quarta-feira, 14 de abril de 2010

A experiência de Deus no Islã

   

A experiência de Deus no Islã

 

Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF

 

 

“Tu estás oculto de nós,

embora os céus estejam repletos

de tua luz,

que é mais brilhante que o sol e a lua!

Tu estás oculto

E no entanto revelas nossos segredos ocultos!

Tu és a fonte que faz correr os nossos rios”

(Rûmî)

 

 

Introdução

 

No título de um artigo publicado em periódico italiano estampava-se a perplexidade que tomou conta de toda a humanidade depois dos episódios de terrorismo e barbárie ocorridos nos Estados Unidos em setembro de 2001. “E assim começa o século XXI”... Na imagem cunhada pelo articulista, estava concentrada toda a afasia, revolta e temor que tomaram conta da humanidade nas horas e dias que se seguiram aos atentados. Esta perplexidade aumentou com a sede de vingança que assediou a potência mundial atingida. Contra a rede internacional de terrismo, anunciou-se uma “guerra da civilização”. Após os atentados, iniciaram-se as retaliações por todos os cantos do planeta, acompanhando a revolta instalada. Em casos concretos chegou-se a identificar o Islã com a face do terrorismo: muçulmanos atacados, mesquistas apedrejadas ou incendiadas, desconfiança generalizada... Este clima repercutiu também no Brasil e na América Latina, inclusive em discursos de lideranças religiosas que chegaram mesmo a afirmar que “o mal absoluto só pode ser vencido pela força bruta!”.1

 

Neste momento particular e doloroso, torna-se de extrema importância o discernimento ponderado e crítico. Não se pode, sob hipótese alguma, confundir as experiências fundamentalistas setorizadas, que têm acionado as armas do terror, e as tradições religiosas com as quais pretendem vincular-se. E igualmente problemático é afirmar gratuitamente sobre a impossibilidade de qualquer dinâmica dialogal entre as tradições religiosas. Não há como negar que estas tradições são penetradas pelas ambigüidades da dinâmica histórica, e que em diversos casos o nome de Deus foi utilizado para perpetrar a violência, a opressão e a morte. Mas daí não se pode concluir que as tradições religiosas, sem exceção, “nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, que, pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, de morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana.”2

 

 Há que sublinhar que a relação autêntica com o Absoluto em hipótese alguma implica a afirmação da violência, mas ao contrário, suscita e provoca a afirmação da vida e um alento humanizador em toda a dinâmica existencial. Sem desconhecer a responsabilidade das religiões no conflitivo panorama contemporâneo, há, porém, que sublinhar que isto ocorre não em razão da religião, mas de sua desfiguração ou abuso teórico e prático.3

 

No intuito de contribuir para este discernimento é que me proponho a apresentar uma breve síntese sobre a experiência de Deus no Islã, com destaque para a reflexão dos místicos sufis. Esta reflexão torna-se extremamente atual, nestes tempos de violação dos valores humanos mais fundamentais:

 

“O bem-amado escondeu-se por causa das contendas:

Todos partiram, tudo é deserto. Saia do abrigo.

Livra teu servidor do naufrágio da aflição,

Dê alegria a meu olhar pálido de inquietação.

Transformei meu ser num oceano de lágrimas:

Por que não vens contemplar o oceano?

Já que no espelho viste teu próprio rosto.

Onde encontrar uma mais nobre visão?

Engano-me: o espelho não te contém jamais.

Em tua luz todas as coisas se aniquilam.

Este espelho não necessita polimento:

Pelo teu rosto torna-o límpido e puro”.4

 

Para a tradição do Islã, a grande teofania está presente num livro: o Corão. A Palavra ocupa nesta tradição religiosa uma importância fundamental. Trata-se de um “ditado sobrenatural, registrado por um profeta inspirado.”5 Para os muçulmanos, o Corão traduz a Revelação mesma de Deus descida (tanzîl) sob a forma de Livro.6 Para a espiritualidade muçulmana, é o Corão e não o profeta Muhammad (Maomé) que ocupa o lugar fenomenologicamente análogo ao de Jesus Cristo para os cristão. Nesse sentido, ele pode ser corretamente definido como o “Verbo enlivrado.”7 Enquanto Palavra de Deus (Kalam Allah), o Corão nos abre pistas importantes para a compreensão de Deus na tradição islâmica.

 

A tradição islâmica não cessa de recordar os 99 nomes de Deus presentes no Corão. Para a exegese  muçulmana, estes nomes representam símbolos ou qualificativos da realidade divina, jamais alcançada pelos limites humanos. Para Deus são reservados os “mais belos nomes” (7,180; 17,110).8

 

Um Deus transcendente

 

Com base na descrição corânica de Deus pode-se acentuar, em primeiro lugar, a afirmação decisiva da transcendência de Deus e a total dependência de todas as criaturas para com Ele. Esse Deus único é transcendente, o totalmente outro e “nada lhe é semelhante” (112,4 e 42,11)9. Ocorre aqui uma ruptura radical na noção de criação entre o Criador e as criaturas .

 

Mas urge reafirmar que  transcendência não significa distanciamento. O ‘Deus longínquo do islã’ é uma estupidez que não nos cansamos de repetir. Deus está próximo do homem e convida-o a aproximar-se dele. É exatamente essa proximidade (qurb) recíproca que define da melhor maneira suas relações inclusive no cume do itinerário místico ortodoxo (Ghazali). Seria preciso tudo ignorar da vida concreta dos muçulmanos para não sentir essa presença de Deus, não apenas por sua ação que tudo invade, mas por seu ser e sua relação com o crente.10

 

A própria raiz da palavra islã refere-se à “submissão” a Deus, sendo o muçulmano (muslin)  aquele que se submete a Deus.

 

O crente é centrado e polarizado nesta realidade única que se traduz no mínimo pela atitude de adoração, de ‘entrega de si a Deus’ (islâm), pela observância da Lei revelada, por um sentimento profundo de dependência, de ‘necessitado diante do seu Senhor’ (al-faqîr ilâ Rabbihi), como gostam de assinar os muçulmanos, ricos ou pobres. Historicamente, porém, esta consciência do nada da criatura e do tudo de Deus (o tudo e nada de São João da Cruz) foi o ponto de partida dos místicos muçulmanos, os sufis.11

Um Deus de proximidade

 

O fato de ser transcendente, grandioso e altíssimo (13, 9), para além do que é transitório e efêmero, não significa que esteja distante e insensível aos caminhos do humano. Embora distinto do ser humano, Deus dele se aproxima com grande intimidade. Deus é portador das “chaves do incognoscível”(6,59), mas também Aquele do qual “estamos mais perto do que a [sua] artéria jugular (50,16).12 Face ao mistério de Deus o ser humano encontra-se envolvido pela dialética da proximidade e do distanciamento, tão bem captada por místicos sufis como al Hallâj: “Disse: eis o Sol, amigos meus, e a sua luz assim tão próxima, e contudo tão distante de aferrar”13. O sol do Amado, a Beleza divina, não podem manifestar-se ao humano senão através de véus, que filtram a sua revelação, favorecendo a possibilidade da alegria do encontro:

 

“Quando Deus, o Altíssimo, Se manifesta na montanha com um véu,

torna as árvores, as flores e a relva belas, e quando Ele Se manifes-

ta sem véus, destrói e pulveriza tudo”14.

   

      Diante do mistério, que abafa qualquer possibilidade de certeza, o ser humano não pode viver senão a sensação do paradoxo (shath), do estupor (hayrah), que traduz o modo “de permanecer sempre surpreso diante da divindade, e progredir no caminho espiritual.”15  O estado de estupor identifica-se com o estado de “embriaguês metafísica” que envolve o místico quando este experimenta a realidade da união suprema. Um dos grandes mestres sufis, Junayd (morto no ano de 911), conhecido como o “Senhor da Tribo espiritual”, descreveu com preciosos detalhes o significado desta experiência:

 

“Professar a sua unidade significa manter  a fé Nele, e isto significa

confirmá-lo, e  confirmá-lo significa  conhecê-lo, e o seu  conheci-

mento implica  elevar-se a Ele, e elevar-se a Ele  significa alcançá-

lo, e alcancá-lo leva a explicá-lo, e explicá-lo leva ao estupor, e no

estupor desvanece a  explicação, e quando  desvanece a explicação

cessa qualquer possibilidade de descrevê-lo”16.

 

Como indica o estudioso Frithjof Shuon, “no nome Alá, contêm-se os aspectos de Transcendência assustadora e de totalidade envolvente. Se só houvesse o aspecto Transcendência, seria difícil ou até mesmo impossível contemplar este nome. De outro ponto de vista, pode-se dizer que o Nome Alá exala ao mesmo tempo a serenidade, a majestade, o mistério.”17

A experiência da união amorosa com Deus foi eternizada nos versos magníficos do místico persa  Djalâl-od-Dîn Rûmî (1207-1273), um dos maiores poetas de todos os tempos:

 

“O amor se avizinhou

E é como o sangue que escorre em minhas veias e em minha pele

Ele esvaziou-me e preencheu-me do Bem-Amado.

O Bem-Amado penetrou todas as parcelas de meu corpo.

De mim não resta mais que um nome, todo o resto é Ele.18

 

Teu amor chegou a meu coração e partiu feliz.

Depois retornou e se envolveu com o hábito do amor,

Mas retirou-se novamente.

Timidamente, eu lhe disse: “Permanece dois ou três dias!”

Então veio, assentou-se junto a mim e esqueceu-se de partir19

 

Tu és mais suave que a manhã de cada dia para as criaturas,

Tu és mais delicioso que o sono dos que, cansados, habitam a noite.

Eu te encontrei em minha alma, e me senti liberto.

Eu não falo como os desgarrados, de razões incertas.

Pois incendiaste o universo com o fogo do amor,

E o mundo se preencheu de suavidade.

A lua e o sol haurem de ti sua beleza,

A estrela polar e a constelação dos gêmeos colhem de ti seu ser.

Se a noite tornou-se cura e repouso das criaturas,

É porque teu amor forneceu a quietude da escuridão.

As criaturas são como a falena, o dia como a vela:

Tu o fizeste belo com tua própria beleza.

Para cada falena que viu tua flama,

A noite tornou-se mais refulgente que a aurora.

Ela voa em torno da flama de tua beleza

Dia e noite, sem provar temor”20.

 

Um Deus criador e único

 

O Deus de que fala o Corão é o criador de todas as coisas (13,16; 6,102), exercendo sobre as mesmas uma soberania absoluta. “A Deus pertencem o oriente e o ocidente. E aonde quer que vos dirijais, notareis o Seu Rosto, porque Deus é Onipresente, Sapientíssimo” (2,115).  É também o Deus único e uno professado com grande devoção pelos muçulmanos na profissão de fé (shahadah): “Não há outro Deus senão Deus” (lâ ilâha illâ Allâh). Declaração explícita desta unidade de Deus encontraremos na Sura 112: “Dize: Ele é o Deus único; Deus é eterno. Jamais gerou ou foi gerado  e ninguém é comparável a Ele”.21 Ou segundo a tradução de Jacques Berque: “Ele é Deus, Ele é Um, Deus de Plenitude”. A expressão Allahu al-samad não apresenta um sentido seguro nem mesmo para os comentadores muçulmanos, daí a diversidade de acepções: o Absoluto, o Eterno, o indissociável, o impenetrável, o Deus de Plenitude etc.22  Esta surata, de grande importância na liturgia, e uma das mais apreciadas pelos muçulmanos, confirma a profissão de fé monoteista do islã. Com ela  reafirma-se a polêmica tradicional entre cristãos e muçulmanos a propósito do dogma da trindade. Esta profissão de fé muçulmana vem confirmar a fé inicial de Israel: “Tu adorarás um só Deus”. No entanto, como indicou C.Geffré, o monoteísmo de Israel é um monoteísmo soteriológico: “não há salvador que não seja eu” (Os 13,4), “não há outro Deus fora de mim” (Is 45,21); enquanto que o monoteísmo muçulmano é um monoteísmo ontológico e dogmático, sem uma ligação mais direta com uma aliança histórica.23  Segundo outro analista, Robert Caspar, a grande idéia força do Islam vem representada pela imagem do Deus sempre maior (Allah akbar), do Deus que é único e indissociável:

 

“O Corão nega toda divindade ‘aquém de Deus’ (min dûn Allâh), fórmula cem vezes repetida. Deus é o Criador único e todos os outros seres, do anjo ao mineral, são suas criaturas, ‘criadas para adorar a Deus’. (...) Deus revela, no Corão,  que ele é único. ‘Associar’ criaturas a Deus é o único pecado irremissível, o ‘shirk’, a infidelidade. (...) Se Deus existe, só pode ser único. Está inscrito na própria natureza do homem que, antes de nascer, já fez profissão de fé monoteísta na pré-eternidade (Corão 7,172-173). Esta ‘aliança’ entre Deus  e o homem, substituto da aliança bíblica, diz respeito a todo homem que nasce ‘naturalmente muçulmano’, como o afirma o célebre hadith ( palavra de Maomé): ‘Todo recém-nascido nasce monoteísta muçulmano; são seus pais que fazem dele um judeu, um cristão ou um mazdeísta’”24.

 

Um Deus Onipotente e Misericordioso

 

Na descrição corânica, Deus emerge igualmente como onipotente e misericordioso. Com o atributo do Deus onipotente busca-se enfatizar o dado fundamental do Deus que é onipoderoso, cujo poder é ilimitado e irrestrito, que suscita a adoração e submissão do ser humano. Segundo as palavras do Corão:

 

“Ainda que todas as árvores da Terra

Se convertessem em cálamos

E o oceano em tinta,

E se lhes fossem somados mais sete oceanos,

Isso não bastaria para escrever as inexauríveis

Palavras de Deus,

Porque Ele é Poderoso”.

 

Por sua vez, o atributo da misericórdia vem confirmar a extrema bondade de Deus. Em linha de sintonia com o Deus bíblico (Ex 34, 6-7), o Deus do Corão é “o mais misericordioso dos misericordiosos” (7, 151). O atributo al-rahmân (misericordioso) aparece inúmeras vezes no Corão, como um dos importantes nomes atribuídos a Deus.  No início da sura Al-Fatiha (a sura de abertura do Corão): se diz “Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso”25 (Rahmân e Rahîm, respectivamente). Os dois termos derivam de uma mesma raíz  r.h.m. que tanto em árabe como em hebraico indicam útero, evocando, assim, a idéia de uma materna proteção. Trata-se da famosa fórmula basmallâh = bismi-llâh I-Rahmân I-Rahîm . De fato, a misericórdia divina não deixa nada fora de si: “A minha misericórdia abraça todas as coisas” (7,156)26.  Al-Ghazzali relata em seu livro Durrat el-fâkhirah, uma curiosa passagem, que aborda os gritos e lamentos de um homem no inferno, que gritava mais alto que todos os outros e clamava pela misericórdia de Deus. Ao ouvir a pergunta de Deus sobre a razão de seus lamentos, o homem respondeu: “Senhor Tu julgaste-me, mas eu não perdi ainda a fé na Tua misericórdia... E Deus disse Quem desespera da misericórdia do seu Senhor a não ser os extraviados (Corão 15,56). Vai em paz, pois já te perdoei.”27

Uma série de outros nomes são atribuídos a Deus no Corão, alguns com posição de maior destaque, outros com menor número de menções no Livro. Todos eles, porém,  conhecidos e recitados de memória nas orações dos fiéis. Alguns deles vem agrupados em suratas importantes (57,1 e 59, 22-24: Criador, Conhecedor do cognoscível e do incognoscível, Soberano, Augusto, Pacífico, Salvador, Zeloso, Poderoso, Supremo etc.), outros aparecem na chamada de cada surata (clemente e misericordioso). Todos eles relacionam-se, em síntese, com os seguintes temas: “unicidade de Deus, santidade e transcendência, criação e soberania, justiça e retribuição, misericórdia e mansidão, vida e eternidade.”28

 O Corão convoca o fiel a não se esquecer jamais de pronunciar o nome de Deus: “Recordai-vos de Mim, que eu Me recordarei de Vós” (2,152).  Idéia igualmente expressa pelo místico sufi Rumî em seu Masnavi: a invocação daquele que suplica a Deus é essencialmente idêntica à resposta de Deus: Labbayka (Eis-me-aqui)29

 

Um Deus sempre maior

 

Há na reflexão muçulmana a presença de uma “teologia negativa” que mantém sempre inacessível o mistério de Deus. Esta teologia estará presente sobretudo na tradição mística sufi. O grande mestre Al-Ghazali sublinhou com ênfase a impossibilidade do conhecimento de Deus por parte dos iniciados.  A única certeza que podem estar animados, é a certeza da incapacidade de tal conhecimento, pois “conhecer realmente Deus é impossível a quem quer que esteja fora de Deus mesmo.”30 Aos 99 “belos nomes de Deus”, a especulação dos místicos acrescentou um centésimo nome: al-ism. Este seria o “nome máximo”, desconhecido e impronunciável, mas portador de enormes virtudes. Trata-se de um nome só acessível aos místicos mais iluminados.31

Os místicos sufis souberam captar esta dimensão do Deus sempre maior com uma peculiaridade singular. Trata-se de um traço comum entre os místicos de todas as épocas e culturas. Eles “permanecem irmanados porque sabem que é impossível traduzir adequadamente o que de verdade lhes aconteceu para além da razão e dos sentidos.”32 Todos partilham a consciência da limitação e da contingência do humano diante do mistério impenetrável.33 Um dos grandes místicos sufis, do século XII, Farid Ud-Din Attar, expressou com palavras que são únicas a riqueza deste mistério:

 

“Temos um rei de verdade,

Que vive atrás das montanhas chamadas Kaf.

Chama-se Simurgh

E é rei dos pássaros.

Está perto de nós,

Mas nós estamos longe dele.

O sítio que habita é inacessível,

E nenhuma língua consegue pronunciar-lhe o nome.

Diante dele pendem cem mil véus de luz e treva,

E nos dois mundos ninguém tem o poder

De disputar-lhe o reino. (...)

Não se manifesta abertamente

Nem mesmo no local da sua habitação,

E a esta nenhum conhecimento

E nenhuma inteligência podem chegar”34.

 

De forma admirável, um dos maiores especialistas do sufismo, o orientalista Louis Massignon (1883-1962), afirmou que que o Deus do Islã constitui um “bloco de santidade impenetravelmente densa”. Mesmo o profeta Muhammad (Maomé), em sua famosa ascensão noturna à inacessível cidade santa, não chegou a penetrar no amor de Deus, mas permaneceu no seu limiar... É aí que reside, segundo Massignon, a importância e o escândalo de toda vocação mística integral no Islã: “não é permitido ultrapassar o limiar onde Muhammad se fixou, nem penetrar na ‘luz santa’ (incêndio divino) anteriormente prometida a Abraão como herança: ela está interditada por um vidro, contra o qual as mariposas amorosas vêm se queimar.”35

 

Diálogo com o cristianismo

 

A fé no único Deus criador é um dos traços que unem o cristianismo e o islã. Não é incorreto afirmar esta comunhão de fé na transcendência pessoal do Deus único. O papa João Paulo II, em seu célebre discurso aos jovens muçulmanos do Marrocos, no ano de 1985, sublinhou que o Deus que anima a crença de muçulmanos e católicos é o mesmo.36 Unidade igualmente afirmada no Corão: “E não disputeis com os adeptos do Livro senão da mais pacífica maneira possível. (...) Dizei-lhes: Cremos no que nos foi revelado, assim como no que vos foi revelado antes; nosso Deus e o vosso são Um e a Ele nos consagramos” (29, 46). Trata-se de um mesmo Deus que vem adorado, mas segundo uma “inteligência diferente de sua unidade”.

 A tradição muçulmana tem grande dificuldade de aceitar um monoteísmo que reconcilie a imutabilidade inalterável de Deus com a sua encarnação em Jesus Cristo; bem como a unicidade de Deus com a trindade de pessoas. Esta é a grande questão e o ponto nodal de diferenciação das duas tradições. A tradição islâmica reconhece valores excepcionais na pessoa de Jesus (‘Îsâ). Este vem reconhecido no Corão como um sinal e exemplo para os homens (19,21 e 43,59) um  profeta e enviado, perfeito “servidor de Deus” (19,30), “o conhecedor dos mistérios (5,116).  Sua descrição ganha no Corão prerrogativas excepcionais: o caráter singular de seu nascimento da virgem (19,9), o reconhecimento de sua vizinhança e proximidade com Deus, o seu traço messiânico, os seus prodígios e milagres.37 Este “profeta dos cristãos” foi elevado por Deus aos céus e sobreviverá até o fim dos tempos (4,157-158). Este reconhecimento não leva, porém, a uma afirmação da sua divindade. O Corão é claro ao afirmar que Deus não teve nem cônjuge nem filho (72,3); que não gerou nem foi gerado (112,3); e todos aqueles que afirmam a divindade de Jesus são identificados como “descrentes” (5,17); bem como os que dizem que “Deus é o terceiro dos três” (5,73).

A resistência à doutrina da trindade cristã é menor no circuito da mística sufi e no esoterismo islâmico. No século XIX, o poeta sufi persa Hatif Isfahani reconheceu no cristianismo a afirmação da Unidade Divina, mesmo com a presença da doutrina trinitária, desde que a trindade pudesse ser reconhecida em seu sentido metafísico. Em poema de rara beleza ele descreve a resposta de uma “encantadora de coração cristã” às indagações críticas à sua crença na trindade: “Se tu sabes o Segredo da Divina Unidade, não jogues sobre nós o estigma da infidelidade. A beleza eterna lançou um raio de seu refulgente semblante em três espelhos. A seda não se converte em três coisas se tu as chamas parniyan, harir e parandn.”38  Em semelhante linha de reflexão, o estudioso Frithjof Schuon sublinha que a restrição feita à Trindade no Corão é “extrínseca e condicional”. Argumenta que a afirmação da Trindade não significa necessariamente a ruptura com a Unidade: “O conceito de uma Trindade enquanto ‘desenvolvimento’ (tajalli)  da Unidade ou do Absoluto em nada se opõe à doutrina unitária do Islão. Aquilo que se lhe opõe é tão-só a atribuição do caráter absoluto à Trindade pura e simples...”.39

Como estamos observando, a doutrina da Trindade permanece uma pedra de tropeço seja para os judeus como para os muçulmanos, embora devamos reconhecer os esforços presentes na busca de um entendimento mútuo. No campo da teologia cristã, podemos mencionar o trabalho realizado por importantes teólogos no sentido de uma formulação da doutrina trinitária didaticamente assimilável fora da esfera cristã. Em artigo sobre a unicidade e trindade de Deus no diálogo com o Islã, Karl Rahner sugere uma formulação sobre a Trindade assimilável nos espaços extra-cristãos.  Rahner acreditava num diálogo verdadeiro entre teólogos cristãos e islamitas em base à comum confissão no Deus uno e único. Sem desrespeitar as “regras linguísticas” da doutrina trinitária clássica, este autor afirma que “um discurso das ‘três pessoas’ e da mesma ‘Trindade’ (não encontrada no Novo Testamento) não é incondicionalmente necessário para expressar aquilo que o cristianismo entende apropriadamente dizer com tal doutrina trinitária.”40 

Toda esta complexa discussão suscita um duplo desafio, para cristãos e muçulmanos. De um lado, a importância dos cristãos estarem mais atentos ao significado e valor do monoteísmo, bem como da transcendência inviolável de Deus; por outro, a necessária abertura dos muçulmanos no sentido de uma maior “dinamização” da unicidade de Deus, rompendo com o risco de uma compreensão da divindade como perfeição auto-suficiente, de forma a poder reconhecer o valor de uma identidade permeável à diferença. Esta mútua interpelação abrirá, certamente, novos caminhos para o diálogo.41

No diálogo cristianismo/islamismo, ocorre um duplo desafio: de um lado, o monoteismo do islã pode significar uma “advertência” para os cristãos, no sentido de evitar uma confissão da divindade de Jesus que atenue os direitos absolutos de Deus. A humanidade de Jesus não pode ser absolutizada. Tanto para cristãos, como para muçulmanos, somente o Deus de Jesus é o criador de todos os seres humanos, sendo absolutamente único. Trata-se de um Deus sempre maior. Uma pista para o diálogo seria partir de uma cristologia narrativa de Jesus como servo de Deus (diversamente de uma cristologia descendente que, sob a influência de Paulo, se desenvolveu no mundo helenístico). Por outro lado, o cristianismo suscita uma convocação de abertura dos muçulmanos no sentido de uma maior “dinamização” da unicidade de Deus, rompendo com o risco de uma compreensão da divindade como perfeição auto-suficiente, de forma a poder reconhecer o valor de uma identidade permeável à diferença. O mistério consiste justamente no fato de que o pathos de Deus não compromete a sua alteridade transcendente.42

 

Conclusão

 

Da imagem do Deus misericordioso presente no Islã, que é o mesmo Deus da fraternura cristã, desdobra-se uma dinâmica que não é de oposição às outras tradições religiosas, mas que é de respeito e reconhecimento. A linguagem do Corão é universal, aberta à admissão de diversos mensageiros: “cada povo teve seu mensageiro” (10, 47).43 Em várias passagens do Corão assinala-se que o critério mais importante e decisivo é a prática do bem e a abertura ao Deus da vida. Segundo o Corão, aqueles que praticam o bem  “serão os diletos do Paraíso, onde morarão eternamente” (2,82).  “Os que crêem e os que abraçam o judaísmo e os cristãos e os sabeus, todos os que crêem em Deus, no dia do Juízo Final, e praticam o bem, obterão sua recompensa de Deus e nada terão a recear e não se entristecerão.” (2, 62)44

Com base na abertura corânica, os místicos sufis desdobrarão tal perspectiva, vivenciando e aprofundando a “misteriosa unidade” que rege a diversidade das formas religiosas. Foi no seio do esoterismo sufi “que se produziu  o encontro mais profundo com outras tradições e onde se pode encontrar  a base indispensável  para a compreensão  em profundidade  de outras religiões hoje em dia. O sufi é alguém que busca  transcender o mundo das formas , passar da multiplicidade à Unidade, do particular ao Universal.”45 Esta visão da doutrina suprema da Unidade vem identificada pelos sufis como “a religião do amor”. E o espelho da manifestação infinita do mistério de Deus é o coração (qalb), que no contexto da mística sufi vem identificado com o “órgão sutil da percepção mística” e “receptáculo cristalino e proteico capaz de refletir todas as epifanias ou atributos de Deus.”46 A riqueza plurivalente deste órgão sutil e sua capacidade inesgotável de acolher as diversas formas religiosas foi trabalhada de forma criativa pelo místico Ibn ‘Arabi (1165-1240), que hauriu sua reflexão do rico berço do Al-Andaluz. Para Ibn ‘Arabi, a diversidade religiosa vem estabelecida e reconhecida pela sabedoria e compaixão divinas:

 

“Meu coração tornou-se capaz de qualquer forma:

É um pasto para gazelas e um convento para os monges Cristãos,

Um templo para os ídolos  e a Caaba do peregrino,

As tábuas da Torah e o livro do Corão.

Sigo a religião do Amor: para onde quer que sigam seus camelos,

O Amor é minha religião e minha fé”47.

 

Na linha da tradição mística sufi, é no coração que se enraíza a experiência espiritual. Trata-se do centro de convergência das tradições abraâmicas e o lugar específico da experiência de “incontestável comunhão” das tradições diversas e de abertura aos valores da alteridade. O místico Rûmî, em seu Masnavi, sublinhou: “Não considero o exterior e as palavras, considero o interior e o estado do coração. Olho o coração, se ele é humilde, embora as palavras possam ser o inverso da humildade. Porque o coração é a substância, e as palavras, acidentes.”48

Como vimos, a tradição mística e corânica acentuam a realidade de um Deus de misericórdia e abertura. E nada mais urgente para o nosso atual momento histórico do que a preservação do reconhecimento da alteridade e a manutenção desta abertura. Em poema de rara beleza, Rûmi, assinalara que a transformação da paisagem só ocorre quando mudamos os nossos sentimentos. Necessitamos todos de um novo alento e de paz nos corações para retomar nossa trajetória de comunhão, que é avessa a qualquer sentimento de predomínio, concorrência ou exclusão. Revela-se mais do que atual a célebre prece atribuída a Muhammad sobre a petição de luz: “Ó Deus, põe luz no meu coração, luz na minha alma, luz na minha língua, luz em meus olhos e luz nos meus ouvidos...”.   Brilha para nós hoje o grande exemplo do cardeal Nicolau de Cusa, que logo depois da queda de Constantinopla, tomada pelos turcos, reage não com a violência que se poderia esperar, mas com a afirmação do sonho de uma convergência universal das religiões. Em tese explicitada em seu livro De pace fidei (1454), este grande teólogo e filósofo manifesta sua abertura inter-religiosa, fundada na compreensão de um Deus sempre maior, que é objeto da busca comum de todos os povos na diversidade de seus ritos.

 

(Publicado no livro: Marco LUCCHESI (Org). Caminhos do islã. São Paulo: Record, 2002, pp. 69-89)

 

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