sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

O cuidado espiritual no trabalho em saúde

O cuidado espiritual no trabalho em saúde

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

Resumo: A temática do cuidado ganha hoje espaço na prática do trabalho em saúde e nas reflexões a ele associado. É um tema urgente e novidadeiro, que envolve uma série de desdobramentos, incluindo as questões da espiritualidade e do cuidado a ser desenvolvido também com os cuidadores. Trata-se do desafio do despertar para uma dimensão muitas vezes esquecida, que habita o mundo interior e é a raiz que nutre as práticas de solidariedade, cooperação e compaixão.

Palavras Chave: Cuidado, Espiritualidade; Saúde; Vida

Introdução

            É motivo de grande alegria poder retornar nesse XIV Encontro de Atualização em Atenção Primária à Saúde (APS), dedicado a um tema tão rico como o da educação permanente e cuidado em saúde (outubro-novembro de 2013). Tinha participado como conferencista em outro evento do NATES, falando sobre o projeto ético como afirmação de saúde. O tema da fala veio publicado em artigo da Revista de APS (TEIXEIRA, 2001). Nesse trabalho tratava da questão do cuidado como um modo essencial de viver o humano, nas suas várias concretizações: cuidado com o planeta, cuidado com os outros, cuidado com o corpo e o cuidado com a totalidade do ser humano, e em particular com a sua dimensão espiritual. Como referencial bibliográfico, o livro de Leonardo Boff – Saber cuidar -, lançado em 1999. Nesta obra, o autor recorria ao pensador Martin Heidegger para assinalar a importância do cuidado, visto não como uma atitude entre outras, mas como algo que se encontra na “raiz primeira do ser humano”, enquanto “dimensão fontal, originária, ontológica” (BOFF, 1999, p. 34). Para Heidegger, o cuidado ( Sorge – preocupação) diz respeito à “totalidade-estrutural-originária, reside existencialmente a priori ´antes` , isto é, já sempre em cada ´comportamento` factual e ´situação` do Dasein” (HEIDEGGER, 2012, p. 541; HEIDEGGER, 2009, p. 154 e 227).

            Fico hoje impressionado com essa demanda pelo cuidado e pela espiritualidade como um todo. São preocupações que cresceram muito nestas últimas décadas. Curiosamente, esse meu texto sobre o cuidado, de 2001, é um dos mais acessados de meu blog, com quase 2000 acessos desde abril de 2010 (http://fteixeira-dialogos.blogspot.com.br). Esse tema retoma hoje com grande impacto e interesse. Como assinala uma orientanda minha, que vem trabalhando com singularidade o tema da espiritualidade do cuidado na relação materno-infantil, Carolina Duarte: “O cuidado não é novo, muito menos sua necessidade. Muito já se falou ou escreveu sobre isso. O que há de novo é a consciência de que somos um elo de uma corrente. Somos um ponto de uma teia. O que é novo é a consciência de que se não houver teia, não há ponto”.

            Para esse breve artigo, o tema de minha reflexão concentra-se sobre algo que vem me ocupando nesses últimos anos, ou seja, o cuidado com o cuidador. O foco de atenção volta-se para a espiritualidade que se requer do cuidador nesses tempos pontuados pelo recuo de valores tão essenciais e milenares no âmbito da convivência humana em favor de “valores” originados na racionalidade do mercado, tais como a competição, a produtividade, o sucesso, o individualismo, o lucro, a vantagem e o consumismo. Como bem lembrou a pesquisadora Madel Luz, o cuidado torna-se agora “crucial para todos os indivíduos”, mas não só o autocuidado, mas também os cuidados em âmbito da saúde:

“A generalidade e o distanciamento abstrato com que são tratados os pacientes da biomedicina, em função da centralidade da doença no paradigma da medicina científica, criou uma barreira cultural para muitos indivíduos e grupos sociais, que demandam ser efetivamente tratados, e não apenas diagnosticados” (LUZ, 2003, p. 62-63).

                  Essa atenção ao cuidado vem resgatar de forma rica a compreensão de saúde como “expansão de vitalidade”, trazendo novamente à tona valores essenciais que se encontram à margem, como delicadeza, cooperação, cordialidade e solidariedade.

A espiritualidade do cuidador

            São diversas as razões que motivam esse interesse pelo tema da espiritualidade do cuidador. O trabalho cotidiano nesse âmbito da atenção básica à saúde, e em particular no programa de saúde da família, tem trazido à tona uma série de problemas, dentre os mais graves,

“a pouca eficácia das ações de saúde restritas às intervenções técnicas sobre as partes do corpo acometidas com alterações anatomo-patológicas ou das iniciativas de educação em saúde centradas na mudança de hábitos por meio de conselhos para comportamento definidos como de risco pela epidemiologia” (VASCONCELOS, 2011, p. 57).

                  A questão se complexifica ainda mais quando percebemos que os principais problemas (ou males) que afetam hoje a população brasileira são de caráter existencial: nascidos das relações humanas ou suscitados por experiências dolorosas que provocam uma crise de plausibilidade no seu mundo: divórcio, separação, conflito familiar, solidão, violência, desemprego etc. Como aponta com acerto Madel Luz, uma considerável parte “dos atendimentos em ambulatórios da rede pública das metrópoles brasileiras – acredito mesmo que de todo o mundo contemporâneo – estimada às vezes em cerca de 80%, seja motivada por queixas relativas ao que se poderia ser designado como síndrome do isolamento e pobreza” ( LUZ, 2001, p. 32). É a totalidade da existência que se vê comprometida quando o sujeito experimenta essa diminuição de sua temperatura vital, explicitada nas situações de sofrimento: seja com relação a si mesmo ou na dinâmica de sua relação com os outros. Tudo isso pode suscitar um comprometimento de seu sentido global da vida. Estar saudável, nesse sentido, é poder recuperar a alegria, a disposição para a vida, o prazer das coisas cotidianas e a convivialidade com os outros.

            A saúde é um estado de equilíbrio, um ritmo de vida, um processo contínuo no qual a harmonia vai se firmando dinamicamente. É um laço de articulação entre respiração, metabolismo e sono, fenômenos rítmicos que configuram vitalidade, revigoramento e aquisição de energia. A doença, ao contrário, provoca dano à totalidade da existência. Como indica L.Boff,

“não é o joelho que dói. Sou eu, em minha totalidade existencial, que sofro. Portanto, não é uma parte que está doente, mas é a vida que adoece em suas várias dimensões: em relação a si mesmo (experimenta os limites da vida mortal), em relação com a sociedade (se isola, deixa de trabalhar e tem que se tratar num centro de saúde), em relação com o sentido global da vida (crise na confiança fundamental da vida que se pergunta por que exatamente eu fiquei doente?)” (BOFF, 1999, p. 143).

No sofrimento verificamos a “epifania da vulnerabilidade” (ROSELLÓ, 2009, p. 88). É o momento de nudez por excelência, onde não se tem “refúgio”, quando então o sujeito se vê diante de sua fragmentação, exposto ao traço inarredável de sua finitude. O ser humano é temporalidade, e faz parte de seu percurso a dinâmica entrópica e o dissipar-se. E esse ser-no-tempo

“corrói todos os esforços humanos de realização e plenitude ontológicas: a beleza, os gestos de fervor, os impulsos do coração, os momentos de êxtase e comunhão, tudo isso que é nosso ´flutua e desaparece`. O próprio esforço de pensar e compreender não basta para nos subtrair a essa inquietante fluidez, isto é, não há salvação possível pelo conhecimento” (SILVA, 2013, p. 98-99)

O  que é do humano, sinaliza Rilke, “flutua e desaparece”. As árvores e as casas que habitamos, diz o poeta, resistem, mas “nós passamos” (RILKE, 2013, p. 21). A experiência do sofrimento não permite nenhum distanciamento dessa constatação do tempo: é quando o sujeito se vê “encurralado pela vida e pelo ser” (LEVINAS, 1993, p. 109-110).

A enfermidade desperta “o lado obscuro da vida”, visibilizando a “vulnerabilidade ontológica do ser humano” ( ROSELLÓ, 2009, p. 72). No impressionante romance de Philip Roth, Animal agonizante (2001), ele aborda a crise de saúde vivida pela personagem Consuelo, uma belíssima jovem cubana, e a tensão que isso provoca na sua relação com o professor David Kepesh. Depois de um diagnóstico de câncer no seio, Consuelo convoca seu companheiro por telefone para um encontro. Desfeita pela dor e pela quimioterapia, busca contar para ele “toda a história”, desde que a moléstia tomou seu corpo jovem e a desnudou. Diante do amigo assinala: “Você conheceu o meu corpo quando ele estava no auge. Por isso quero que você o veja agora, antes de ele ser estragado pelo que os médicos vão fazer”. Solicita um grande favor: com sua câmara Leica pede a ele para fotografá-la e despedir de seus seios. O cenário é tecido, com as cortinas fechadas, as luzes acesas e uma “música exata de Shubert”. Ela se põe a despir, elegante e vulnerável, peça por peça. Ao final, diz a ele: “Você podia tocar meus seios?”. Ele a obedece. Em seguida, ela pede várias fotos, de frente e de perfil. O clima provoca excitação nos dois. Ele pergunta: “Quer transar comigo?”. A resposta vem na contramão da expectativa: “Não. Não quero transar com você. Mas quero que você me abrace”. O encontro acontecia num dia especial, de passagem de ano. E Consuelo sofria, talvez, “o pior evento de toda a sua vida”. Juntos diante da TV, acompanhando a comemoração que se prolongava por toda a noite, davam-se conta da fluidez e precariedade de toda aquela alegria juvenil: “Uma histeria infantil fabricada em torno do futuro infinito, uma fantasia que os adultos maduros, com seu conhecimento melancólico de que o futuro é muito limitado, não podem nutrir. E nesta noite enlouquecida ninguém tem um conhecimento mais melancólico do que ela” (ROTH, 2009, p. 122).

            Assim como com Consuelo, em Animal agonizante, algo semelhante ocorre com o personagem Howie, no romance Homem comum, do mesmo autor, Philip Roth. A crise agora ocorre com um homem, que passa a viver momentos difíceis de desaquecimento de sua vida produtiva. Alguém que, como tantos idosos, passa a enfrentar o desafio da vulnerabilidade, num processo de “diminuição progressiva”. Torna-se agora um “homem comum”: “Seria obrigado a encarar os dias que lhe restavam tal como via a si próprio – dias vazios, noites incertas, suportando com impotência a deteriorização física e a melancolia terminal e a espera, a espera por nada (...). Era hora de se inquietar com o aniquilamento. O futuro longínquo havia chegado” (ROTH, 2007, p. 117).

            Ao falar sobre a saúde, Leonardo Boff sublinha a importância de uma justa consideração sobre o tema. Não abraça a definição simplista da Organização Mundial da Saúde ao apresentar uma concepção não realista da questão, ao entender a saúde como um “bem-estar total, corporal, espiritual e social”. Na verdade, falta vida a tal compreensão. O caminho incide sobre uma percepção diversa, que saiba acomodar a “concretude da vida que é mortal”. A saúde, na verdade, “não é um estado, mas um processo permanente de busca de equilíbrio dinâmico de todos os fatores que compõem a vida humana”. Ela é sobretudo

“uma atitude face às várias situações que podem ser doentias ou sãs. Ser pessoa não é simplesmente ter saúde, mas é saber enfrentar saudavelmente a doença e a saúde. Ser saudável significa realizar um sentido de vida que englobe a saúde, a doença e a morte. Alguém pode estar mortalmente doente e ser saudável porque com esta situação de morte cresce, se humaniza e sabe dar sentido àquilo que padece”  (BOFF, 1999, p. 144-145).

                  Com base em estudos epidemiológicos, Eymard Vasconcelos sublinha que os principais males que atingem a população brasileira são de ordem crônico-degenerativo. Diante da complexidade de tais casos, os procedimentos adotados para o seu acompanhamento não podem se restringir a medidas simples, exigindo ao contrário tratamentos prolongados e, sobretudo, uma dinâmica de “reorientação do modo de viver” (VASCONCELOS, 2011, p. 59). São situações que exigem do profissional de saúde outros recursos: sobretudo o cuidado espiritual. Há que acompanhar o outro nesse seu delicado momento de “estranhamento”, e saber ajudá-lo a “reavivar as forças com as quais se conserva e se recupera o equilíbrio”. É o que indica Gadamer em sua reflexão sobre a saúde e o tratamento a ela requerido: um procedimento que envolve as mãos, o ouvido sensível e o olhar atento e observador. O caminho a ser seguido é o que propicia a reinserção do outro em sua experiência de mundo, em sua antiga posição na vida cotidiana (GADAMER, 2006, p. 107 e 134).

            O profissional da saúde é alguém que se vê envolvido nos “momentos de crise mais intensa das pessoas, tem acesso e é envolvido num turbilhão nebuloso de sentimentos e pensamentos, em que elementos inconscientes da subjetividade se tornam poderosos”. É alguém que, como poucos, se envolve “com o ´olho do furacão` da vida humana. Lida com situações de crise que podem levar a uma desorganização ainda maior da vida do paciente pela prisão às redes de mágoas, ressentimentos, perda de energia vital, confusão e destruição dos laços afetivos” (VASCONCELOS, 2011, p. 62-63).

            Não é fácil lidar cotidianamente com processos de sofrimento. Conviver com o sofrimento é suscitar ou reavivar situações que vão na mesma direção. Ocorre muitas vezes identificação com a pessoa que passa por difícil momento. Como sublinha Eugenio Paes Campos,

“é impossível ficar incólume, por exemplo, se atendemos uma criança com câncer. Como é difícil suportar a proximidade com alguém que tem o rosto drasticamente deformado; que tem uma doença contagiosa; que vomita diante de nós ou comporta-se de modo bizarro, inconveniente, enlouquecido! Como é difícil ter que amputar uma perna ou fazer um curativo em quem tem o corpo quase totalmente queimado; consolar alguém que definha com câncer ou que acabou de perder um ente querido” ( CAMPOS, 2005, p. 34).

                  São situações de forte densidade emocional, que envolvem angústia e risco. E o profissional se vê diante de exigências e cobranças que são duras ou pesadas: de ser um onipotente ou salvador. O resultado muitas vezes é sabido: sentimento de frustração, impotência ou sensação de fracasso diante do inexorável. Mas tais situações podem também, e esse é um grande desafio, favorecer uma reorganização da existência em direção a uma vida plena e saudável; de abertura a um cuidado particular com a vida pessoal e interior: o auscultar o mundo desconhecido da interioridade e resgatar energias essenciais para o trabalho com os outros. Gadamer chama a atenção para esse ponto, tão negligenciado em nossa civilização moderna e materialista: uma civilização que desenvolveu ao máximo o traço da especialização do “ser-capaz-de-fazer científico”, mas que paralisou o incentivo ao “autotratamento”, ao auscultar-se atenta e silenciosamente , de forma a poder disponibilizar o sujeito para captar o canto das coisas e todas as riquezas do mundo (GADAMER, 2006, p. 107).

            O trabalho é, de fato, muito exigente e os sinais de nosso tempo não são muito propícios para otimismos fáceis. O que se vê, por todo canto, é a irradiação de desencanto, de perda das energias vitais, de melancolia e nihilismo. Tudo muito palpável e visível. O que se percebe no mundo em que vivemos é o desmonte das teias de significado. Está ao alcance do olhar o crescimento dos traços da depressão. Ao tratar desse tema, a psicanalista Maria Rita Kehl indica que dentre as doenças mentais é a depressão que mais se expande pelo planeta. Sua presença no Brasil também é evidenciada, envolvendo cerca de 17 milhões de pessoas. Mas com o recurso poderoso do tratamento farmacológico, incentivado pela indústria farmacêutica, busca-se, artificialmente, “subtrair o sujeito – sujeito de desejo, de conflito, de dor, de falta – a fim de proporcionar ao cliente uma vida sem perturbações”, mas a reboque firma-se justamente o contrário:

“vidas vazias de sentido, de criatividade e de valor. Vidas em que a exclusão medicamentosa das expressões da dor de viver acaba por inibir, ou tornar supérflua, a riqueza do trabalho psíquico – o único capaz de tornar suportável e conferir algum sentido à dor inevitável diante da finitude, do desamparo, da solidão humana” (KEHL, 2009, p. 53).

            São muitas as razões que levam os depressivos aos consultórios, mas cresce o número daqueles que buscam ajuda em razão de não suportarem “o empobrecimento da vida interior”, corroborado muitas vezes pelo prolongado uso de antidepressivos.

A atenção sobre o cuidador

            Diversos trabalhos têm acentuado o traço de vulnerabilidade que envolve o profissional que atua no campo da saúde. É substantivo o estresse por que passam tais profissionais. Os casos de esgotamento psíquico e emocional não são isolados, com repercussões no trabalho realizado e no interesse pelos pacientes, suscitando igualmente uma imagem negativa de si mesmos. Pode-se ainda acrescentar o dado de competição e rivalidade entre as diversas categorias de profissionais que atuam nessa área, sobretudo nas instituições universitárias (CAMPOS, 2005, p. 18 e 51). São situações complexas que indicam a importância de uma atenção maior à dimensão do cuidado com o cuidador, e em particular do cuidado espiritual. É o desafio de favorecer um clima essencial para que o profissional seja capaz de realizar o seu trabalho com integração e harmonia. Para que ocorra “tratamento” em seu sentido nobre, é necessário saber escutar literalmente a mão e disponibilizar-se a ouvir com atenção e observar com um olhar cuidadoso. Não basta saber agir, mas também tratar; não só prescrever e curar, mas também cuidar.

            A pessoa que cuida requer também cuidados, pois é igualmente vulnerável e quebradiça. Nenhum ser humano, sinaliza Roselló, “pode se desenvolver à margem do cuidado, porque todo ser humano é radicalmente vulnerável” (ROSELLÓ, 2009, p. 130). O traço rotineiro do fazer científico que rege a dinâmica do profissional deve ser amparado pelo processo de “auto-tratamento”, de ausculta de si mesmo, reavivando e equilibrando as forças interiores. O cuidador deve estar atento a esta questão, de recuperação da dimensão de cuidado que incide sobre praticamente todas as esferas da existência: com o corpo, com a alimentação, com a vida intelectual, com a dimensão estética, com a condução geral da vida e com a vida espiritual. Os profissionais da área necessitam desse holding, para utilizar uma expressão winnicottiana, ou seja, de um suporte de acolhida e revitalização, daquele “conjunto de cuidados e fatores de animação” que mantêm aceso o estímulo para levar adiante, com alegria, o trabalho profissional. O tão falado trabalho em equipe deve ocorrer também nesse campo do apoio, de favorecimento do sentido de resiliência:

“Quando esse espírito de cuidado reina entre os operadores da saúde, existe e reinam relações horizontais de confiança e de mútua cooperação, superam-se os constrangimentos nascidos da necessidade de ser cuidado. Aceita-se como dado de realidade que quem cuida precisa ser cuidado. E deve-se aprender a fazê-lo, para que ninguém se sinta humilhado ou diminuído, mas, ao contrário, ajude a estreitar os laços e criar o sentimento de uma comunidade não só de trabalho, mas também de destino, fundado no cuidado” (BOFF, 2012, p. 237).

                  O cuidado envolve zelo, solicitude, diligência. E também preocupação e atenção para com os dispositivos de apoio e proteção. O cuidado é sobretudo “uma atitude de relação amorosa, suave, amigável, harmoniosa e protetora para com a realidade, pessoal, social e ambiental” (BOFF, 2012, p. 34-35). O exercício do cuidar reveste diálogo, não só de palavras, mas sobretudo de presenças. É na verdade uma arte que envolve ternura, delicadeza e gentileza. Necessita, porém, ser permanentemente alimentado, com a criação de espaços garantidos e especiais para esse trabalho interior. É das mais importantes malhas do cuidado, essa que lida com o cuidado do espírito, ou seja, com os valores essenciais que dão sentido e rumo à nossa vida, e que tecem as significações de nossas esperanças. A espiritualidade é, na verdade, “expansão da vida”. Cultivar esse caminho é reavivar energias, próprias da dimensão espiritual, que são tão válidas e fundamentais como as outras que envolvem o ritmo humano, como as energias da libido e do afeto. Como indica Boff,

“O modelo estabelecido de medicina não detém, por certo, o monopólio da cura e da compreensão da complexa condição humana, ora sã, ora enferma. É aqui que encontra o seu lugar, dentro do campo da medicina científica, a espiritualidade. Esta reforça na pessoa, em primeiro lugar, a confiança nas energias regenerativas da vida, na competência do médico e no cuidado diligente da enfermeira ou do enfermeiro. Sabemos pela psicologia do profundo e pela psicologia transpessoal do valor terapêutico da confiança na condução normal da vida” (BOFF, 2012, p. 221).

                  A espiritualidade diz respeito ao incremento de uma dimensão fundamental, que trata da interioridade do ser humano, e o seu cultivo resulta da expansão de vitalidade e de qualidade de vida, resgatando sua dimensão de profundidade. Deixar-se habitar pela atmosfera da espiritualidade é criar um espaço essencial para as fragrâncias da profundidade. Os frutos vão surgindo naturalmente. Sobretudo a paz espiritual, que é fonte secreta que alimenta a paz cotidiana em todas as suas formas: irrompe de dentro e se irradia em todas as direções, qualificando as relações e reinventando a cidadania.  Mas para isso é necessário criar as condições para esse cultivo. Um certo “trabalho de cela” se impõe, deixando-se envolver pelo silêncio. Assim, todos os sentidos poderão acordar para a beleza de tudo que nos circunda. Uma espiritualidade dos sentidos vigilantes.






O reencantamento do cuidador

            A espiritualidade tem a ver com “qualidades do espírito humano”. Nem sempre estamos atentos a tais atributos, pois eles são ofuscadas pela irradiação de contravalores associados ao mundo do trabalho capitalista ou da racionalidade do mercado. Cresce, porém, uma sensibilidade nova, que envolve um processo de humanização. A saúde é um campo propício para o exercício de valores solidários e alternativos. Os “seres sanitários”, para utilizar uma terminologia adotada por Julio Alberto Wong-Un, ou seja, todos aqueles profissionais que atuam na área da saúde, sejam clínicos, enfermeiros, sanitaristas e cuidadores, estão diante de um desafio novo: o de “ser poético” no seu exercício profissional. Essa não é uma tarefa fácil, pois fatores adversos estão em jogo, contrariando essa possibilidade: os longos e entediantes períodos do trabalho rotineiro, somados aos baixos salários e a carência de condições materiais para a realização de uma digna atuação. Apesar de tudo, é possível tecer novos laços e encontrar caminhos de realização interior, sobretudo em projetos que envolvem as comunidades, as redes de apoio e os trabalhos em equipe. Aí é possível ver brilhar a poesia:

“Quanta beleza e quanto brilho, quanta boniteza! Quão bom é sentir o seu olhar entusiasmado, a música da voz querendo transmudar o mundo. Cada ato de cuidado se transforma em criação, cada contato, conversa ou diálogo permite ir às profundezas da alegria, da construção compartilhada de conhecimentos, de emoções e de ternuras (...). O Olhar poético – como percepção e como via de conhecimento – realiza a alquimia interior e a alquimia do diálogo. Em abraço amoroso, andamos nos construindo, criando comunidade, coletivo, grupo” (WONG-UN, 2011, p. 260).

                  O trabalho de reencantamento do cuidador é dos mais essenciais no tempo atual, recuperando essa dimensão de poesia, de disponibilização para a riqueza do canto das coisas. Não há muito segredo para isso: apenas reforçar esse estado de atenção, o cultivo da ternura, delicadeza e gentileza. São pequenos gestos realizados no cotidiano que sinalizam essa riqueza de um mundo interior. Como sinalizou Boff, são “banalidades” que traduzem um alcance maior “do que a mais preciosa joia. Assim como uma estrela não brilha sem uma atmosfera ao seu redor, da mesma forma o amor não vive e sobrevive sem uma aura de afeto, de enternecimento e de cuidado” (BOFF, 2012, p. 152).

            Um dos exemplos mais bonitos nesta direção foi apontado pelo filósofo Eric-Emmanuel Schmitt num dos romances de sua “trilogia do invisível”, o volume que aborda o tema de Oscar e a Senhora Rosa. Esse livro, originalmente publicado na França em 2002, ganhou sua tradução brasileira em 2003 (SCHMITT, 2003). O livro trata de um menino de 10 anos, Oscar, que acaba de passar por um transplante de medula, em razão de uma leucemia, mas a operação fracassa. Depois do ocorrido, sua vida no hospital sofre mudança: deixa de agradar, como ele diz. Como o seu caso não tem mais solução, médicos, residentes, enfermeiros e até os faxineiros perdem o encanto. Falta entusiasmo na equipe que o acompanha, em particular no dr. Düsseldorf, para o qual Oscar significa uma “decepção”, já que não rende mais nenhuma operação. O pensamento do médico, contagiante, refletiu-se nos demais. Como se esta “derrota” visibilizasse para todos uma decepção. E Oscar argumenta que ele contribuiu para tudo dar certo: “Empenhei-me de verdade na operação – fui bem comportado, deixei que me fizessem dormir, senti dor sem berrar, tomei todos os remédios”. E reflete: “O meu transplante foi uma decepção por aqui (...). Agora, os médicos parecem perdidos, não sabem mais o que propor, chegam a dar pena”. Mas é claro, diz Oscar, “médicos são inesgotáveis, cheios de ideias de operações para fazer nas pessoas, e você não rende mais nenhuma”.

            Quando tudo parecia ruir, eis que aparece no hospital uma voluntária, Dona Rosa, que volta a encantar a vida desse menino desenganado. Entra na sua vida com histórias que reencantam o seu mundo. Sugere a ele: “E se você escrevesse a Deus, Oscar?”. E ele indaga: “E pra que eu escreveria a Deus?”. “Pra se sentir menos sozinho”, responde Dona Rosa. E aí segue o ritmo da história, simples mas comovente.

            Para dar significado aos últimos dez dias de vida de Oscar, Dona Rosa sugere uma história, com base numa lenda de sua terra. Ela diz a ele: “A partir de hoje, cada dia seu conta por dez anos”. Com a face iluminada, dá um beijo em Oscar e sai. A partir daí, a vida de Oscar ganha um novo sentido. Numa das cartas, escreve a Deus:

“Deus, hoje de manhã nasci e nem me dei conta direito desse fato; tudo ficou mais claro por volta do meio-dia, quando tinha cinco anos, ganhei em matéria de consciência, mas não foi para receber boas notícias; agora à noite, tenho dez anos, é a idade da razão. Aproveito para pedir uma coisa: quando você for me anunciar algo, como hoje ao meio dia, nos meus cinco anos, tente ser menos brutal. Obrigado”.

                  Oscar chegou, finalmente, aos cem anos. Assinala em carta a Deus que tentou explicar aos pais

“que a vida é um presente estranho. No início, superestimamos este presente: imaginamos ter ganhado a vida eterna. Depois subestimamos, achamos uma porcaria, curto demais, até seríamos capazes de jogá-lo fora. Enfim nos damos conta de que não era um presente, mas sim um empréstimo. Então procuramos merecê-lo. Aos cem anos, sei do que estou falando. Quanto mais envelhecemos, mais devemos mostrar gosto para apreciar a vida. O refinamento deve ser crescente”.

            Aos cento e dez anos, a carta dirigida a Deus era bem mais curta, dizia apenas: “Cento e dez anos. É muita coisa. Acho que estou começando a morrer”. A última carta não foi de Oscar, que partiu numa manhã, sem querer incomodar ninguém. Querendo evitar o desgaste da dor, ou da brutalidade, preferiu celebrar esse adeus sozinho. Na verdade, diz Dona Rosa, era ele quem zelava por todos. As palavras finais de Dona Rosa são de agradecimento por ter encontrado esse menino em seu caminho:

“Oscar ocupou um quarto no meu coração, e não tenho como tirá-lo de lá. Preciso segurar as lágrimas até hoje à noite. Não quero comparar o meu sofrimento à dor, insuportável, dos pais dele. Obrigado por ter posto Oscar no meu caminho. Graças a ele, fui engraçada, inventei lendas, até parecia entender de luta livre. Graças a ele, ri, descobri a alegria. Oscar ajudou-se a acreditar em Você. Estou lotada de amor: Oscar foi generoso, tenho um estoque para o resto dos anos”.

                  Nos últimos três dias de vida, Oscar tinha colocado um aviso em sua mesinha de cabeceira: “Só Deus tem o direito de me acordar”.

            Outras Donas Rosas existem espalhadas por esse mundo afora, reencantando a vida de tantos meninos e também adultos que passam por experiências de limite e dor. Isso poderia também reverberar nos médicos, residentes, enfermeiros e profissionais que se dedicam a tão importante causa, mas que poderiam adornar o seu conhecimento com essa experiência espiritual interior. A poeta e escritora, Lya Luft, fala das “mulheres ensolaradas”, cuja “luminosidade se espalha por toda parte. Mesmo abaladas por alguma fatalidade, ainda que lhes falte o que para tantas sobra em beleza ou luxo, têm em si uma espécie de obstinado sol que se desprende delas como um perfume” (LUFT, 2001, p. 59).

Referências Bibliográficas

BOFF, Leonardo. Saber cuidar. Ética do humano – compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes, 1999.
BOFF, Leonardo. O cuidado necessário. Petrópolis: Vozes, 2012.
CAMPOS, Eugenio Paes. Quem cuida do cuidador. Uma proposta para os profissionais da saúde. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
GADAMER, Hans-George. O caráter oculto da saúde. Petrópolis: Vozes, 2006.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Campinas/Vozes: Editora Unicamp/Vozes, 2012 (edição em alemão e português – tradução e organização Fausto Castilho).
HEIDEGGER, Martin. Seminários de Zollikon. Protocolos – diálogos – cartas. 2 ed. Bragança Paulista/São Paulo/Petrópolis: São Francisco/ABD/Vozes, 2009.
KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão. A atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009.
LÉVINAS, E. El tempo y el otro. Barcelona: Paidos Iberica, 1993.
LUFT, Lya. O rio do meio. 10 ed. São Paulo: Mandarim, 2001.
LUZ, Madel T. Políticas de descentralização e cidadania: novas práticas em saúde no Brasil atual. In: PINHEIRO, R. & MATTOS, Rubem Araujo (Orgs). Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: IMS/UERJ/Abrasco, p. 17-37, 2001.
LUZ, Madel T. Novos saberes e práticas em saúde coletiva. Estudo sobre racionalidades médicas e atividades corporais. São Paulo: Hucitec, 2003.
RILKE, Rainer Maria. Elegias de duíno. 6 ed. São Paulo: Globo, 2013.
ROSELLÓ, Francesc Torralba. Antropologia do cuidar. Petrópolis: Vozes, 2009.
ROTH, Philip. Homem comum. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
ROTH, Philip. O animal agonizante. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
SILVA, Dora Ferreira da. Comentários. In: RILKE, Rainer Maria. Elegias de duíno. 6 ed. São Paulo: Globo, p. 93-125, 2013.
SCHMITT, Eric-Emmanuel. Oscar e a senhora Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.
TEIXEIRA, Faustino. O projeto ético como afirmação de saúde. Revista de APS, v. 3, n. 7, p. 8-14,  2000-2001.
VASCONCELOS, Eymard Mourão (Org). A espiritualidade no trabalho em saúde. 2 ed. São Paulo: Hucitec, 2011.
WONG-UN, Julio Alberto. O sopro da poesia: revelar, criar experimentar e fazer saúde comunitária. In: VASCONCELOS, Eymard Mourão (Org). A espiritualidade no trabalho em saúde, p. 243.267.


Publicado na Revista de APS (NATES-UFJF), v. 17, n. 1, jan./mar. 2014, p. 120-126:
http://aps.ufjf.emnuvens.com.br/aps/article/view/2478/794

Francisco e os povos da Terra

Francisco e os povos da Terra

Faustino Teixeira[1]


            O início do pontificado de papa Francisco, em março de 2013, significou um passo de grande importância na vida da igreja católica. Com um toque profético que encantou a muitos, deu sequência viva ao projeto do Concílio Vaticano II (1962-1965), expresso na passagem da Constituição que abordou a presença da igreja no mundo de hoje, Gaudium et Spes: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1). Francisco assume sua nova responsabilidade com essa disposição de acolhida e serviço, empenhado em buscar novos caminhos para a instituição, que agora vem desafiada a “sair de si mesma e ir ao encontro” dos outros, assumindo sua vocação evangélica pontuada pelo ágape (amor).

            Em vários momentos de seu pontificado, Francisco testemunhou esse exercício pastoral alternativo, já vislumbrado em sua visita a Lampeduza, na Itália, ou na jornada brasileira, com uma atuação corajosa e aberta. Uma sintonia fina une o papa Francisco com os movimentos sociais e com a causa dos pobres e excluídos. O que se viu em Roma, em outubro de 2014, no encontro histórico de Francisco com representantes de quase cem entidades dos movimentos populares de todos os continentes foi algo inaugural. Um momento histórico que jamais tinha ocorrido na vida da igreja católica nesta proporção. Como sublinhou com acerto Ignacio Ramonet, foi uma “assembleia mundial dos povos da Terra”; um momento solene de acolhida e hospitalidade eclesial, quando então se pôde ouvir a voz e o clamor dos pobres em favor de um mundo melhor.

            O discurso do papa Francisco, ocorrido em 28 de outubro de 2014, conseguiu recolher com fidelidade as demandas suscitadas no evento, como os próprios participantes reconheceram na declaração emitida ao final: Carta dos excluídos aos excluídos. Disseram: “A claridade e contundência de suas palavras não admitiram duas interpretações e reafirmam que a preocupação pelos pobres está no centro do Evangelho”. Foi mesmo o que afirmou Francisco naquele momento, vislumbrando no acontecimento um grande sinal: “Vocês vieram colocar na presença de Deus, da Igreja, dos povos, uma realidade muitas vezes silenciada. Os pobres não só padecem a injustiça, mas também lutam contra ela”. Trata-se de uma luta sagrada, em favor de direitos sagrados, que realçam o amor pelos pobres, que está no cerne do evangelho. Essa atenção para com os pobres guarda uma motivação teológica, como lembrou o Documento de Puebla, em janeiro de 1979: “Criados à imagem e semelhança de Deus para serem seus filhos, esta imagem jaz obscurecida e também escarnecida. Por isso Deus toma sua defesa e os ama” (n. 1142).

            Três grandes anseios estavam presentes neste evento histórico: a luta em favor da terra, do teto e do trabalho. Um anseio essencial por “direitos sagrados”, que tocam o cerne do projeto evangélico. Em seu discurso, Francisco dá voz aos segmentos que expressaram no evento seu descontentamento com as arbitrariedades e desmandos que ocorrem nesses três campos. Questões relacionadas à apropriação de terras e de águas, a violência dos agrotóxicos e a chaga do desmatamento. Sublinhou o drama do desenraizamento de tantos irmãos camponeses, colocando em risco a relação vital e espiritual com a terra; e também a dor dos que sofrem com a falta de moradia: “Hoje, vivemos em imensas cidades que se mostram modernas, orgulhosas e até vaidosas. Cidades que oferecem inúmeros prazeres e bem-estar para uma minoria feliz... mas que se nega o teto a milhares de vizinhos e irmãos nossos”. E para complicar o quadro, a grave questão da falta de trabalho, o desemprego dos jovens, a exclusão dos direitos trabalhistas e a irradiação da informalidade. Há também o fenômeno do trabalho escravo, da exploração e opressão. E aqueles que não conseguem alguma “integração” na lógica do mercado acabam sendo descartados, como tantos idosos que deixam de ser “produtivos”. Firma-se então uma “cultura do descarte”, com a presença dolorosa de excluídos “sobrantes”, ou então de desempregados, que na Europa chegam à faixa de 40% entre os jovens.

            Não faltou coragem ao papa Francisco para identificar nessa situação a presença de um mecanismo nefasto, em cujo centro do sistema econômico aparece o novo deus dinheiro, com exclusão violenta do ser humano. É o que ele já tinha reconhecido na sua exortação apostólica de novembro de 2013, Evangelii Gaudium (A alegria do evangelho). Foram contundentes as críticas dos participantes do evento, retomadas por Francisco, a respeito da grande ofensiva do capital nacional e internacional, e seus efeitos nocivos sobre os recursos naturais em todo o planeta. Falou-se igualmente das crises climática, energética e alimentar.

            Em momento forte de seu discurso, Francisco sublinhou com ênfase a questão ecológica: “Não pode haver terra, não pode haver teto, não pode haver trabalho se não temos paz e se destruímos o planeta”. Convoca, assim, todos os povos da terra para lutarem em favor dessa causa fundamental, de preservação desses dois dons preciosos: a paz e a natureza. Rechaça, de um lado, os passos da guerra, que hoje vem sendo travada em cotas; e de outro, as garras de um sistema econômico que sobrevive no projeto nefasto de saquear a natureza a todo custo. E os povos,  com prejuízo dos mais pobres e excluídos, acabam sendo envolvidos nessa globalização da indiferença. Sua crítica é contundente: “As mudanças climáticas, a perda da biodiversidade, o desmatamento já estão mostrando seus efeitos devastadores nos grande cataclismas que vemos, e os que mais sofrem são vocês, os humildes, os que vivem perto das costas em moradias precárias, ou que são tão vulneráveis economicamente que, diante de um desastre natural, perdem tudo”.

            Um dos grandes cientistas brasileiros, Antonio Donato Nobre (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – IMPE), adverte para a violência ecológica que vem ocorrendo hoje na Amazônia com o violento desmatamento. Só nos últimos quarenta anos, assinala, foram destruídas 42 bilhões de árvores, três milhões por dia, o equivalente a três Estados de São Paulo ou duas Alemanhas.

            Esses são grandes desafios colocados aos movimentos sociais, e que estiveram no centro das discussões do encontro de Roma em outubro de 2014. Apesar do reconhecimento de certa fragilidade das organizações populares, percebeu-se, com clareza, que o verdadeiro movimento transformador parte sempre de baixo, e nem sempre pelos caminhos lógicos da democracia formal. As crises, conflitos e perseguições por que passam os movimentos sociais não se revertem necessariamente em desânimo ou capitulação. Há um traço de resiliência nos movimentos de base que impressiona: o poder de uma solidariedade e de uma “artesanalidade” nas formas de resistência que surpreendem e encantam.

(Publicado em Le Monde Diplomatique, 06/01/2015:



[1] Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora – MG.