quarta-feira, 21 de abril de 2010

Uma eclesiologia em tempos de pluralismo religioso

Uma eclesiologia em tempos de pluralismo religioso

 

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

 

“Meu coração está aberto a todas as formas:

é uma pastagem para as gazelas,

e um claustro para os monges cristãos,

um templo para os ídolos,

A Caaba do peregrino,

As Tábuas da Torá,

e o livro do Corão.

Professo a religião do amor,

em qualquer direção que avancem Seus camelos;

a religião do Amor

será minha religião e minha fé”

(Ibn al-Arabî)

 

Introdução

 

Não constitui tarefa fácil responder ao desafio de repensar a eclesiologia a partir do paradígma do pluralismo religioso. Esta foi a proposta lançada pela Comissão Teológica Latino-Americana da ASETT, dando continuidade ao importante trabalho em favor de um diálogo entre a teologia da libertação e a teologia do pluralismo religioso. A intenção deste breve ensaio é bem mais modesta. Trata-se aqui de apontar algumas indagações e dúvidas que foram aparecendo ao longo do itinerário das pesquisas em torno da questão da teologia cristã das religiões, do diálogo inter-religioso e do desafio do pluralismo das religiões. O artigo não deve ser entendido como uma reflexão cristalizada, mas aberta à interlocução e ao aprendizado. São, de fato, dúvidas e preocupações, mais do que uma sistematização finalizada. A tarefa de construir uma eclesiologia a partir do desafio do pluralismo religioso está ainda por se fazer. O que se pretende aqui é apenas aventar algumas questões e pistas para a reflexão futura.

 

1. O embaraço eclesiológico

 

O que se pode perceber em diversos trabalhos realizados em torno da teologia cristã do pluralismo religioso é um certo embaraço eclesiológico, ou seja, a dificuldade real de avançar uma reflexão eclesiológica para além dos limites definidos pela reflexão magisterial tradicional. As expressões cunhadas pela tradição são de tal forma decisivas e vinculantes que inibem o trabalho hermenêutico exigido. Há que acrescentar outra questão importante que tolhe ou impede o livre exercício da reflexão teológica, no campo católico-romano, que é o controle permanente sobre a atividade e produção acadêmica dos teólogos que atuam em institutos teológicos e universidades católicas, submetidos ao “mandato da competente autoridade eclesiástica”[1]. Paira sobre esta questão um “pesado e perigoso atentado à liberdade de pesquisa e de magistério”, como bem salientou um grupo de teólogos europeus em declaração de 1989[2]. Não foram poucos os teólogos católico-romanos que nos últimos anos sofreram investigação ou processo movido pela Congregação para a Doutrina da Fé em razão de suas reflexões sobre o diálogo inter-religioso e o pluralismo religioso.

 

Em livro publicado em 2001, o teólogo Jacques Dupuis defende o espaço para uma reflexão teológica diversificada, que possa expressar a liberdade e a criatividade de pensar a fé e a teologia num mundo marcado pelo pluralismo religioso. A realidade religiosa plural provoca um novo modo de fazer teologia e a plausibilidade de “distintas percepções” e enunciações da mesma fé cristã. No presente contexto interreligioso causa grande dificuldade a manutenção de reflexões teológicas pontuadas pela dinâmica exclusivista. Na visão de Dupuis, “afirmações absolutas e exclusivas sobre Cristo e sobre o cristianismo, que reivindicassem a posse exclusiva da auto-manifestação de Deus ou dos meios de salvação, distorceriam e contradiriam a mensagem cristã e a imagem cristã”[3].

 

Argumenta-se em geral no campo da reflexão sobre a teologia do pluralismo religioso que é o modo de compreender Jesus Cristo que tem dificultado uma maior abertura à singularidade das outras tradições religiosas[4]. Não há como desconhecer este dado, mas pode-se igualmente sublinhar que a compreensão da igreja tem igualmente suscitado inúmeras dificuldades  no diálogo com as outras religiões. No âmbito católico-romano permanece vigente uma compreensão que expressa uma centralidade inibidora, exemplificada na passagem da Declaração do Concílio Vaticano II sobre a liberdade religiosa: “Cremos que esta única religião verdadeira se encontra[5] na Igreja católica e apostólica, à qual o Senhor Jesus confiou o encargo de levá-la a todos os homens (...)”[6]. Os historiadores do Concílio Vaticano II mostram como a passagem mencionada foi inserida na Declaração sob a pressão da minoria conciliar, para equilibrar a afirmação da liberdade religiosa com a doutrina tradicional católica. Os tradicionalistas reuniram todas as suas forças para reafirmar os direitos do catolicismo romano como religião revelada e resistir ao desafio da liberdade religiosa, que para eles significava o direito a uma “consciência errônea”[7]. Esta visão tradicional vem retomada na Declaração Dominus Iesus, da Congregação para a Doutrina da Fé, que trata a questão da unicidade e universalidade salvífica de Jesus e da igreja. Reafirma-se na Declaração que a “única  verdadeira religião se verifica na Igreja católica e Apostólica” (DI 23) e que os adeptos das outras religiões encontram-se objetivamente “numa situação gravemente deficitária, se comparada com a daqueles que na Igreja têm a plenitude dos meios de salvação” (DI 22)[8].

 

A força e o peso das afirmações doutrinais tradicionais sobre a igreja acabam atemorizando ou bloqueando uma reflexão eclesiológica mais aberta sobre o pluralismo religioso. A busca de fidelidade ao passado acaba sendo preponderante e o “terror face ao risco inerente a qualquer interpretação provoca a repetição das fórmulas tradicionais”[9]. Permanece bem acesa na reflexão teológica uma terminologia que é devedora de um eclesiocentrismo problemático. Para Jacques Dupuis, ainda vigoram “traços claros de um vocabulário deletério com respeito aos ´outros`”, evidenciando a fundamental importância de uma “purificação da linguagem teológica”[10]. Algumas expressões do repertório eclesiológico provocam desconforto no campo do diálogo com as outras religiões, exercendo um efeito negativo, como é o caso da noção de “povo de Deus”. Trata-se de um termo que assinala a especial eleição do povo de Israel por Deus, que foi ampliada e concretizada na igreja. Falar no tempo atual de um povo eleito por Deus, como se os outros povos fossem excluídos da eleição, torna-se problemático. Não é sem razão que alguns teólogos têm sugerido o abandono desta terminologia, no sentido de resguardar a não discriminação do amor[11]. Na verdade, como sublinhado no manifesto do I Encontro da Assembléia do Povo de Deus, no ano de 1992 em Quito (Equador), o “povo de Deus são muitos povos”[12]. Outra expressão problemática é a que fala em “ordenação” dos não cristãos ao povo de Deus. Esta expressão, presente na Lumen Gentium 16, com base em Tomás de Aquino[13], é recorrente mesmo nos textos dos teólogos inclusivistas que trabalham o tema da teologia do pluralismo religioso[14]. Pode-se também mencionar a definição de igreja como “sacramento universal da salvação”, presente na Lumen Gentium 48, e da “necessidade” da igreja para a salvação (LG 14).

 

Há que destacar que a reflexão teológica inclusivista  no campo católico-romano está  vinculada ao posicionamento eclesiológico  firmado no Concílio Vaticano II, e em particular à reflexão da Lumen Gentium. É verdade que esforços importantes e significativos estão sendo feitos, mesmo no âmbito do inclusivismo, de ampliar a interpretação do Concílio e garantir a plausibilidade de uma abertura hermenêutica e inter-religiosa. É o que por exemplo busca fazer Jacques Dupuis ao refletir sobre a questão da sacramentalidade da igreja. Em sua visão, não há como garantir a perspectiva dialogal mantendo a idéia da igreja como a mediação universal da graça. Na verdade, a ação salvífica de Deus é bem mais ampla e multifacetada. A igreja é sacramento, sinal e instrumento do Reino de Deus, universalmente presente na história, mas isto não implica que ela seja a “mediação universal da graça”, pois a graça de Deus acontece permanentemente na resposta afirmativa ao convite de Deus que vem sendo dada na prática de fé e amor das próprias tradições religiosas[15]. 

 

2. A pista aberta pelo reinocentrismo

 

Um passo importante na busca de superação do eclesiocentrismo na teologia cristã das religiões  foi dado com a afirmação do reinocentrismo. Com esta nova perspectiva busca-se mostrar “como o cristianismo e as outras tradições religiosas são co-participantes da realidade universal do reino de Deus para cuja construção são chamados a colaborar até a sua plenitude escatológica”[16]. O dado da universalidade do reino de Deus leva a teologia das religiões a reconhecer na prática sincera das tradições religiosas, onde quer que esta ocorra, uma resposta à chamada de Deus. Os cristãos e os “outros” partilham, assim, do mesmo mistério de salvação, ainda que por caminhos diferentes. Segundo a ótica cristã, é legítimo afirmar que os participantes de outras tradições religiosas são efetivamente “membros ativos do reino”, com presença singular na sua edificação, pois o reino acontece “onde quer que se atue na graça a obediência para com Deus, enquanto aceitação da auto-participação de Deus”[17].

 

A escolha da expressão “reino de Deus” é circunscrita a um espaço bem demarcado. Trata-se de uma expressão de valência no âmbito do judeu-cristianismo.[18] Daí alguns autores levantarem a questão de sua plausibilidade no âmbito da reflexão da teologia do pluralismo religioso e do diálogo inter-religioso.  O teólogo Christian Duquoc assinala que a metáfora do reino suscita reticências. Não há como deixar de reportá-la à bíblia. Trata-se de uma expressão que “se beneficia de um menor poder de universalidade, ja que se insere num espaço muito bem definido”[19]. Semelhante dificuldade lança o teólogo Miguel Quatra. Mesmo reconhecendo a importância desta expressão, enquanto um dos “mais grandiosos símbolos religiosos da humanidade”, assinala que “a linguagem mediante a qual vem veiculada arrisca permanecer estranha, incompreensível e pouco comunicativa, sobretudo no contexto asiático”[20]. Há que estar bem consciente desta questão quando se trabalha com esta categoria, que é bem central na reflexão da teologia cristã das religiões. Trata-se de uma categoria fundamental na interpretação cristã e que permanece válida no âmbito desta interpretação. Para a reflexão mais ampla do diálogo inter-religioso  é necessário buscar novas e mais amplas categorias com maior poder de universalização.

 

Com base na interpretação cristã, a expressão “reino de Deus” é um símbolo religioso que aponta para uma esfera transcendental.

 

Na medida em que alude ao reino de Deus, é realidade engendrada por um poder transcendente  que não tem como ser circunscrito pela imaginação humana, nem definido em termos conceituais ou factuais precisos. O reino de Deus é escatológico, em última instância, abarca o futuro, o fim dos tempos,  o arremate  e a realização  da história. Trata-se de um reino utópico, e pensar que seu advento ocorrerá em determinado tempo e lugar é equivocar-se a respeito do símbolo[21].

 

Mas o reino de Deus não significa exclusivamente um evento escatológico, uma realidade ainda por vir, mas é a expressão da soberanidade de Deus que se avizinha ao humano na medida em que se realiza o empenho em favor de uma comunidade mais justa, fraterna e solidária. O reino também se realiza “onde quer que Deus esteja reinando mediante sua graça, seu amor, vencendo o pecado e ajudando os homens a crescer (...)”[22]. É, portanto, uma realidade que acontece também fora das práticas explicitamente eclesiais, e igualmente nos circuitos das outras tradições religiosas.

 

O reino de Deus constitui o núcleo central da pregação de Jesus de Nazaré. O coração de sua mensagem foi teocêntrico, o cristocentrismo virá depois com a dinâmica eclesial. Jesus

 

não proclamava a si mesmo; sua pessoa e sua obra não aparecem como o foco de seu próprio ensinamento. Pelo contrário, falava a respeito de Deus, a quem se referia como Pai. Deus, a vontade de Deus, os valores de Deus, as prioridades de Deus dominavam tudo quanto se lembrava de haver Jesus dito e feito[23].

 

Toda a vida e atividade de Jesus estão voltados para o reino de Deus, enquanto reino de afirmação da vida. Para ele o reino simboliza o novo domínio de Deus sobre a história, que renova todas as coisas e restabelece relações distintas e fraternas entre os seres humanos e uma nova perspectiva de acolhida e hospitalidade. Através de sua dinâmica vital, Jesus sinalizou a presença de Deus no mundo e apontou de forma singular a realidade intensa e surpreendente de sua vontade transformadora e libertadora.

 

Assim como a perspectiva reinocêntrica coincide com o coração da mensagem de Jesus, ela revela-se igualmente essencial para a vida eclesial. A igreja nasce na dinâmica do seguimento de Jesus e a razão de sua inserção no mundo é ser o sacramento do reino na história. De forma muito feliz esta idéia foi expressa pela Comissão Teológica Consultiva da Federação das Conferências dos Bispos Asiáticos, nas Teses sobre o diálogo inter-religioso:

 

O foco da missão evangelizadora da Igreja é a construção do Reino de Deus e a construção da Igreja para estar a serviço do Reino. O Reino é portanto mais amplo do que a Igreja. A Igreja é o sacramento do Reino, tornando-o visível, ordenada para ele,  promovendo-o, mas não equiparando-se a ele[24].

 

Em seu precioso trabalho sobre a questão do reino de Deus e a missão da igreja nos documentos dos bispos asiáticos, Miguel Quatra mostrou que o reino não pode ser um capítulo da eclesiologia, mas “o coração e a razão de ser da eclesiologia”. Não pode haver para ele uma inteligibilidade  autônoma da igreja, mas ela está sempre referendada ao horizonte mais amplo e envolvente do reino de Deus. Em contraponto com a encíclica Redemptoris missio (1990), de João Paulo II[25], que afirma não poder ser o reino de Deus separado da igreja (RMI 18), Quatra sinaliza ser mais verdadeiro ainda o fato da igreja não poder jamais ser separada do reino.[26]

 

A perspectiva reinocêntrica, que é comum à reflexão teológica asiática e latino-americana, tem suscitado muita perplexidade. A mencionada encíclica de João Paulo II sobre a validade permanente do mandato missionário  (Redemptoris missio) expressa algumas preocupações em torno da perspectiva reinocêntrica. Há, em particular, o temor do papa face a uma reflexão sobre o reino em dissonância com o sentir da igreja, quer enfatizando uma compreensão humanizada e secularizada do reino, quer marginalizando e desvalorizando a igreja (RMI 17-18). Há igualmente o temor de que a centralidade do reino e a ênfase na difusão dos valores evangélicos acabe por deslocar para um segundo plano o anúncio explícito de Jesus Cristo e o empenho missionário em favor da plantatio ecclesiae (RMI 44 e 48)[27]. O que ocorre, na verdade, é um grande receio de que a abertura reinocêntrica possa amenizar ou relativizar a convicção tradicional sobre a necessidade da igreja para a salvação e a consciência de que ela possui a “plenitude dos meios de salvação”. Como mostrou Christian Duquoc, o reino para o qual tende a igreja é também o seu “tormento”, pois ele relativiza o instituído e provoca a necessidade de sua dinamização e reforma[28]. A violência que muitas vezes acompanha o exercício eclesial é expressão e desdobramento de uma rígida convicção de possuir exclusivamente a verdade e a dificuldade de compreender e viver a dinâmica da provisoriedade. Na visão de Duquoc,

 

as censuras , inquisições, excomunhões, cruzadas, guerras de religião não foram acidentais,  mas efeitos lógicos da instituição, em razão de sua singular e autêntica relação com a Verdade e a Santidade. É a inscrição institucional do Absoluto na contingência social que (...) tem provocado a violência de uma doutrina e de uma autoridade  consagrada, por vocação, à não violência[29].

 

Compreender a igreja como sacramento do reino é captar o permamente movimento de peregrinação da igreja, de seu caminho para aquilo que a precede e finaliza, de ampliação de seus horizontes, de abertura ao desafio da alteridade. A importante noção de sacramento não “sacraliza a instituição, mas a descerra na sua forma ambigua para aquilo que, em seu seio, a supera e a relativiza”[30].

 

Na linha da perspectiva reinocêntrica abre-se também espaço decisivo para o reconhecimento da ação salvífica de Deus nas outras tradições culturais e religiosas, uma vez que a realidade do reino atua igualmente fora dos confins da igreja, onde quer que os valores autênticos estejam em curso. O reino de Deus é antes de tudo dinamismo e relação: ele provoca e suscita a abertura, o contato, a empatia, o encontro, a hospitalidade e a cortesia inter-religiosa. Todas as tradições religiosas participam e partilham do envolvimento do reino, mas nenhuma delas pode arrogar-se uma ligação exclusiva com ele. O que ocorre é uma “simbolização interreligiosa do reino”, mais adequada para dar conta de sua real universalidade.[31]

 

A nova perspectiva favorece uma eclesiogênese: uma igreja que se reconhece com os outros e para os outros. O pluralismo religioso não somente vem reconhecido como um valor essencial mas passa também a fazer parte da própria inteligibilidade da igreja.[32] Ocorre uma radical transição de modelo eclesial, de uma perspectiva eclesiocentrada para uma outra extroversa e dialógica. A missão não perde o seu sentido, mas vem ressignificada. O testemunho e a promoção dos valores do reino ganham um lugar decisivo, bem como a partilha da experiência de Jesus, entendida sobretudo como um mistério de amor que produz e suscita vida em abundância. A motivação missionária deixa de ser uma obrigação ou mandato, mas a partilha de um dom que é convocação para o amor. Como bem entenderam os asiáticos, que são mestres do diálogo, a proclamação de Jesus acontece sobretudo no diálogo e nos atos, no exercício do seguimento dos valores por ele anunciado, como a promoção da justiça, da paz, da caridade, da fraternidade, da hospitalidade e da compaixão. Na perspectiva reinocêntrica, a missão da igreja não se traduz pela sede de ampliação de seus domínios ou extensão quantitativa dos cristãos, mas por levar adiante o testemunho vigoroso do reino de Deus que vem,  em diálogo com todos os homens e mulheres generosos, pertencentes ou não às diversas tradições religiosas.

 

3. Desafios para a eclesiologia num mundo religiosamente pluralista

 

O momento presente vem marcado por uma consciência cada vez mais clara do rico patrimônio da diversidade religiosa. Não há como manter sustentando unicamente a plausibidade de um pluralismo de fato e a convicção de que as religiões encontram o seu acabamento ou remate numa dada tradição religiosa. Cresce a percepção de que as religiões não são apenas genuinamente diferentes, mas também autenticamente preciosas. Há que honrar esta alteridade e esta irrevogabilidade das tradições religiosas. E honrar a alteridade é ser capaz de reconhecer o valor e a plausibilidade de um pluralismo religioso de princípio. A diversidade religiosa deve ser reconhecida não como expressão da limitação humana ou fruto de uma realidade conjuntural passageira, mas como traço de valor e riqueza.

 

Como indicou Roger Haight, “o reconhecimento e a avaliação positiva de outros credos religiosos, o estudo de outras religiões e a prática do diálogo inter-religioso têm estimulado a questão profundamente engajadora da teologia cristã das religiões”[33]. A crescente consciência histórica, a agudeza da percepção do mundo da alteridade e o aperfeiçoamento dos instrumentais críticos, têm suscitado problemas intelectuais bem decisivos e uma resistência cada vez mais crescente às formas recorrentes de inteligibilidade das afirmações tradicionais cristãs sobre Jesus Cristo e a igreja. Determinado tipo de linguagem torna-se cada vez mais obtusa ou discrepante com a sensibilidade plural, como é o caso de afirmações universalizantes como: “Jesus Cristo é o único salvador”, “Jesus Cristo é o único mediador entre Deus e a humanidade”, “só a igreja possui a plenitude dos meios de salvação”, “a igreja é o caminho normal de salvação” etc. Apesar dos esforços reconhecidamente positivos presentes entre os teólogos cristãos inclusivistas, fica cada vez mais difícil manter a plausibilidade  de certas construções ou malabarismos teóricos para salvaguardar uma doutrina tradicional que exige um novo salto qualitativo e abertura a novos horizontes. A atual literatura teológica sobre o tema do pluralismo religioso mostra a insuficiência das posições exclusivista e inclusivista e a importância de uma maior ousadia teórica, sem que isto signifique uma rendição ao relativismo. Vale registrar o importante esforço feito pelo teólogo jesuíta Roger Haight, no sentido de propor uma elaboração positiva do pluralismo religioso a partir de uma arejada perspectiva teológica. Este autor defende a tese de que “a normatividade de Jesus não exclui uma avaliação positiva do pluralismo religioso, e os cristãos podem considerar as outras religiões mundiais como verdadeiras, no sentido de que são mediações da salvação de Deus”[34].

 

O pluralismo religioso constitui um desafio fundamental à auto-consciência da igreja. A singularidade eclesial vem mantida como dado irrecusável, assim como o valor do compromisso específico do praticante com a sua fé, mas vem reforçada simultaneamente a consciência da provisoriedade da igreja. A igreja está no tempo, e como tal está sujeita às ambiguidades da história, mas no tempo assume o importante papel de ser o “sinal humano do dom sempre contemporâneo do Espírito”[35]. A igreja e as outras tradições religiosas são “fragmentos” diferenciados que se encontram em processo dinamizador na história. Entre os fragmentos existe uma interdependência e um mútuo enriquecimento que podem ser captados e expressos na dinâmica dialogal, mas não há como prever com clareza e nitidez o horizonte almejado pela “viagem fraterna”. Cada fragmento deve ser respeitado em sua irredutibilidade, carecendo de sentido qualquer tentativa de anexação. Para clarear esta idéia, Christian Duquoc recorre à metáfora da “sinfonia adiada” (symphonie différée). As religiões representam para ele “lugares de múltiplas composições” que expressam a riqueza, originalidade e o enígma de cada fragmento, sendo que o resultado da sinfonia permanece obscuro até uma data desconhecida. Ninguém domina a forma como a execução sinfônica será realizada, nem pode captar o seu conteúdo concreto, a não ser na esperança.[36]

 

Para um dos grandes expoentes da tradição mística sufi, o mestre andaluz Ibn al-Arabî (1165-1240), a multiplicidade dos fragmentos têm suas raízes no mistério de Deus. Não há realidade criada que esteja deslocada do “Hálito” do Compassivo. Cada crença constitui um “vínculo”, um “nó” que revela uma dimensão do misericordioso mistério de Deus[37]. Cada vínculo constitui uma “linguagem de Deus”, uma forma que expressa uma compreensão de seu mistério sempre maior. Em sua visão, a definição de Deus envolve a compreensão de cada uma das formas de suas teofanias na história[38]. Estas teofanias são plurais e multifacetadas, sempre se sucedem e se modificam constantemente. Todas elas manifestam um aspecto do Real ou da Verdade divina, mas nenhuma delas pode arrogar-se esgotar ou expressar a Verdade em sua totalidade. Há para Ibn al-Arabî uma grande riqueza na diferenciação das crenças, e aqueles que desconhecem esta pluralidade acabam condicionando Deus ao seu vínculo particular, deixando de captar dimensões fundamentais de seu mistério. São aqueles que estão presos à “Divindade das convicções dogmáticas e prisioneiros das limitações”, deixando de captar a “Divindade absoluta”, que nada pode conter[39]. 

 

Esta tendência de querer vincular ou atar a Realidade Última (o Real[40]) às formas categoriais pode trazer graves consequências, como apontou o estudioso Michael Sells. É a tendência de afirmar o “deus da crença particular” excluindo ou rebaixando sua manifestação nos outros sistemas de crenças. A realidade de um mundo marcado pelo confronto e violências entre as crenças distintas reside justamente nesta operação de vínculo. Não se pode negar a manifestação verdadeira do Real nos diversos vínculos, mas querer limitar o real a uma forma particular e negar suas outras manifestações ocasiona  a negação do Real mesmo em sua infinitude[41].

 

Esta pistas abertas pela reflexão de Ibn al-Arabî são bem inspiradoras para a abertura da reflexão eclesiológica. São reflexões que reforçam a idéia da singularidade e provisoriedade da igreja, bem como a importância de sua abertura sempre maior ao mistério do Real, ou seja, a “todas as riquezas da sabedoria infinita e multiforme de Deus”[42]. Hoje em dia, a relação entre o cristianismo e as outras religiões deve ser concebida no quadro orgânico da realidade universal, em termos de “interdependência relacional” e de “hospitalidade inter-religiosa”. Há que reconhecer a existência de diferentes e únicas modalidades de encontro da dinâmica humana com o Mistério divino ou a Dimensão Suprema. O novo modo de ser igreja neste tempo plural deve ser necessariamente extroverso e dialógico. A identidade da igreja afirma-se como identidade em processo, como uma “realidade vivente” e disponível aos dons da alteridade. Não há saída para a igreja senão no caminho do diálogo: dialogar para não morrer e não deixar morrer. O diálogo é uma “viagem fraterna” que envolve buscadores de distintas colorações religiosas, desafiados a  ampliar suas crenças, alongar suas cordas, romperem os “nós” que obstruem seus corações e participar de forma partilhada da visão e da experiência do Real, que é a única que salva.



[1] Códice di diritto canonico. 2 ed. Roma: Unione editoi cattolici italiani, 1984, can. 812. Em outro cânon afirma-se com clareza que a autoridade competente  tem o direito de remover os professores que se desviam da “integridade da doutrina”, prevista em sua função de ensino numa universidade católica (can. 810).

[2] Declaração de Colônia. Revista Eclesiástica  Brasileira, v. 49, n. 193, março de 1989, p. 180.

[3] Jacques Dupuis. Il cristianesimo e le religioni. Dallo scontro all´incontro. Brescia: Queriniana, 2001, p. 485. E também p. 484.

[4] Paul Knitter. O cristianismo como religião absoluta. Concilium, v. 156, n. 6, 1980, p. 29.

[5] No original latino a expressão cunhada é subsistere, que para alguns teólogos já traduz uma abertura maior com respeito à visão eclesiológica anteriormente vigente que simplesmente identificava a religião verdadeira com a igreja católica.

[6] Declaração Dignitatis Humanae sobre a liberdade religiosa, n. 1. In: Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997, p. 412.

[7] O grupo de bispos reunidos em torno do Coetus Internationalis Patrum, que envolvia os núcleos mais conservadores do Concílio,  reagiu de forma viva à questão da liberdade religiosa. Cf. Nicla Buonasorte. Tra Roma e Lefebvre. Il tradicionalismo cattolico italiano e il Concilio Vaticano II. Roma: Edizioni Studium, 2003, pp. 68-75.

[8] Congregação para a Doutrina da Fé. Declaração Dominus Iesus. São Paulo: Paulinas, 2000 (cifrada no texto como DI).

[9] Christian Duquoc. “Credo la chiesa”. Precarietà istituzionale e Regno di Dio. Brescia: Queriniana, 2001, p. 190.

[10] Jacques Dupuis. Il cristianesimo e le religioni,  p. 24.

[11] É o caso do teólogo Andrés Torres Queiruga, para o qual todo aquele que responde honestamente a Deus “tem direito de sentir-se único para ele e, nesse sentido, ´eleito`”. Ele assinala que a categoria “eleição” é “perigosa”, pois não só discrimina o amor, como tende reforçar a “soberba e a vontade de poder para utilizá-la contra os outros”: Andrés Torres Queiruga. Um Deus para hoje. São Paulo: Paulus, 1998, p. 35.

[12] Manifesto do I Encontro da Assembléia do Povo de Deus. In: Faustino Teixeira (Org.). O diálogo inter-religioso como afirmação da vida. São Paulo: Paulinas, 1997, p. 149.

[13] Tomás de Aquino. Suma Theol. III, q. 8, a. 3, ad 1. A expressão “ordinantur” (ordenados) aparece,  já antes da Lumen Gentium, na encíclica Mysticis corporis, de Pio XII (1943), para sublinhar que aqueles que não pertencem ao organismo visível da igreja estão ordenados ao corpo místico  do Redentor: DH 3821 (Denzinger-Hunermann).

[14] Claude Geffré. Crer e interpretar. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 159; Jacques Dupuis. Il cristianesimo e le religioni, p. 395.

[15] Jacques Dupuis. Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso. São Paulo: Paulinas, 1999, p. 485; Pontifício Conselho para o Diálogo Inter-religioso. Diálogo e anúncio. Petrópolis: Vozes, 1991, n. 29.

[16] Jacques Dupuis. Rumo a uma teologia..., p. 526. “A apreciação de outras religiões como elementos significativos e positivos na economia do desejo de Deus por salvação introduziu um novo paradigma que é Reino-centrado, orientado para o futuro e trinitário”: FABC. Teses sobre o diálogo inter-religioso (3.2). Sedoc, v. 33, n. 281, jul/ago 2000, p. 59. Ver ainda: Pedro Casaldáliga & José María Vigil. Espiritualidade da libertação. Petrópolis: Vozes, 1993, pp. 107-115.

[17] Karl Rahner. Chiesa e mondo. In: Sacramentum Mundi II. Brescia: Morcelliana, 1974, p. 195.

[18] Há, porém, que reconhecer que a expressão reino de Deus (malkuta jahweh, basileia tou theou) “não é original nem específica de Israel, mas existia em todo o Antigo Oriente. O que Israel fez (...) foi historicizar a noção de Deus-rei segundo sua fé fundamental de que Javé intervém na história”: Jon Sobrino. Jesus, o libertador. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 110.

[19] Christian Duquoc. L´unique Christ. La symphonie différée. Paris: Cerf, 2002, p.123.

[20] Miguel Marcello Quatra. Regno di Dio e missione della chiesa nel contesto asiatico. Uno studio sui documenti della FABC (1970-1995). Dissertatio ad Doctoratum in Facultate Missiologiae Pontificiae Universitatis Gregorianae. Roma, 1998, p. 497. Jacques Dupuis igualmente reconhece  que esta expressão levanta problema no contexto da teologia das religiões e do diálogo inter-religioso: Rumo a uma teologia..., p. 456.

[21] Roger Haight. Jesus símbolo de Deus. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 103.

[22] III Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano. Puebla. A evangelização no presente e no futuro da América Latina. Petrópolis: Vozes, 1979, n. 226 (Documento de Puebla).

[23] Roger Haight. Jesus símbolo de Deus, p. 104; Edward Schillebeeckx. Umanità storia di Dio. Brescia: Queriniana, 1992, p. 152ss.

[24] FABC. Teses sobre o diálogo inte-religioso (6.3). Sedoc, v. 33, n. 281, 2000, p. 67. Ver ainda: FABC. Documenti della chiesa in Asia. Federazione delle Conferenze Episcopali Asiatiche (1970-1995). Bologna: EMI, 1997, p. 412 (Una teologia della missione per l´Asia).

[25] João Paulo II. Sobre a validade permanente do mandato missionário. Petrópolis: Vozes, 1991 (carta encíclica  Redemptoris missio). A encíclica  estará cifrada no texto como RMI.

[26] Miguel Marcello Quatra. Regno di Dio e missione della chiesa..., p. 313.

[27] Uma das expressões mais claras deste temor está no documento do Sínodo dos bispos, por ocasião da Assembléia Especial para a Europa: Testemunhas do Cristo. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 14.

[28] Christian Duquoc. “Credo la chiesa”, p. 24-25.

[29] Ibidem, p. 155. Duquoc chama a atenção para o que considera um grave problema:  a “gestão administrativa da verdade” na igreja,  que vem “subtraída do controle dos fiéis para tornar-se propriedade de burocratas escrupulosos ou ambiciosos”. É esta gestão da verdade  que em sua visão produz o problema do totalitarismo na igreja. Cf. ibidem, p. 119-120.

[30] Ibidem, p. 179.

[31] Miguel Marcello Quatra. Regno di Dio e missione della chiesa..., p. 325 e 313.

[32] Ibidem, p. 520.

[33] Roger Haight. Jesus, símbolo de Deus, p. 370.

[34] Ibidem, p. 472.

[35] Christian Duquoc. “Credo la chiesa”, p. 23.

[36] Christian Duquoc. L´unique Christ, pp. 235-248. Nesta perspectiva aberta por Duquoc, o Espírito ocupa um lugar decisivo, enquanto responsável pela maturação de cada fragmento, no respeito profundo a cada identidade singular. Sua proposta não abole o significado do testemunho da igreja,  mas previne o risco de qualquer pretensão totalitária  de anexação da alteridade. Sob a presença inspiradora do Espírito, a igreja deixa de assumir a problemática vocação de “tudo integrar”, passando o reconhecer que as divisões permaneçam como “lugares paradoxais da esperança”: Ibidem, pp. 240 e 247-248.

[37] Um outro grande místico  da tradição sufi, al-Hallâj (857-909), expressa de forma semelhante o valor da pluralidade das religiões: “descobri que são os inúmeros ramos de uma única Fonte”: Al-Hallâj. Diwan. Genova: Marietti, 1987, p. 84 (diwan 62).

[38] Ibn al-Arabî. Le livre des chatons des sagesses. Tome premier. Beyrouth: Al Bouraq, p. 116 (le chaton d´une sagesse transcendante  dans un verbe de Nûh – Noé). Para Ibn al-Arabî, todas as formas religiosas constituem “linguagem de Deus”: Ibidem, p. 118. Uma boa síntese  da reflexão de Ibn al-Arabî sobre a questão da diversidade das crenças pode ser encontrada na obra de William C. Chittick. Mundos imaginales: Ibn al-Arabî y la diversidad de las creencias. Sevilla: Alquitara, 2003, pp. 253-294 e 321-325.

[39] Ibn al-Arabî. Le livre des chatons des sagesses. Tome second. Beyrouth: Al Bouraq, p. 713 (le chaton d´une sagesse incomparable dans un verbe de Muhammad). Na visão do mestre andaluz, aqueles que conseguem superar o limite das convicções dogmáticas são capazer de se abrir ao mistério absoluto e incondicionado de Deus, sendo capazes de reconhecer  e valorizar sua presença em todas as formas de sua teofania: Ibn al-Arabî. Le livre des chatons des sagesses. Tome premier, pp. 316-317 (le chaton d´une sagesse du coeur dans un verbe de Shu´ayb). Ver ainda no mesmo capítulo da obra os comentários feitos a propósito por Charles-André Gilis: Ibidem, pp. 330-331. 

[40] Não é fácil encontrar uma categoria  analítica  que dê conta do mistério maior e tenha um grau mais significativo de universalidade. Falou-se anteriormente do limite da categoria “Reino”. Determinadas tradições religiosas, como o budismo, preferem “preservar a condição misteriosa do último” e  operar com a negação como cifra da transcendência. Privilegia-se o “silêncio de Deus”. Determinados autores, como J.Hick, têm preferido trabalhar com a categoria do “Real”, pois é um termo que encontra correspondência na linguagem cristã (onde Deus vem definido como “aquele que é” – Ex 3,14), no hinduísmo (o sat do sânscrito) e no islamismo (a expressão árabe al-Haqq, ou também wujûd, que expressam a realidade absoluta e não delimitda de Deus).

[41] Michael Sells. Tres seguidores de la religión del amor: Nizâm, Ibn ´Arabi y Marguerite Porete. In: Pablo Beneito & Lorenzo Piera & Juan José Barcenilla (Eds). Mujeres de luz. Madrid: Trotta, 2001, pp. 141 e 152.

[42] Secretariado para os não-cristãos. A igreja e as outras religiões. São Paulo: Paulinas, 2001, n. 41 (Documento Diálogo e Missão).


(Artigo publicado no livro: L.E.Tomita & J.M.Vigil & M.Barros. Teologia latino-americana pluralista da libertação. São Paulo: Paulinas, 2006, pp. 149-167

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