 2). E o crente amoroso tem convicção de que o Misericordioso é capaz de captar a nervura da prece, como acentuou o místico sufi Rûmî, numa das passagens de seu Masnawi, com base num  clássico dito do livro do Corão: “Recordai-vos de mim, que eu me recordarei de vós” (C 2,152). Seguindo a pista aberta por Rûmî, quando há no coração a presença da centelha do amor de Deus, a correspondência de amor vem imediatamente. Deus apresenta-se no ato mesmo da invocação do fiel. A súplica do amante de Allah corresponde ao “aqui estou” (labbayka) de seu Amado (MIII, 189s). Na tradição islâmica, a rememoração de Deus (dhikr) está viva em todo cotidiano do fiel, que vem instado a invocá-lo do amanhecer ao entardecer (C 7, 205). O fiel sente a efetividade do Mistério em cada passo da existência, pois ele está mais próximo que sua veia jugular (C 50, 16). Para o muçulmano, a sura de abertura do Corão, a Fatiha, é a oração que serve de chave para a compreensão do Livro, como uma síntese de todo o seu conteúdo (A.Ventura, Al Fatiha). A vida e a morte dos fiéis muçulmanos são adornadas por essa potente oração. Logo na entrada, a basmala(o primeiro versículo do Livro), como “fórmula invocativa fundamental”, indica o universo da divina proteção que cobre cada um dos fiéis na sua jornada. A Misericórdia, que abraça todas as coisas, não deixa nenhum fiel à margem de sua proteção (C 7, 151; C 7, 156).
Na tradição cristã ocidental, há a presença singular de Teresa de Ávila, ou Teresa de Jesus, a grande mestra do discernimento espiritual. Traçando o passo pedagógico para entender o universo da oração, ela sublinha que a oração não é questão de pensamento, mas de amor: “O essencial não é pensar muito – é amar muito” (IVM 1,7). Em linha de sintonia com a tradição mística esponsal, Teresa reitera a oração como uma relação amorosa com Deus, insistindo para com aqueles que ainda não fizeram tal experiência não deixarem de praticá-la, pois estariam privados de um grande bem. A oração para ela é um “trato de amizade”, favorecendo o estar a sós “com quem sabemos que nos ama” (V 8, 5). No repertório de Teresa há inúmeras modulações da oração, como “louvar, adorar, suplicar e pedir, interceder e expiar...”, bem como outros componentes: “o requebro, a queixa, a ousadia, até a liberdade de ´dizer desatinos´” (P. Sciadini, Dicionário de Santa Teresa de Jesus, p. 531). Para Teresa, a oração sempre direcionava-se para as obras: “O Senhor quer obras. Se vês uma enferma a quem podes dar algum alívio, não tenhas receio de perder a tua devoção e compadece-te dela (VM, 3,11). Em âmbito da tradição cristã oriental, há o exemplo do misticismo monástico russo, que remonta ao centro monástico do Monte Athos. O traço característico é o hesicasmo, com a singualidade das fórmulas breves, como a “oração de Jesus”. O nome referencial é Gregório Palamas (T.Merton, Místicos e mestres zen, p. 190-199).
A oração ocupa igualmente um lugar central na mística judaica. Como exemplo, a reflexão de Abraham J. Hescchel, um dos mais destacados pensadores religiosos do século XX. Em sua visão “orar é tomar conhecimento do maravilhoso, é apreender o senso do mistério que anima todos os seres, a margem divina de todas as realizações” (A.J Heschel, O homem à procura de Deus, p. 21). É algo que ultrapassa a mera emoção, pois favorece “a aproximação do humano com o transcendente”, fazendo do humano um partner do sublime, na presença inebriante de seu mistério.
Como se pode perceber, a oração é um “ato” essencial na dinâmica de nomização humana, de dar sentido ao significado e presença do ser humano no tempo, marcado pela impermanência, mas permeado por uma sede que não se apaga, de se aconchegar na Presença Inefável.

Referências Bibliográficas:

A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulinas, 1981.
NASR, Helmi. Tradução do sentido do nobre Alcorão. Brasília: Centro Islâmico do Brasil, s/d (citado no texto como C = Corão)
GEFFRÉ, Claude. Passion de l´homme, passion de Dieu. Paris: Cerf, 1991.
HESCHEL, Abraham J. O homem à procura de Deus. São Paulo: Paulinas, 1974.
MERTON, Thomas. Místicos e mestres Zen. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
MERTON, Thomas. Amor e vida. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Mauss. São Paulo: Ática, 1979.
RÛMÎ, Djalâl-od-Dîn. Mathnawî. La quête de l´Absolu. Paris: Rocher, 1990 (citado com MIII = Mathanawî livro III)
SANTA TERESA DE JESUS. Castelo interior ou moradas.  8 ed. São Paulo: Paulus, 1981 (citado no texto com IVM = Quartas Moradas)
SHANNON, William H. & BOCHEN, Christine M. & O´CONNEL, Patrick F. (Eds). Diccionario de Thomas Merton. Bilbao: Ediciones Mensajero, 2015.
TERESA DE JESUS. Obras completas.2 ed.  São Paulo: Edições Carmelitanas/Loyola, 2002 (citado no texto com V = o Livro da Vida).
VENTURA, Alberto.Al-Fatiha – l´aprente. La prima sura del Corano. Genova: Marietti, 

Faustino Teixeira

sábado, 14 de setembro de 2019

Grande Sertão: Veredas, uma epopeia metafísica

Grande Sertão: Veredas, uma epopeia metafísica

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF

“Quando a gente dorme, vira de tudo: 
vira pedras, vira flôr”  (GSV: 209)


            Sem dúvida, estamos diante de uma das mais importantes realizações da literatura brasileira no século XX, com destaque essencial na literatura mundial. Trata-se da obra de Guimarães Rosa (1908-1967), Grande sertão: veredas[1]. Veio recentemente reeditado no Brasil pela Companhia das Letras, em sua 22ª edição[2]. Em âmbito internacional, o livro ganhou muitas edições, com destaque para a tradução alemã[3], com diversas edições sucessivas; bem como a reconhecida tradução italiana[4], com quatorze edições publicadas.

            Como mostrou Walnice Nogueira Galvão, “Guimarães Rosa é único na literatura brasileira: foi em sua pena que nossa língua literária alcançou seu mais alto patamar”[5]. O romancista conseguiu com sua obra tocar o “centro da língua”, recorrendo com grande criatividade e ousadia à mais ampla “utilização de virtualidades” da narrativa portuguesa[6]. Há algo de misterioso e místico em GSV, revelando uma parceria singular entre autor e obra, como um “casal de amantes”. Em entrevista a Günter Lorenz, em janeiro de 1965, Rosa dizia que “o bom escritor é um arquiteto da alma”[7]. Sem dúvida, sua relação com a linguagem tem um toque místico, de mistério, que carrega um jeito peculiar de ruminação da palavra que o mantém em alerta por horas ou dias[8]. Daí a grande dificuldade de traduzi-lo para outras línguas. Algo desse mistério se perde na tecnicidade da versão para outro idioma. E Rosa assinala que quando a dúvida o assoma, ele busca resposta não entre os doutos professores, mas entre os vaqueiros de Minas Gerais, “que são todos homens atilados”[9]

            Grande Sertão: Veredas foi publicado em 1956, mas seu primeiro rascunho ficou pronto em julho de 1954. O número de páginas varia conforme a edição e a diagramação. Tomando como referência a quinta edição, de 1967, que foi a última publicada em vida do autor, são 460 páginas, e a 22ª edição tem 435 páginas[10]. Nelas habita a força de uma linguagem dotada de vida e “compromisso de coração”, alçando a reflexão a grandes labirintos metafísicos, com criação e fantasia, sem romper, porém, com a dinâmica do quotidiano. Ainda recorrendo à entrevista com Günter Lorenz, Rosa sublinha a dimensão de “infinito” presente na sua reflexão[11], mas que retorna sempre ao dia-a-dia: “Na literatura, a fantasia nos devolve sempre enriquecidos à realidade do quotidiano, onde se tecem os fios da nossa treva e da nossa luz, no destino que nos cabe”[12]. O personagem Zé Bebelo em GSV assinala: “A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro...” (GSV: 202). Por ocasião do lançamento da nova edição de GSV pela Companhia das Letras (2019), Mia Couto dizia que nesta obra “encontrou o retrato mais fiel do Brasil”[13]e que poderia, perfeitamente, ser escrita no tempo atual. O romancista recorreu ao linguajar regional “para fazer um texto universal”, com linguagem inovadora[14].

            Não é um livro de fácil leitura, há que reconhecer. Isso em razão da peculiaridade da dinâmica da narrativa. Em verdade, um monólogo que retrata a interlocução do velho jagunço Riobaldo Tatarana com um homem da cidade. Nessa conversa, Riobaldo passa em revista o seu passado, os seus temores, as suas crenças e o seu mundo. A conversa é realizada mediante um curso de “associações de uma mente atormentada refletindo sobre algo que tende a lhe escapar, mas que aflora nas imagens do demônio, do sertão, do bem e do mal, na menção de bichos e pedras e de plantas, na evocação de acontecimentos corriqueiros ou excepcionais”[15]

Há que ter disciplina e paciência para a leitura do livro. O seu acesso é complexo, como lembram Mia Couto e Fernando Sabino. Como diz esse último autor, “no princípio, dez primeiras páginas, é meio assim-assim, custa um pouco a engrenar, mas de repente a gente se embala no ritmo dele e não larga mais”[16]. Quando se entra na sintonia do livro, o maravilhamento toma o leitor, como no caso de Clarice Lispector: “Nunca vi coisa assim! É a coisa mais linda dos últimos tempos (...). O livro está me dando uma reconciliação com tudo, me explicando coisas adivinhadas, enriquecendo tudo”[17].

            No processo de interlocução com o senhor da cidade, Riobaldo expressa sua dificuldade de narração: “Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares” (GSV: 136). E a obra vai se desenrolando num marco de ambiguidades que são impactantes: no campo da geografia, dos tipos sociais, das afetividades, das crenças e, sobretudo, da reflexão metafísica. A ambiguidade metafísica revela, talvez, o ponto nevrálgico da obra, como sinaliza Antonio Candido: “Ambiguidade metafísica, que balança Riobaldo entre Deus e o Diabo, entre a realidade e a dúvida do pacto, dando-lhe o caráter de iniciado no mal para chegar ao bem”[18].

            Um dos maiores clássicos na abordagem de GSV é Manuel Cavalcanti Proença, que escreveu o livro, Trilhas no grande sertão, em 1958[19]. Ele distingue duas linhas paralelas na obra assinalada: uma objetiva, que aborda o itinerário de andanças e combates; e outra subjetiva, que sinaliza as “marchas e contramarchas de um espírito estranhamente místico, oscilando entre Deus e o Diabo”[20]. Tudo pode ser traçado em sete partes constitutivas, como mostrou Willi Bolle, em sua obra capital sobre o livro, com início na situação narrativa de apresentação do personagem, passando pela sua dinâmica iniciática na travessia do São Francisco, e abrindo o campo de sua longa epopeia pelo sertão, na vivência de seus amores e embates até, por fim, largar a jagunçagem[21]. O Rio São Francisco serve também como um referencial, refletindo as duas partes da vida do jagunço Riobaldo, qualitativamente diversas: O lado direito

“é o fasto; nefasto o esquerdo. Na margem direita a topografia parece mais nítida; as relações, mais normais. Margem do grande chefe justiceiro Joca Ramiro; do artimanhoso Zé Bebelo; da vida normal no Curralinho; da amizade ainda reta (apesar da revelação de Guararavacã do Guaicuí) por Diadorim, mulher travestida de homem. Na margem esquerda a topografia parece fugidia, passando a cada instante para o imaginário, em sincronia com os fatos estranhos e desencontrados que lá sucedem. Margem da vingança e da dor, do terrível Hermógenes e seu reduto no alto Cariranha; das tentações obscuras; das povoações fantasmais; do pacto com o diabo”[22].

            Partindo da chave metafísica para a compreensão da obra, pode-se dizer, com base na reflexão de Antonio Candido, que o sertão representa o mundo e o os jagunços cada um dos seres humanos. Como diz o velho Tatarana, “o sertão está em toda a parte” (GSV: 13), ele “é dentro da gente” (GSV: 224). O sertão é um “microcosmo” que retrata uma dinâmica universal. É o que traduz o plano subjetivo da narrativa, “constituído pelos conflitos interiores e a perquirição metafísica do protagonista, pois tanto estes conflitos quanto a busca por ele empreendida do sentido da vida são preocupações universais que ultrapassam as barreiras de uma região geográfica específica”[23]. Como elementos estruturais que delineiam a composição da obra estão a terra, o homem e a luta[24].

            Em confidência ao seu tradutor italiano, Edoardo Bizzarri, Guimarães Rosa assinala que “no balanço dos componentes de sua narrativa, atribuía somente um ponto ´à realidade sertaneja`, dois ao enredo, três à poesia, e o mais alto, quatro, ao elemento metafísico e religioso”[25].

            A obra é uma epopeia existencial, e traz impressionantes registros da região onde a luta se desenrola: 

“A experiência documentária de Guimarães Rosa, a observação da vida sertaneja, a paixão pela coisa e pelo nome da coisa, a capacidade de entrar na psicologia do rústico, - tudo se transformou em significado universal graças à invenção, que subtrai o livro à matriz regional para fazê-lo exprimir os grandes lugares comuns, sem os quais a arte não sobrevive: dor, júbilo, ódio, amor, morte, - para cuja órbita nos arrasta a cada instante, mostrando que o pitoresco é acessório e que na verdade o Sertão é o Mundo”[26].

                  O leitor atento depara-se com uma singular riqueza de detalhes apresentados pelo autor, como a topografia da região, os inúmeros rios, as listas infindáveis de animais, pássaros e plantas presentes na área. O registro capta ainda as crenças populares e os hábitos culturais, as comidas e o misticismo que impregnam a narração. Sobre isso vale debruçar-se nas lindas descrições feitas por Cavalcante Proença ao tratar do plano mítico do livro: a presença e o significado das águas, dos rios, em particular do Urucúia; do significado dos ventos, outro personagem constante no livro; dos buritis e do Mar, que guarda o grande segredo, o mistério da vida e da morte[27].

            A grande questão disposta no livro é aquela que acompanha o itinerário de Riobaldo: existe ou não o Demo? Para o narrador, a grande questão “é a existência dele: existe ou não? Em princípio, sente que é um nome atribuído à parte torva da alma”[28]. Na conversa com o interlocutor, Riobaldo esclarece: “Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos” (GSV: 15)[29]. Esses conflitos de Riobaldo no plano subjetivo correspondem nitidamente aos conflitos universais pelos quais passa todo ser humano. Não há quem não tenha essa ambiguidade dentro de si. Faz parte do drama de estar situado no mundo, da busca do “sentido da vida”[30]. São dramas humanos que Guimarães Rosa, com sua arte, consegue sensibilizar o leitor: 

“As mesmas perplexidades, as mesmas dificuldades enfrentadas por ele (Riobaldo) chegam até ao leitor com a mesma força e conturbadas pelas mesmas dúvidas, graças à superior capacidade com que instalou dentro dos signos linguísticos o mundo em processo, realizando-se dinamicamente, para que o leitor o enfrentasse com instrumentos equivalentes aos seus”[31].
            
            O que busca fazer Guimarães Rosa em sua narrativa, como ele mesmo expressou para Curt Meyer-Clason, é “rodear e devassar um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa movente, rebelde a qualquer lógica, que é a chamada ´realidade`, que é a gente mesmo, o mundo, a vida”[32]. Conforme diz Tatarana, “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (GSV: 53).

            Essa travessia se dá no sertão. É ali que Guimarães Rosa insere a epopeia de Riobaldo. Trata-se de um conceito que não se limita à sua configuração geográfica, mas a uma “região múltipla e ambígua”, que abriga “os elementos mais contraditórios, tais como ´confusão` e ´sossego`, e sobretudo ´Deus` e o ´Demo`”[33]. No âmbito geográfico, o sertão de Guimarães Rosa envolve o noroeste de Minas Gerais, o sudoeste da Bahia e o sudeste de Goiás. Impressiona o trabalho realizado por Guimarães Rosa e sua preocupação de veracidade. Das cerca 230 localidades citadas em GSV, 280 foram localizadas pela pesquisa de Alan Viggiano[34]. Como aponta este autor, “todos os rios, vilas, serras, caminhos, veredas, são localizáveis. Inclusive as cidades que, de um modo ou outro, entram nas narrativas”[35]. O clima e a ambientação do livro pode ser captado por quem viaja de carro do Distrito Federal à cidade de Belo Horizonte: “Não só o clima físico e emocional das estórias de Guimarães Rosa, como os próprios nomes de lugares usados por ele na concepção de seus enredos. É natural. Aquela estrada corta, em sentido diagonal descendente, de noroeste para sudeste, o território do Sertão”[36].

            O sertão de Guimarães Rosa é, simultaneamente real e fantástico, “onde a brutalidade impõe técnicas brutais de viver, onde os fenômenos de possessão religiosa, gerando beatos e fanáticos, diferem pouco, na sua natureza e consequência, dos que poderíamos atribuir à possessão demoníaca”[37]. O sertão é a terra sem lei, é o “sem lugar”, e “todos aqueles que molmontam no sertão só alcançam de reger em rédeas por uns trechos; que sorrateiro o sertão vai virando tigre debaixo da sela” (GSV: 270-271). O sertão está sempre rodeando em torno, no que menos se espera: “Sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar” (GSV: 25). Daí ser a travessia tão perigosa.

            O jagunço é uma figura singular do sertão, é o pistoleiro ou sem-terra que o povoa. É um “tipo híbrido entre capanga e homem de guerra”[38]. Ele vem contratado para garantir os limites da propriedade ou grilar terras ou mesmo para “eliminar adversários; organizar eleições, recorrendo à fraude e à intimidação, mobilizando os eleitores ´de cabresto`; desencadear contendas ou reprimi-las”[39].

            O personagem central de GSV é um jagunço, Riobaldo. É o narrador-protagonista. Tinha como apelido Cerzidor, depois Tatarana (lagarta de fogo) e mais tarde, já iniciado, Urutu Branco (das serpentes, a mais venenosa). Sua trajetória começa no campo das Gerais, tendo nascido em condições difíceis. Perde sua mãe – Bigrí - cedo, sendo acolhido por seu padrinho Selorico Mendes, que tinha três fazendas de gado. Ele o introduz nas letras e também nas artes da guerra. Queria que Riobaldo tirasse “carta-de doutor” (GSV: 87), mas também que “aprendesse a atirar bem, e manejar porrete e faca” (GSV: 86).  E Riobaldo aprendeu o segredo de atirar “com espírito” (GSV: 95).

Inicia então seus estudos numa escola da aldeia próxima, Curralinho. Foi nessa ocasião que tomou contato pela primeira vez com o grande Joca Ramiro. Quando, porém, descobre que seu padrinho é, na verdade, seu pai ele foge de casa e busca emprego numa fazenda por indicação de Mestre Lucas. Lá encontra Zé Bebelo, que oferece a ele um cargo de secretário, e assim parte para a jagunçagem. O desgosto daquela vida o faz desistir da empreitada. Em meio à fuga, numa outra fazenda, topa então com um Menino que vai transformar a sua vida. Aquele Menino era Diadorim: “De repente, vi um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro. Menino mocinho, pouco menos do que eu, ou devia regular com a minha idade (...) e era um menino bonito, claro, com a testa alta e os olhos aos grandes, verdes” (GSV: 79).

            Foi com esse Menino que Riobaldo escutou uma frase decisiva: “Carece de ter coragem” (GSV: 82)[40]. Foi por ocasião de uma travessia do São Francisco numa canoa, quando foi ajudado pelo garoto, e pôde sentir o contato de suas mãos  e seus dedos delicados. Na ocasião pôde também perceber a destreza do Menino com a faca, livrando-os de um assédio ameaçador. Foi quando também ouviu do amigo uma palavra cortante: “Sou diferente de todo mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito diferente” (GSV: 84).

            Riobaldo não se esqueceu mais daquele Menino, e depois de muitos anos o reencontrou como jagunço. Ele era filho de Joca Ramiro, chefe de um bando, e entre os dois nasce uma “relação de amor e de morte, que se desenrola sob o signo de Deus e do Diabo. Nessa relação, a camaradagem viril se mistura a um desejo dos mais ambíguos, assim como o prazer da amizade entre ambos à guerra incessante em que estão empenhados”[41]. Riobaldo foi tomado pela força daqueles olhos verdes, tudo reluzia com sua presença, todas “as cores do mundo” (GSV: 111). E acrescentava: “Qualquer coisa que ele falasse, para mim virava sete vezes” (GSV: 109).

            Em trajetória guerreira de participação em muitos bandos, às vezes rivais uns dos outros, Riobaldo titubeia com respeito à sua vocação ou motivação. Permanece envolvido pela grande dúvida sobre a justiça e as causas últimas, e uma ambiguidade que o acompanha por toda sua caminhada. A seu lado, motivando-o, a presença amiga do Menino, que aos poucos revela a ele o seu nome Diadorim.

 A expressão “Nonada” que abre o romance, 

“sofre no percurso narrativo ricas elaborações metafóricas e ampliações imagéticas. Se ela funciona como uma síncope preliminar – negação e corte de conteúdos que o leitor ainda desconhece -, seu potencial semântico negativo ressurge, ao longo do romance, nos temas do vazio, do abismo, dos fundos insondáveis do sertão. A travessia se faz confrontação com o nada, aventura no nada, experiência extenuante da negatividade e do despojamento crescentes, que aparecem por vezes irrecuperáveis”[42].

O nada faz parte também da dinâmica ambígua que domina o personagem central do romance, e está relacionado com sua luta permanente: vencer o medo, provar a coragem nos combates e lidar com as aventuras e desgostos do amor. E por toda a trajetória a presença daquela figura atemorizadora do Demo. A frase que serve de epígrafe ao livro vem retomada diversas vezes: “O diabo na rua, no meio do redemoinho”. Assinala a respeito Walnice Galvão: “Se por um lado tudo é Deus, por outro lado nenhum domínio é defeso ao Diabo. Assim como a alma dos homens, todo o reino da criação pode ser penetrado pelo demônio e ser sujeitado a ele, tornando-se seu instrumento”[43].

O Demo vem nomeado no livro com nada menos do que 52 nomes. Entre os quais: o Tal, o Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Duba, o Rapaz, o Tristonho, o Pai da Mentira, o Bode Preto, o Morcegão, o Xú, e assim por diante (GSV: 35 e 302). Riobaldo capta essas expressões do imaginário popular. E aquela dúvida que o acompanha todo tempo: o diabo existe ou não existe? E por que razão?: “Porque nada encarnaria melhor as tensões da alma, nesse mundo fantástico, nem explicaria mais logicamente certos mistérios inexplicáveis do Sertão”[44].

O Demo também transmuta-se na dinâmica de ódio que impera no sertão, sendo também representado na figura do jagunço Hermógenes – o polo da violência por excelência. O ódio, diz Riobaldo, “é aquele que não carece de nenhuma razão” (GSV: 284). E emerge “de maneira mais evidente no fogo da batalha, que revela simultaneamente a verdade e a essência da guerra”[45].

Riobaldo é atormentado pelo Demo, pelo ódio, e também pelo sofrimento que campeia nas Gerais. Fala sobre “o inferno feio deste mundo: que nele não se pode ver a força carregando nas costas a justiça, e o alto poder existindo só para os braços da maior bondade” (GSV: 281). Há momentos em que ele procura fugir daquele território da dor: “Eu queria poder sair depressa dali, para terras que não sei, aonde não houvesse sufocação em incerteza, terras que não fossem aqueles campos tristonhos” (GSV: 283). Tudo ali era devastação: “Tudo, naquele tempo, e de cada banda que eu fosse, eram pessoas matando e morrendo, vivendo numa fúria firme, numa certeza, e eu não pertencia a razão nenhuma, não guardava fé e nem fazia parte” (GSV: 107).

Como recurso poderoso tinhas a força das orações. Desde quando tinha saído de casa, carregara consigo “uma imagem de santo de pau” (GSV: 85). Quando encontrou o Menino no porto do de-Janeiro estava com sua canequinha pedindo  esmolas para o Senhor Bom-Jesus (GSV: 85). Trazia do berço essa fé profunda, enriquecida com os conselhos poderosos do compadre Quelemém, sábio de horizontes inter-religiosos. Ele dizia para Riobaldo que a luta era mesmo difícil:  “Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho” (GSV: 48). A religião era assim central em sua vida:

“O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio... Uma só para mim é pouca, talvez não me chegue” (GSV: 19).

O inferno estava alí, sempre à disposição, mas as rezas fortes contrapunham os seus desígnios. Havia um caminho mais importante a seguir: de “recondução das coisas a si próprias”. Daí a importância da coragem recorrente: “O espírito da gente é cavalo que escolhe estrada: quando ruma para a tristeza e morte vai não vendo o que é bonito e bom” (GSV: 138). Riobaldo tinha a seu favor a presença das “rezas fortes”, estava bem assistido pelos bons espíritos. As rezas de Maria Leôncia, Izina Calanga e outras. E dizia: “Quero punhado dessas, me defendendo em Deus, reunidas de mim em volta... Chagas de Cristo!” (GSV: 19)[46]. Tinha ainda a presença de todas as Nossas Senhoras Sertanejas, e em particular a Nossa Senhora da Abadia, proteção maior contra o Demo[47]. Ela, sim, é que valia, “por um mar sem fim” (GSV: 219)

Riobaldo não podia imaginar um mundo sem Deus. Daí sua reação de espanto com o doutor de Arassuaí, que não acreditava em Deus: “Estremeço. Como não ter Deus? ! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra” (GSV: 49-50). O Diabo ronda os caminhos, mas Deus, diz Riobaldo, “é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço!  me dá o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza” (GSV: 24).

Nas reflexões metafísicas de Riobaldo ele fala do grande sonho de todo ser humano: querer Céu. Tem consciência viva do “estado de demônio” que paira por todo canto, mas “a gente quer Céu é porque quer um fim: mas um fim com depois dele a gente tudo vendo” (GSV: 50). Sonhava com uma vocação diferente: “Um fazendão de Deus, colocado no mais tope, se braseando incenso nas cabeceiras das roças, o povo entoando hinos, até os pássaros e bichos vinham bisar”; um lugar de “gente sã valente, querendo só o Céu, finalizando” (GSV: 49).

O demônio, porém, age nas gretas, nos intervalos, aproveitando espertamente dos vacilos na caminhada. Como diz Walnice Galvão, 

“O Diabo ganha pequenas paradas, rápidas e logo concluídas dentro do grande fluir de tudo que existe e que é Deus; mas nessas pequenas paradas pode se danar um homem. O Diabo implica na certeza dessas pequenas paradas que se ganha ou se tenta ganhar, dentro da incerteza geral que é o fluir, onde tudo se transforma, onde uma coisa sai de outra, e desta outra vai sair outra, e assim sucessivamente. Tentar parar esse fluir através de uma certeza é a tarefa do Diabo. ´Deus é paciência. O contrário é o Diabo` (GSV: 20)”[48].

Reforço na caminhada é o que consegue Riobaldo com a presença amiga de Diadorim, sempre junto com a força de sua beleza e coragem. Diadorim era o filho secreto de Joca Ramiro. Vinha marcado por um ódio visceral, decorrente do assassinato de seu pai por Hermógenes. Ele dizia: “Não posso ter alegria alguma, nem minha mera vida mesma, enquanto aqueles dois monstros[49]não forem bem acabados” (GSV: 28). Guardava celibato, o que criava um clima singular em todo o romance, na relação com Riobaldo. Diadorim era chamamento, mas também repulsão: “Enquanto atrai pelo conjunto dos dons pessoais, pelo sortilégio das qualidades, principalmente pela feminilidade, repele pela energia moral acumulada desde sempre pelo voto de castidade que é o suporte maior dessa energia. Assim como os santos-mártires têm raro poder de provocar a libido e força maior para vencer a tentação e o demoníaco, porque ´nasceu para o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor`”[50].

Mesmo com suas resistências, sua feminilidade emerge várias vezes ao longo do romance: nas suas feições, na cintura fina, no comportamento com os jagunços, no mistério de seus banhos noturnos, nos desaparecimentos inexplicáveis, no pudor manifesto, no instinto materno explicitado em determinadas ocasiões[51]. Nos momentos em que Riobaldo acena para um envolvimento maior, ela recua, com várias artimanhas[52]. Num momento de aperto, Diadorim pontuou: “Nego que gosto de você, no mal. Gosto, mas só como amigo! (GSV: 212). Ou ainda em outra ocasião, reiterou: “Riobaldo, eu gostava que você pudesse ter nascido parente meu...” (GSV: 308). Como mostrou com acerto Kathrin Ronsenfield, “Diadorim nunca manifesta um amor feminino ou sensual que visaria no amigo um corpo sexuado, mas articula apenas saudades de parentesco. Contrariamente às relações eróticas, o parentesco expressa um vínculo imediato e natural, ou seja, anterior e independente de uma escolha, de um ato livre e simbolicamente relevante do sujeito”[53].

 Riobaldo estava, assim, diante de uma pureza irredutível:

“O destino fatal de Diadorim não está longe das imagens da androginia mortífera do romance goethiano. A indeterminação sexual que obstaculiza a plenitude temporária da união sexual mas, ao mesmo tempo, redime e protege o sujeito do desencanto e do anticlímax subsequente à euforia do orgasmo, coloca-se tanto em Goethe como em Guimarães Rosa, como a quintessência do desejável, do pleno e do perfeito”[54].

Em verdade, é Diadorim quem introduz Riobaldo na secura do mundo, na aspereza do sertão e na dinâmica das lutas; mas é ele igualmente que revela para Riobaldo a beleza da natureza: “Quem me ensinou a apreciar essas belezas sem dono foi Diadorim” (GSV: 26); a doçura de pássaros como o manuelzinho-da-crôa: “É preciso olhar para esses com um todo carinho” (GSV: 108). 

Com sua intenção duradoura, Diadorim convoca Riobaldo para seguir a travessia em busca da vitória sobre Hermógenes. É ela quem “puxa Riobaldo para o mundo do qual tentou fugir: o mundo da ´constante brutalidade`”[55]. Era o mundo de Hermógenes, aquele “homem sem anjo-da-guarda” (GSV. 89), que será o tormento na trajetória de Riobaldo.  “Para vencer Hermógenes, que encarna o aspecto tenebroso da Cavalaria sertaneja, - cavaleiro felão, traidor do preito e da devoção tributadas ao suserano – é necessário ao paladino penetrar e dominar o reino das forças turvas”[56].

Riobaldo tenta, então, conseguir seu objetivo fazendo o pacto com o Demônio. É um momento de viagem solitária, que nem mesmo Diadorim pode acompanhar: “Ah, deixa a aguinha das grotas grugejar sozinha” (GSV: 301). Vai ao encontro da aventura sozinho, com seu querer, disposto a enfrentar a adversidade. Na encruzilhada das veredas mortas busca tirar de dentro de seu tremor as palavras que pudessem convocar o Demo, envolvido pelo “rôr de nada” (GSV: 302). Os sentimentos estavam embaralhados: “Acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era – ficar sendo” (GSV: 303). Somando forças para o momento, consegue bramar: “Lúcifer! Lúcifer!”. Nada, porém, ocorreu, a não ser um silêncio pavoroso, acompanhado de um “friúme” que “requeimava forte sede” (GSV: 304). E narrou Riobaldo: “O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais” (GSV: 304). O Demo não respondeu, nem apareceu. Comentou Riobaldo: “Mas eu supri que ele tinha me ouvido” (GSV: 304). Ficou, porém, esse mistério.

Aos poucos o “rôr de nada” foi cedendo lugar ao “rorar”, ou seja, ao orvalhar. É a segunda metade do pacto, pontuada pelo amanhecer e pela transfiguração de Riobaldo: “Foi orvalhando. O ermo do lugar ia virando visível, com o esboço no céu, no mermar da d´alva (...). Tudo agora reluzia com clareza, ocupando minhas ideias, e de tantas coisas passadas diversas eu inventava lembrança, de fatos esquecidos em muito remoto, neles eu topava outra razão” (GSV: 305).

Apesar do silêncio, algo ocorreu em Riobaldo depois do “pacto”. Diadorim percebeu a mudança[57], e igualmente os cavalos: “Os cavalos passam a adivinhar que Riobaldo, agora, é homem sobrenatural, conserva o cheiro de quem o diabo farejou...”[58]. Como num rito de iniciação, Riobaldo passa por uma mudança em seu ser, uma “iniciação às avessas”, como forma de “assimilar as potências demoníacas que abrem caminho a todas as ousadias”[59]. É o caminho de ingresso na ordem de uma “ferocidade adequada à vitória”. Uma palavra nova vem utilizada pelo romancista para expressar o momento: “sobrelégio” (GSV: 364), que seria um “sortilégio sobrenatural”[60].

Riobaldo estava agora preparado para atravessar o Liso do Sussuarão e poder alcançar a fazenda de Hermógenes nos confins da Bahia. Mas antes, vai retomar forças na Chapada do Urucuia, aquele lugar “onde tanto boi berra” (GSV: 274)[61]. Ali naquele espaço de tranquilidade e paz é que Riobaldo “recebe os eflúvios da terra e os olhos se enchem de contemplação dos buritis, os ouvidos, com o berro dos bois”[62]. Diante do risco da morte, era a oportunidade que se abria para a despedida da “terra-mãe”.

O guerreiro então atravessa, com seu bando, o Liso do Sussuarão, “fechado ao comum dos homens e docilmente aberto ao seu mando”[63]. Era agora o Urutu Branco, nome consagrado por Zé Bebelo (GSV: 244 e 315), cavalgando Siruiz, um animal de exceção[64]. O guerreiro Urutu Branco chega, enfim, ao local do embate final, onde ocorre a batalha do Tamanduá-tão. Ele não participa diretamente do combate, mas assiste a luta entre Hermógenes e Diadorim da janela de um sobrado, como que imobilizado[65]. Os dois acabam falecendo sangrados por facadas. Exclama Riobaldo: “Diadorim tinha morrido – mil-vezes-mente – para sempre de mim e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejaram” (GSV: 426). Riobaldo estende a mão para tocar pela última vez aquele corpo, surpreso com sua descoberta, e estremece, “retirando as mãos para trás”. Consegue exclamar envolvido pela dor: “Meu amor!...” (GSV: 429). 

Ao comentar esse embate final, Walnice Galvão conclui: 

“Para enfrentar um pactário é preciso outro pactário: o Diabo está com o Hermógenes mas também está com Riobaldo. Na hora do combate, o Diabo está na rua no meio do redemoinho, mas também está ao lado de Riobaldo e dentro dele. Ao cabo, Riobaldo consegue cumprir sua missão de acabar com Hermógenes. Mas o diabo cumpre o prometido com as tramoias que a tradição lhe atribui, ou seja, da maneira mais dolorosa e mais inesperada para aquele que lhe vendeu a alma: Riobaldo acaba com o Hermógenes, mas no mesmo ato Diadorim morre”[66].

O romance, que tinha começado com a expressão “Nonada”, termina com a expressão “Travessia”. E termina mantendo aceso o paradoxo que angustiou toda a epopeia de Tatarana: Existe ou não o Demo? O narrador, ao final, sublinha: “Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano[67]. Travessia” (GSV: 435).

(Publicado no IHU-Online, n. 538, Ano XIX, 05/08/2019, p. 14-22)


            
            



[1]O livro será sempre siglado com GSV.
[2]Guimarães ROSA. Grande sertão: veredas. 22ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
[3]A reconhecida tradução de Curt Meyer-Clason, de 1964. Está em curso uma nova tradução alemã, realizada por Berthold Zilly, para a editora Hansel de Munique.
[4]Realizada por Eduardo Bizzarri (Feltrinelli Editore).
[5]Walnice Nogueira GALVÃO. Guimarães Rosa. São Paulo: Publifolha, 2000, p. 9 (Folha Explica).
[6]Willi BOLLE. Grande sertão.br. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2004, p. 400 e 442.
[7]Günter LORENZ. Diálogo com Guimarães Rosa. In: João Guimarães ROSA. Ficção completa. 2 ed.  Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009, p. CLIV.
[8]Ibidem, p. XLVIII.
[9]Ibidem, p. XLVIII. Em carta a Edoardo Bizarri, seu tradutor italiano, Guimarães Rosa sublinha o seu lado religioso, semelhante ao do personagem Riobaldo. Uma visão de pertencimento a todas as religiões, e uma ênfase na dimensão intuitiva do real: Suzi Frankl SPERBER. Caos e cosmos. Leituras de Guimarães Rosa. São Paulo: Duas Cidades, 1976, p. 144-145.
[10]Esta será a edição de referência para as citações, sempre com a abreviação GSV.
[11]Ibidem, p. XLI.
[12]Antonio CANDIDO. Tese e antítese. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971, p. 139.
[13]É o que também mostrou Willi Bolle em seu livro, entendendo o GSV como “um retrato do Brasil”: Willi BOLLE. Grande sertão.br., p. 23.
[15]Kathrin Holzermayr ROSENFIELD. Grande sertão: veredas. Roteiro de leitura. São Paulo: Ática, 1992, p. 18.
[16]Fernando SABINO. Cartas. In: Guimarães ROSA. Grande sertão: veredas. 22ª ed., p. 439.
[17]Clarice LISPECTOR. Cartas. In: Guimarães ROSA. Grande sertão: veredas. 22ª ed., p. 440.
[18]Antonio CANDIDO. Tese e antítese, p. 134-135.
[19]M. Cavalcante PROENÇA. Trilhas no grande sertão. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1958.
[20]Ibidem, p. 6.
[21]Willi BOLLE. Grande sertão.br, p. 62-63.
[22]Antonio CANDIDO. Tese e antítese, p. 124-125.
[23]Eduardo F. COUTINHO. Em busca da terceira margem: ensaios sobre o grande sertão: veredas. Bahia: Fundação Casa de Jorge Amado, 1993, p. 25; Benedito NUNES. A Rosa o que é de Rosa. Literatura e filosofia em Guimarães Rosa. São Paulo: Difel, 2013, p. 304-305.
[24]Antonio CANDIDO. Tese e antítese, p. 123.
[25]Benedito NUNES.  A Rosa o que é de Rosa, p. 250.
[26]Ibidem, p. 122; e ainda: Eduardo F. COUTINHO. Em busca da terceira margem, p. 16.
[27]M. Cavalcante PROENÇA. Trilhas no grande sertão, p. 30s. Sobre o rio e as águas (p. 32-36); sobre os ventos (48-53); sobre os buritis (54-56); sobre o Mar (65-68); bem como a profusão de plantas e bichos: Benedito NUNES. A rosa o que é de rosa. Literatura e filosofia em Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Difel, 2013, p. 291s.
[28]Antonio CANDIDO. O homem dos avessos. In: João Guimarães ROSA. Ficção Completa.2 ed.Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009, p. CLVI.
[29]Sônia VIEGAS. Escritos. Filosofia viva. Belo Horizonte: Tessitura, 2009, p. 379-380.
[30]Willi BOLLE. Fórmula e fábula. São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 21.
[31]José Carlos GARBUGLIO. O mundo movente de Guimarães Rosa. São Paulo: Ática, 1972, p. 88.
[32]Ibidem, p. 134.
[33]Eduardo F. COUTINHO. Em busca da terceira margem, p. 24.
[34]Alan VIGGIANO. Itinerário de Riobaldo Tatarana. Geografia e toponímia em Grande Sertão: Veredas. Belo Horizonte: Crisálida, 2007. 
[35]Ibidem, p. 21.
[36]Ibidem, p. 13.
[37]Antonio CANDIDO. O homem dos avessos, p. CLIII.
[38]Ibidem, p. CLI.
[39]Walnice Nogueira GALVÃO. Guimarães Rosa, p. 32.
[40]Uma experiência que vai sinalizar uma relação de dependência de Riobaldo com respeito a Diadorim (Reinaldo): Walnica Nogueira GALVÃO. As formas do falso. 2 ed.São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 94.
[41]Walnice Nogueira GALVÃO. Guimarães Rosa, p. 48; Id. As formas do falso, p. 100.
[42]Kathrin H. ROSENFIELD. Os descaminhos do demo. Tradição e ruptura em Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro/São Paulo: Imago/Edusp, 1993, p. 19-20.
[43]Walnice Nogueira GALVÃO. O certo no incerto: o pactário. In: João Guimarães ROSA. Grande sertão: veredas. 22ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 454.
[44]Antonio CANDIDO. Tese e antítese, p. 136.
[45]Kathrin H. ROSENFIELD. Os descaminhos do demo, p. 104.
[46]E também: GSV: 48. Ver ainda: Francis UTÉZA. A metafísica do grande sertão. 2 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2016, p. 50.
[47]M. Cavalcante PROENÇA. Trilhas no grande sertão, p. 66.
[48]Walnice Nogueira GALVÃO. O certo no incerto, p. CCXIII; Id. As formas do falso, p. 130.
[49]Trata-se de Hermógenes e Ricardão. Veja GSV: 89.
[50]José Carlos GARBUGLIO. O mundo movente de Guimarães Rosa, p. 72.
[51]Márcia Marques de MORAES. A travessia dos fantasmas.  Literatura e psicanálise em Grande Sertão: Veredas. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 34; Manuel Cavalcanti PROENÇA. Dom Riobaldo do Urucuia, cavaleiro dos campos gerais. In: João Guimarães ROSA. Ficção completa, p. CLXVII-CLXVIII.
[52]Kathrin H. ROSENFIELD. Os descaminhos do demo, p. 96.
[53]Ibidem, p. 97.
[54]Ibidem, p. 95.
[55]Willi BOLLE. Grande sertão.br, p. 206.
[56]Antonio CANDIDO. O homem dos avessos, p. CLIII.
[57]Antonio CANDIDO. Tese e antítese, p. 133.
[58]Manuel Cavalcanti PROENÇA. Dom Riobaldo do Urucuia, p. CLXV.
[59]Antonio CANDIDO. Tese e antítese, p. 132; Kathrin H. ROSENFIELD. Grande sertão: veredas, p. 65. Ela fala “ponto culminante do despojamento progressivo do sujeito dos seus atributos”.
[60]Antonio CANDIDO. Tese e antítese, p. 136.
[61]Sobre a presenças dos bois em GSV ver: Walnice Nogueira GALVÃO. As formas do falso, p. 27; Benedito NUNES. A Rosa o que é de Rosa, p. 257 e 282
[62]M. Cavalcante PROENÇA. Trilhas no grande sertão, p. 24.
[63]Antonio CANDIDO. Tese e antítese, p. 136.
[64]Ibidem, p. 133.
[65]M. Cavalcante PROENÇA. Trilhas no grande sertão, p. 40.
[66]Walnice Nogueira GALVÃO. O certo no incerto, p. CCXV.
[67]Ver a respeito: Eduardo F. COUTINHO. Grande sertão: veredas. Travessias. São Paulo: Realizações Editora, 2013, p. 98.