Dom Luciano: um testemunho de profecia e coragem
Os sinos que repicam em Ouro Preto e Mariana são os fiéis portadores de uma memória que não se pode apagar; trazem o sinal de uma esperança que é de todos nós: de uma sociedade mais fraterna e de uma igreja mais fiel ao testemunho de Jesus.
Faustino Teixeira
Com a morte de Dom Luciano Mendes de Almeida, a Igreja Católica no Brasil perde uma de suas figuras mais nobres, ternas, corajosas e proféticas. E parte num momento difícil, em que nosso país precisa mais do que nunca de personalidades que confirmem o valor e o exemplo de uma vida reta e digna. Há um sentimento comum de orfandade com a sua perda, mas é também uma ocasião importante de resgatar alguns traços fundamentais de sua trajetória ética, radicalmente voltada para o compromisso e solidariedade com os excluídos e com os grandes projetos de afirmação de um novo rosto profético de igreja.
Vale lembrar, de modo particular, sua atuação singular na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em tempos difíceis e sombrios. Foi secretário geral da CNBB de 1979 a 1987 e seu presidente de 1987 a 1995. Foram, talvez, os anos mais ricos deste importante organismo, quando a Igreja Católica brasileira afirmou-se como uma das mais dinâmicas de todo o mundo, com marcado e decisivo compromisso com as causas sociais mais nobres: a pastoral da terra, a defesa dos índios, negros, mulheres, operários, a luta contra a violência, a defesa do solo urbano e o direito ao trabalho.
Foram anos fundamentais de testemunho, visibilidade e presença pública decisiva, em que se plasmou um perfil eclesial alternativo e de credibilidade. Em cada passo dessa caminhada estava Dom Luciano, com sua serenidade e tenacidade, com sua paixão, fé e vigor. A mesma Igreja Católica que havia sofrido antes os sombrios rigores da repressão do regime militar, enfrentava a partir dos anos 80 as restrições da centralização eclesiástica romana. As incompreensões e dificuldades nas relações da CNBB com Roma foram crescendo na medida em que a linha de governo da Igreja caminhou para a centralização e uniformidade.
A CNBB passa a ser sistematicamente preterida no encaminhamento de questões fundamentais da vida eclesial, e importantes figuras do episcopado brasileiro foram mantidas em lamentável ostracismo. Dom Luciano também vive momentos difíceis, de solidão e dor. Era para ele difícil entender as razões de tais restrições. O caminho perseguido era o mais evangélico possível: de trabalho em favor dos pobres, das comunidades eclesiais de base (CEBs), de defesa dos famintos, abandonados e excluídos.
Não há como esquecer o apoio fundamental dado pela CNBB às CEBs num momento em que sofriam pesadas incompreensões, no inícios dos anos 80. Na ocasião, em importante documento do Conselho Permanente da CNBB se dizia: “Na realidade, o que está em discussão é a missão mesma da Igreja. O que é repudiado não são as CEBs em si mesmas, e sim todo o processo de evangelização voltado para a crítica profética das injustiças e empenhado na construção de uma sociedade mais fraterna”.
Foram tempos de coragem e ousadia... Num importante momento da atuação de Dom Luciano na CNBB e na Igreja de São Paulo, onde era bispo auxiliar, ele vem transferido para a distante cidade de Mariana, em Minas Gerais. Chegou-se a falar na época de um “exílio”. Mas manteve firme o seu pulso e sua atuação evangelizadora e profética. Acolheu com humildade a nova realidade, e imprimiu sua marca pastoral também em Minas. Sua voz continuou ecoando firme em favor dos projetos que sempre acreditou. Os sinos que hoje repicam em Ouro Preto e Mariana são os fiéis portadores de uma memória que não se pode apagar; trazem o sinal de uma esperança que é de todos nós: de uma sociedade mais fraterna e de uma igreja mais fiel ao testemunho de Jesus.
(Publicado na Agência Carta Maior - 30/08/2006)
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