Diálogo entre as religiões e Igrejas em favor da vida e da justiça
Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF
Introdução
Gostaria de começar a minha reflexão sobre esse desafio dialogal para as CEBs recordando uma brilhante colocação feita por Leonardo Boff durante o VII Intereclesial de CEBs, realizado na cidade de Duque de Caxias, em 1989. As questões ali levantadas permanecem muito atuais. Nada mais problemático do que uma descendência sem memória. Daí a necessidade de retomarmos continuamente o fio histórico dos acontecimentos para poder seguir em frente com tranquilidade e profecia. Em sua reflexão de síntese do terceiro dia do Intereclesial, Leonardo Boff apontou alguns elementos essenciais que compõem a eclesialidade das CEBs. Sublinhou que as CEBs são portadoras do “sonho de Jesus, da política de Deus no mundo e na história que é o Reino de Deus”[1]. Não só as CEBs levam consigo essa herança, mas as Igrejas todas, na medida em que são provocadas a não deixar apagar esse belo sonho na história. As CEBs, enquanto Igreja peregrina, estão em processo na história, nascendo sempre de novo (eclesiogênese) e como as outras formas de ser Igreja, são simples instrumentos e sinais do Reino:
No fim, quando Deus reunir tudo, não haverá mais Igrejas, haverá Reino da Trindade. E a Igreja serviu na história como grande instrumento, não único. Instrumento da política de Deus na história, para a instauração de seu Reino, que acontece sempre lá onde as pessoas se encontram, têm bem querença entre elas, constroem a justiça, se perdoam mutuamente, têm experiência do amor, se abrem para o mistério de Deus[2].
O Reino de Deus envolve uma universalidade que é acolhedora. Ele não se restringe aos confins das Igrejas cristãs, mas está presente em toda a história, “onde quer que Deus esteja reinando mediante sua graça, seu amor, vencendo o pecado e ajudando os homens a crescer”[3]. Em razão dessa universalidade do Reino, os cristãos e os “outros” participam de um mesmo mistério de salvação, que desvela caminhos que são conhecidos por Deus. A chamada de Deus vem respondida de forma diversificada e não única. Também os membros das outras religiões são envolvidos pelo mistério da acolhida de Deus “através da prática daquilo que é bom nas suas próprias tradições religiosas, e seguindo os ditames da sua consciência”[4].
As CEBs, em sua dinâmica dialogal, vêm reconhecendo e destacando o misterioso laço que une seus membros com os participantes de outras Igrejas e tradições religiosas. Todos são membros ativos do Reino de Deus pela força e ação do Espírito.
- O pluralismo religioso: uma difícil e exigente aposta
As CEBs são hoje provocadas cada vez mais a reconhecerem o pluralismo religioso, não apenas como uma realidade de fato, mas como uma expressão viva e positiva de “todas as riquezas da sabedoria infinita e multiforme de Deus”[5]. Essa não é uma tarefa simples. Exige ousadia, amplitude de olhar e uma nova perspectiva inter-religiosa dialogal.
O fato do pluralismo religioso é hoje um dado incontestado e a tendência do nosso tempo vai na linha de ampliação desse quadro. Segundo os dados fornecidos em 2008 pelo Anuário Pontifício o número de muçulmanos ultrapassou pela primeira vez na história o número de católicos. Agora somam cerca de 19,2% da população mundial, enquanto os católicos perfazem 17,4%. Tendo como base o ano de 2006, a população católica mundial vem estimada em torno de 1 bilhão e 136 milhões, com maior concentração no continente americano (49,8%). Quanto ao número de muçulmamos, os dados fornecidos pelo World Christian Database, em 2007, apontam o número aproximado de 1 bilhão e 322 milhões.[6] Há também que considerar a significativa presença do hinduísmo em âmbito mundial, com cerca de 900 milhões de adeptos e do budismo, com cerca de 360 milhões de praticantes. Pode-se ainda registrar o número daqueles que se apresentam como sem religião (agnósticos, ateus, ou que se agregam a formas seculars de afirmação de sentido), estimados em torno de 15% da população mundial[7]. Na América Latina, e no Brasil em particular, deve-se apontar o fenômeno do crescimento pentecostal. Com base no Censo do IBGE-2000, os pentecostais são os principais responsáveis pelo significativo número do aumento do bloco evangélico nos últimos 30 anos no Brasil (6,6% em 1980; 9,0% em 1991 e 15,4% em 2000). Os pentecostais sozinhos somam 10,43% do número absoluto da declaração de crença, ou seja, 17.689.862 pessoas.
A realidade do pluralismo religioso nem sempre é acolhida positivamente, e isto tem uma explicação sociológica. Na verdade, este pluralismo, como expressão da modernidade, tende a “solapar as certezas com as quais as pessoas conviveram ao longo da história”[8]. E nada mais duro para as pessoas do que habituar-se com as incertezas. São poucos aqueles que conseguem conviver harmonicamente com o pluralismo. A grande maioria sente-se insegura num mundo “cheio de possibilidades” e aberto a novas interpretações. Daí a atração exercida pelos movimentos que prometem assegurar ou renovar as certezas nesse tempo de “crise” dos conhecimentos auto-evidentes.
Na conjuntura atual da Igreja católica romana (ICAR) percebe-se nitidamente um movimento no sentido da afirmação da identidade. Junto com ele, o firme propósito de questionar o pluralismo religioso de direito, ou seja, o reconhecimento do valor da diversidade religiosa. Como bem sublinhou o sociólogo Peter Berger, “os projetos restauradores de reconstituição de um ´mundo curado` incluem quase sempre a supressão ou, ao menos, a limitação do pluralismo – e com boas razões: o pluralismo coloca sempre alternativas diante dos olhos (…)”[9].
Essa tônica restauradora da ICAR pode ser observada em dois documentos elaborados nos últimos anos pela Congregação para a Doutrina da Fé (CdF). Na Declaração Dominus Iesus, de agosto de 2000[10], questiona-se o pluralismo religioso de princípio que estaria sendo propalado, na ótica do documento, por “teorias de índole relativista” responsáveis pelo abafamento do “perene anúncio missionário da Igreja” (n. 4). Como linha mestra da Declaração insere-se o empenho em favor do anúncio missionário da Igreja: de “anunciar a todos os homens a verdade” e “proclamar a necessidade de conversão a Jesus Cristo e da adesão à Igreja através do Batismo e dos outros sacramentos (…)” (n. 22).
O outro documento da CdF, publicado em dezembro de 2007, aborda o tema da evangelização[11]. Retoma-se a questão da Igreja e seu “dever de evangelizar”. Como reação ao que se denomina de relativismo contemporâneo e pluralismo indefinido, firma-se o imperativo de uma ação evangelizadora clara e contundente. Mesmo reconhecendo o documento que os não-cristão podem-se salvar mediante a ação da graça, a eles estaria faltando “um grandíssimo bem neste mundo: conhecer o verdadeiro rosto de Deus e a amizade com Jesus Cristo”, bem como o “ingresso na sua Igreja”. Tais adesões é que favoreceriam o pleno “cumprimento” da liberdade humana (n. 7). Com respeito às implicações eclesiológicas, o documento indica que a incorporação de novos membros à Igreja sinaliza “o ingresso na rede de amizade com Cristo”. Questiona-se a noção de Reino de Deus como “uma realidade genérica que domina todas as experiências ou as tradições religiosas, e às quais deveriam tender como que a uma universal e indistinta comunhão todos aqueles que procuram Deus”. Enfatiza-se, ao contrário, que o Reino “é antes de tudo uma pessoa, que tem o rosto e o nome de Jesus de Nazaré, imagem do Deus invisível”, e que “qualquer apelo do coração humano para Deus e o seu Reino só pode conduzir, pela sua natureza, a Cristo e ser orientado à entrada na sua Igreja, que daquele Reino é sinal eficaz” (n. 9). Retoma-se, em seguida, a preocupação com as teorias que defendem o pluralismo religioso de princípio, que estariam enfraquecendo “a razão de ser da evangelização” (n. 10).
É nessa complexa e restritiva conjuntura eclesiástica que as CEBs estão hoje inseridas, tendo que responder de forma criativa e inovadora aos desafios do tempo e ao imperativo dialogal.
- CEBs: uma história de sensibilização para o diálogo
A ecumenicidade e a sensibilidade diálogal são traços que acompanham a caminhada das CEBs desde os seus primórdios. A partir, porém, da segunda metade da década de 80 essas dimensões serão reafirmadas de forma muito singular. Vale sublinhar a importância assumida pela questão ecumênica a partir do VI Intereclesial, ocorrido em julho de 1986 na cidade de Trindade (GO). Estava em curso um ecumenismo original, novidadeiro, nascido do serviço comum à missão libertadora. O passo seguinte foi no sentido do aprofundamento da abertura inter-religiosa, como aconteceu no VII Intereclesial de Duque de Caxias (1989). No depoimento de Leonardo Boff, durante esse Intereclesial, ele antecipou desafios bem precisos com respeito à abertura à religiosidade indígena e afro. Falou sobre a gestação de um novo rosto de Deus revelado pelas nações indígenas e pelas irmãs e irmãos negros; de um rosto que não pode ser destruído, mas respeitado e afirmado com vigor, para que seja preservado o nome de Deus. Mas intuía em seu depoimento problemas que viriam em seguida. A seu ver, o rosto de Deus que emergia dos irmãos negros era “luminoso demais para os nossos olhos” e causava temor.
No VIII Encontro Intereclesial de Santa Maria (RS), realizado em setembro de 1992, a questão inter-religiosa ganha uma intensidade nova, mas dramática. O desafio mais decisivo veio do bloco dos negros, no desdobramentos das discussões sobre a inculturação. A presença da questão afro-brasileira evidenciou a necessidade de se ampliar a discussão ecumênica nas CEBs. O tema do “macro-ecumenismo” firmava-se nas discussões e na dinâmica do Encontro. Dos negros vinha a reinvindicação em favor de um lugar específico na afirmação de um rosto novo de Igreja. Um episódio particular, ocorrido no Intereclesial causou desconforto e perplexidade entre os participantes. No momento da apresentação ao grande público dos bispos, pastores e pastoras presentes, julgou-se improcedente convidar o pajé e os babalorixás presentes para subirem ao palco como “ministros” de suas religiões. Essa situação provocou uma manifestação inusitada de protesto, suscitando interpretações diversificadas.
O clima de harmonia vem recuperado no Intereclesial seguinte, realizado em São Luis do Maranhão, em julho de 1997. Na celebração de abertura estavam reunidos representantes de diversas tradições religiosas, em atmosfera de grande hospitalidade inter-religiosa. Na carta final do evento, esse clima de união veio acentuado: “Todos orando juntos, fraternalmente, como o Pai sempre os quis”[12]. A questão ecumênica e inter-religiosa apareceu viva nos três blocos de discussão do evento: no bloco das religiões afro-brasileiras, dos povos indígenas e dos pentecostais. O IX Intereclesial colocou em evidência um tema que vai sendo assumido com cada vez mais importância na trajetória das CEBs: a questão da inculturação libertadora, da construção de um projeto de Igreja ecumênico, aberto às diferenças e ao diálogo num mundo plural. Nos dois Intereclesiais seguintes, de Ilhéus (Bahia – 2000) e Ipatinga (MG – 2005), a sensibilidade ecumênica e inter-religiosa firma-se com mais tranquilidade, expressando uma acolhida mais serena entre os participantes.
- O desafio de ser comunidade no tempo atual
Num de seus trabalhos sobre a temática da modernidade, o sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, trata a delicada questão da comunidade e a busca de segurança no tempo presente. A comunidade é expressão de “um lugar ´cálido`, um lugar confortável e aconchegante. É como um teto sob qual nos abrigamos da chuva pesada, como uma lareira diante da qual esquentamos as mãos num dia gelado. Lá fora, na rua, toda sorte de perigo está à espreita”[13]. A comunidade fornece segurança e confiança, valores cada vez mais carentes no mundo que habitamos. Há uma canção muito popular nas CEBs que expressa esse sentimento: “Eu sou feliz é na comunidade. Na comunidade eu sou feliz”. O desafio que hoje se coloca é também de êxodo para o mundo dos “estranhos”, do que é imprevisível , de forma a poder captar o “sussurro” do plural. Há que reforçar novos laços para a comunidade: de compartilhamento, cuidado e hospitalidade; de compromisso com o mundo “lá fora”. Em texto provocador do teólogo belga, Adolphe Gesché, ele propõe uma “indispensável paganidade”, contra o risco de entrincheiramento incestuoso nas próprias referências identitárias. A paganidade evoca interrogação, distância e abertura. Para Gesché, “a fé cristã tem necessidade de ´ausência cristã` diante dela, isto é, dessa paganidade (alteridade externa), e até, de certa maneira, de ausência cristã nela (alteridade interna), diria mesmo de uma pitada de ateísmo (…)”[14]. De forma ousada, mas sábia, conclui dizendo da necessidade de um “sensus infidelium” para a vitalidade da fé cristã. Trata-se de uma condição saudável de abertura para se captar virtualidades inéditas do ser humano que escapam da visada do Evangelho e da Tradição.
O desafio da abertura ao mistério irrevogável do outro está incrustrado tanto no diálogo ecumênico como inter-religioso. Não há retorno possível nesta viagem comum cujo rumo só Deus conhece. O cardeal Walter Kaspers, num dos textos mais inspiradores sobre a situação e o futuro do ecumenismo, dizia que toda Igreja que se busca levar a sério deveria assumir sua condição de “fragilidade”, de limite, de forma a poder considerar, de fato, as outras Igrejas, respeitando-as em sua alteridade. Há que reconhecer, diz Kaspers, que “vários aspectos do ser Igreja encontram-se melhor realizados nas outras Igrejas”. Daí ser o ecumenismo não uma via de mão única, mas um “intercâmbio de dons”. O fim da atividade ecumênica não consiste em anexar outras Igrejas, mas realizar a plena comunhão e unidade, e isto não significa levar a uma Igreja única, mas à celebração da unidade na diversidade[15]. Por ocasião do X Intereclesial de CEBs, realizado em julho de 2000 na cidade de Ilhéus (BA), os evangélicos presentes no evento lançaram uma carta onde mencionam o desafio em aberto do ecumenismo para as CEBs. Sublinham que a convivência com as CEBs proporcionou uma compreensão do ecumenismo em três sentidos particulares: o ecumenismo como uma conversão do coração, que se abre para acolher a diferença; o ecumenismo como instauração de novas relações entre as pessoas, como espaço de uma nova convivência e de renovação do coração e da mente; e ecumenismo como a ´coragem de assumir ações em conjunto, em defesa da vida´”[16].
Algo semelhante ocorre com o diálogo inter-religioso. Por seu intermédio, os cristãos têm possibilidade de descobrir em maior profundidade aspectos e dimensões do mistério divino que escapam da percepção favorecida na comunidade cristã. Nesse sentido, o diálogo inter-religioso não provoca um enfraquecimento da fé, mas antes o seu aprofundamento, na medida em que possibilita a abertura para novas e inusitadas dimensões de seu mistério[17]. Dizer que o diálogo é “apenas uma das ações da Igreja” (DI 22) é reduzir o seu alcance e significado. O Díalogo tem “o seu próprio valor” (DA 41) e seu objetivo precípuo é favorecer “uma conversão mais profunda de todos para Deus” (DA 41).
Um grande precursor do diálogo inter-religioso no Brasil, o padre François de l´Espinay, em texto de 1987, falava da dificuldade de abertura dos católicos para outras tradições religiosas. A seu ver, havia entre eles um “complexo de totalidade” que impedia ampliar o olhar para perceber a dimensão mais rica do mistério e de sua verdade. É como se nada mais faltasse aos católicos, e Deus já tivesse dito tudo a eles. Lançava na ocasião um desafio que permanece atual, também para as CEBs:
Bastaria sair de nossos limites fundados no exclusivismo, na certeza de possuir a única verdade, e admitir que Deus não se contradiz, que ele fala sob formas mui diferentes que se complementam uma à outra, e que cada religião possui um depósito sagrado: a Palavra que Deus lhe disse. Eis toda a riqueza do ecumenismo que não deve restringir-se ao diálogo entre cristãos[18].
- Jesus e seu projeto dialogal
Todos aqueles que entram em contato com o testemunho e práxis de Jesus, mediante os escritos neo-testamentários, sabem muito bem que o núcleo de sua pregação não foi ele mesmo, mas o Reino de Deus. Na verdade, Jesus foi teocêntrico e não cristocêntrico. Toda a sua vida e ação foram sempre marcadas pela referência ao Mistério maior, ao qual orienta e envia seus discípulos e ouvintes. E curiosamente esse Jesus teocêntrico apresenta ao mundo um Deus antropocêntrico: um “Deus propício à humanidade, como criador, e, portanto, intrinsecamente interessado e preocupado com o bem-estar de suas criaturas”[19].
Essa dimensão de alteridade está no âmago da vocação de Jesus. E podemos verificar com muita clareza que à medida em que nos aprofundamos em sua vida e missão, somos convocados ao irremediável exercício de êxodo e compromisso com os outros, sobretudo os mais frágeis e excluídos. O critério básico que rege a conduta de Jesus é o do amor para com o próximo, que sinaliza a dinâmica de sintonia com o Reino de Deus, enquanto reino de afirmação da vida. O seu projeto de “vida em abundância” (Jo 10,10) passa por veredas inusitadas e nem sempre reconhecidas: de acolhida aos pecadores e samaritanos (Jo 4,7-42; Lc 17-11.16; 9,51-55) e admissão de seu exemplo (Lc 10,29-37). Jesus surpreende-se com a fé dos estrangeiros: do oficial romano que provoca a admiração de Jesus (Mt, 8,10); da mulher pagã siro-fenícia, admitida a partilhar do banquete salvífico (Mc 7,24-30); do desconhecido que expulsa demônios em seu nome, mesmo não pertencendo à sua comunidade (Mc 9,38-40). A chave de acesso ao Reino está na solidariedade e compromisso com os necessitados, independentemente da religião professada (Mt 25,31-46). Com seu amor aos marginalizados, Jesus manifesta que o seu Reino está presente e ativo para além dos limites do povo escolhido de Israel e anuncia que os “gentios” entrarão no Reino de Deus (Mt 8,10-11; 11,20-24; 25,34). Se passamos os olhos nos Atos dos Apóstolos podemos reconhecer a riqueza de personagens como Cornélio, que em sua oração revela para Pedro a bem-querença de um Deus que rompe as barreiras entre o sagrado e o profano. O discurso de Pedro é propiciador de uma sensibilidade nova: “Verifico que Deus não faz acepção de pessoas, mas que, em qualquer nação, quem o teme e pratica a justiça, lhe é agradável” (At 10, 34-35). Significativo também o relato joanino sobre a cura de um cego de nascença. O cego que recupera sua visão pela intervenção amorosa de Jesus, sublinha que todo aquele que “é temente a Deus e faz a sua vontade, a esse Deus escuta” (Jo 9,31).
Por ocasião do IX Intereclesial de São Luis, frei Carlos Mesters colabora para texto-base com uma rica reflexão sobre Jesus e o povo. Ao final do texto, como conclusão, lança uma parabola onde relata a entrada e acolhida de Jesus num terreiro de candomblé. A parábola suscitou muito debate e reação negativa por parte de alguns setores e movimentos da ICAR. Na singela parábola, Jesus vem recebido e abraçado pelo povo que entrava no terreiro. Jesus fica admirado ao ver o pessoal dançando alegre e se abraçando com carinho. Também se surpreende como todos o conheciam como se fosse amigo de longa data. Ao perguntar à mãe-de-santo sobre esse fato ela responde: “Jesus, aqui todo mundo conhece você. Você é muito amigo da gente. Sinta-se em casa, aqui, no meio de nós”. Jesus partilha sua alegria e sinaliza para ela que o Reino já acontecia ali. Ela agradece a deferência, olha para ele e diz: “Mas isto a gente já sabia. Ou melhor, já advinhava! Obrigado por confirmar a gente. Você deve ter um orixá muito bom. Vamos dançar para que ele venha nos ajudar”[20].
A parábola de Jesus entrando num terreiro não deve causar estranheza para aqueles que sabem muito bem dos conflitos e tensões provocados pela relação de Jesus com os samaritanos, e em especial com a mulher samaritana. Era vivo o preconceito dos judeus para com os samaritanos, tendo sido postos, “do ponto de vista cultural e ritual, em pé de igualdade com os pagãos”[21]. Foi com esses samaritanos “desprezíveis e pervertidos” que Jesus praticou sua ternura e amor acolhedores. E escolheu justamente uma mulher da samaria para revelar sua condição de messias (Jo 4,25-26). Na verdade, o que moveu Jesus em sua ação missionária não foi primeiramente o anúncio doutrinal, mas o testemunho vivo de uma nova maneira de viver e acolher o outro. Em artigo posterior, Carlos Mesters justificou a redação de sua parábola como tradução de um estilo peculiar da vida de Jesus na relação com seu povo: “Por tudo isso, imaginei Jesus visitando um terreiro, pois era isto que ele fazia andando pela Galiléia. Vendo as coisas boas do povo, ele agradecia e louvava o Pai (Mt 11,25-26)”[22].
Conclusão
Enquanto portadoras do “sonho de Jesus”, as CEBs são provocadas a assumirem uma responsabilidade global na luta contra o sofrimento humano e em defesa da terra e da vida em sua diversidade. São também convocadas ao exercício efetivo de acolhida da alteridade, de respeito às singularidades e de solidariedade inter-religiosa. A tarefa essencial das CEBs não vai na linha de suscitar novas conversões religiosas, mas de testemunhar publicamente “a missão de Deus manifestada em Jesus”, uma missão que é universal,
pois o Reino de Deus revelado no ministério de Jesus é relevante em toda parte, para todas as pessoas, em qualquer situação. Que Deus é pessoal, amoroso, Salvador; que Deus é o criador da vida humana e o garantidor da liberdade e dignidade humana; que Deus condena toda opressão e é contra o sofrimento humano; que entra em diálogo com a existência humana e vai atrair toda a realidade de volta para dentro da esfera de sua própria vida – tudo isso é potencilmente significativo para qualquer ser humano[23].
(Publicado em: Valdecir Luiz Cordeiro (Org.) Do ventre da terra o grito que vem da Amazônia. São Paulo: Paulus, 2008, pp. 131-142)
[1] Leonardo BOFF. Eclesialidade das CEBs. Revista da Arquidiocese, v.32, ns 7/8/9, 1989, p. 357 (Arquidiocese de Goiânia).
[2] Ibidem, p. 365.
[3] Documento de Puebla. Petrópolis: Vozes, 1979, n. 226.
[4] Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso. Diálogo e anúncio. Petrópolis: Vozes, 1991, n. 29 (no texto será citado como DA).
[5] Secretariado para os Não-cristãos. A igreja e as outras religiões. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 2002, n. 41 (Documento Diálogo e Missão).
[6] Cf. IHU Online, de 30/03/2008:
http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=12877 (acesso em 02/04/2008)
[7] Arnaldo NESTI. Per una mappa delle religioni mondiali. Firenze: Polistampa, 2005, pp. 62-63.
[8] Peter BERGER. A dessecularização do mundo: uma visão global. Religião e Sociedade, v. 21, n. 1, 2001, p. 17.
[9] Peter BERGER & Thomas LUCKMANN. Modernidade, pluralismo e crise de sentido. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 58.
[10] Congregação para a Doutrina da Fé. Declaração Dominus Iesus. São Paulo: Paulinas, 2000 (no texto será citada como DI)
[11] Congregação para a Doutrina da Fé. Nota doutrinal sobre alguns aspectos da evangelização:
http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20071203_nota-evangelizzazione_po.html (acesso em 02/04/2008).
[12] Carta de SãoLuis. IX Encontro Intereclesial. CEBs: vida e esperança nas massas. Conjuntura social e documentação eclesial. Encarte do Boletim da CNBB – 24/07/1997, p. 1.
[13] Zigmunt BAUMAN. Comunidade. A busca de seguraça no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 7.
[14] Adolphe GESCHÉ. O sentido. São Paulo: Paulinas, 2005, p. 135.
[15] Walter KASPERS. L´unica Chiesa de Cristo. Situazione e futuro dell´ecumenismo. Il Regno-Attualità 4/2001, pp. 128-133 (aqui, pp. 129-130).
[16] Carta ao povo das CEBs dos membros das Igrejas não católicas romanas participantes do X Intereclesial. Ilhéus, 2000, mimeo.
[17] Diálogo e Anúncio, n. 50
[18] François de L´ESPINAY. A religião dos Orixás – outra Palavra do Deus único? REB, v. 47, n. 187, 1987, p. 649.
[19] Roger HAIGHT. Jesus, símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 145.
[20] Carlos MESTERS. Jesus e o povo. In: IX Encontro Intereclesial. CEBs: vida e esperança nas massas. São Paulo: Salesiana Dom Bosco, 1996, pp. 128-129 (Texto-Base).
[21] Joaquim JEREMIAS. Jerusalém no tempo de Jesus. 2 ed. São Paulo: Paulinas, 1986, pp. 468-469.
[22] Carlos MESTERS. Jesus e a cultura de seu povo. Estudos Bíblicos, n. 61, 1999, pp. 13-22.
[23] Roger HAIGHT. O futuro da cristologia. São Paulo: Paulinas, 2008, p. 125.
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