O pluralismo religioso e a ameaça fundamentalista
Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF
“Levaram o meu Senhor
e não sei onde o colocaram!”
(Jo 20,13)
Resumo:
Não há como negar no tempo atual a nova vitalidade da religião e a presença crescente da diversidade religiosa. A realidade do pluralismo religioso pode possibilitar tanto uma nova conversação dialogal, como também um acirramento das “heranças confessionais”. O pluralismo religioso tende a acentuar dissonâncias cognitivas que impulsionam dinâmicas fundamentalistas ou integristas em vários segmentos religiosos . Mas permanece o desafio essencial da aposta dialogal, contra teses que afirmam a presença ameaçadora de um “choque de civilizações”.
Abstract:
There is no way to deny the new vitality of religion and the growing presence of religious diversity nowadays. The reality of religous pluralism can lead to either a new dialogical conversation, or an incitement of “confessional heritages”. Religious pluralism tends to accentuate cognitive dissonances that stimulate fundamentalist or integrist dynamics in many religious segments. But the essential challenge of the dialogic wager remains, against propositions that affirm the threatening presence of a “shock of civilizations”.
Introdução
Apesar do prognóstico moderno em favor das teses da secularização, o que se verifica hoje em dia é uma presença viva do fenômeno religioso e uma nova vitalidade da religião. Como sublinha Peter Berger, “não há razão para pensar que o mundo do século XXI será menos religioso do que o mundo atual” . Esta revitalização religiosa ou retomada do impulso religioso revela a existência de um problema agudo no mundo atual. Na base desta nova motivação religiosa encontra-se o estado de inquietação que acompanha a premência de riscos globais, sem precedentes na história da humanidade. Segundo Gianni Vattimo, esta retomada do interesse religioso revela sobretudo a presença de um “limite” da potencialidade humana e da aparente insolubilidade de seu instrumental técnico na resolução de muitos problemas que afligem a humanidade. Difunde-se o medo e a ansiedade diante das ameaças diversificadas que pesam sobre o futuro do planeta, mas também a insegurança face à carência de horizontes e à perda de sentido da existência. Há uma relação entre este novo impulso religioso e a recusa de uma modernização que vem abafando ou destruindo as “raízes autênticas da existência” .
A realidade do pluralismo religioso faz parte ineludível do cenário do século XXI. Há uma presença crescente da diversidade religiosa no panorama mundial. Surgem por todo canto novas religiosidades e diversas tradições religiosas dão mostras de grande vitalidade. Trata-se de uma afirmação da alteridade que nem sempre vem acolhida na sua positividade. Há que sublinhar também a presença tensa de valores e crenças em viva competitividade, onde se lança mão de vários estratagemas para garantir a plausibilidade e expansão de uma internalização religiosa sempre ameaçada. Se de um lado o pluralismo pode significar a abertura a uma nova conversação dialogal e um certo grau de tolerância, ele tende também a acentuar as “heranças confessionais” e as dissonâncias cognitivas . O fato é que o pluralismo religioso impõe-se hoje como um componente “intransponível”, que desafia todas as religiões ao exercício fundamental do diálogo. As opções hoje são muito claras, como mostrou Hans Küng:
ou a rivalidade entre as religiões, o choque de culturas, a guerra de nações – ou diálogo das culturas e paz entre as religiões, como condição para a paz entre as nações! Em face das mortais ameaças à humanidade como um todo, não deveríamos antes demolir pedra por pedra os muros do preconceito, e com isso construir pontes de diálogo (…)?
1. A religião na sociedade pós-tradicional
No contexto da influência transformadora da globalização verifica-se a emergência de uma “ordem social pós-tradicional”. Para Anthony Giddens, esta nova ordem não significa o desaparecimento da tradição, mas a mudança de seu status. No novo momento da globalização intensificadora, as tradições “têm de explicar-se, têm de tornar-se abertas à interrogação ou ao discurso” . Na origem latina da palavra tradição, tradere, vigora a idéia de transmissão de algo a alguém. A tradição é portadora de uma memória, de um código de sentido e geradora de uma continuidade. O seu papel fundamental é “atualizar o passado no presente, de restituir, no ‘mundo vivido’ de um grupo humano ou de uma sociedade, a memória viva de uma fundação que a faz existir no presente” . Enquanto na sociedade pré-moderna a tradição possibilitava a continuidade de uma memória, no tempo moderno esta situação se altera. Não mais se consegue garantir com a regularidade anterior a manutenção individual de uma continuidade da memória coletiva. Instaura-se, assim, uma “crise de transmissão” ou de “elaboração da cadeia da memória”. Isto não ocorre sem problemas. Com a perda de referência do código de sentido garantido pela tradição, inúmeras pessoas passam a viver uma situação de incerteza estrutural.
É a mudança no desenho da tradição na sociedade pós-tradicional que provoca tantas dificuldades em setores mais conservadores. Há uma grande dificuldade em compreender que o elemento de continuidade entre o passado e o presente deve ser sempre dinamizado pela incorporação das inovações e reinterpretações em função dos dados do presente. Não ocorre uma ruptura da preservação do código de sentido anterior, mas há uma mudança no mesmo. Entender a tradição de forma estática é esvaziá-la de seu conteúdo de reinvenção permanente. Com a mudança do papel da tradição, uma nova dinâmica social vem introduzida, e com ela, a exigência de um modo de vida mais aberto e reflexivo . No mundo cosmopolita e plural torna-se muito difícil a preservação de identidades isoladas e estanques. Torna-se inevitável o contato e a relação de umas pessoas com outras, a percepção da diversidade plural de formas de pensamento e ação e o imperativo da reflexividade.
Esta nova situação terá um influxo importante no campo religioso. Com a crescente mobilidade, verifica-se o contato entre pessoas de crenças diferentes. Instaura-se, de fato, uma realidade de pluralismo religioso mais imediata, mas não menos tensa: “as diferenças de crenças, às vezes muito radicais, são mais diretamente visíveis, com frequência crescente, e mais diretamente encontradas: prontas para a suspeita, a preocupação, a repugnância e a altercação” . Esta mesma diferença pode, entretanto, propiciar um espaço para a afirmação de um novo entendimento e solidariedade mútuos. Na base de muitos dos conflitos religiosos em curso hoje na humanidade encontra-se a busca ou construção da identidade. Enquanto no passado esta identidade era mais garantida e unificada, ela passa no mundo moderno “para um regime plural” , mas diante de tal regime o sujeito fica dividido entre duas possibilidades: o diálogo cosmopolita ou a redução fundamentalista. Trata-se de duas possibilidades concretas de reagir ao desafio da globalização. A ameça da segunda possibilidade está muito patente no momento atual, ou seja, da “recusa do diálogo num mundo cujo ritmo e continuidade dependem dele” .
2. A dissonância cognitiva do Pluralismo
A afirmação do pluralismo na modernidade não ocorre sem provocar reações dissonantes. Na visão de Berger e Luckmann, a presença do pluralismo na modernidade vem acompanhada de “crises de sentido” tanto em âmbito mais objetivo como no domínio da vida individual. O pluralismo causa “problemas” na medida em que ele desestabiliza “as auto-evidências das ordens de sentido e de valor que orientam as ações e sustentam a identidade” . Nenhum conhecimento ou interpretação permanecem ilesos diante da provocação plural. Perspectiva alguma consegue firmar-se como única e inquestionável, mas permanece sempre aberta à apropriação de outras possibilidades. E é justamente isto que provoca a insegurança em muitos. Estes sentem-se despreparados e desprotegidos num mundo “cheio de possibilidades de interpretações” . Ao acentuar dissonâncias cognitivas, o pluralismo provoca em indivíduos ou grupos um sentimento de insegurança significativamente ameaçador para a plausibilidade de sua inserção no mundo. Como sublinha Peter Berger,
o pluralismo cria uma condição de incerteza permanente com respeito ao que se deveria crer e ao modo como se deveria viver; mas a mente humana abomina a incerteza, sobretudo no que diz respeito ao que se conta na vida. Quando o relativismo alcança certa intensidade, o absolutismo volta a exercitar um grande fascínio .
Ao sentimento de insegurança responde-se com uma redução cognitiva defensiva ou ofensiva. Diante do risco dissolvedor da dúvida, reage-se com a afirmação ortodoxa. No primeiro caso, ocorre um fechamento comunitário, é a estratégia do gheto. No segundo caso, mais ameaçador, adota-se a estratégia da cruzada, ou seja, o caminho da reconquista da sociedade em nome da tradição religiosa particular . Todo fundamentalismo vem circundado de uma potencialidade de violência. Há na sua base uma “espiral degenerada de comunicação” e uma recusa explícita a qualquer potenciamento dialogal. O que “originalmente é apenas um isolacionismo, ou talvez a insistência na pureza de uma tradição local, pode se essa for a tendência das circunstâncias, transformar-se em um ciclo vicioso de animosidade e rancor” .
3. A Reação fundamentalista
O fundamentalismo é um fenômeno marcadamente moderno, expressão de uma reação às influências da globalização e do pluralismo.
Os projetos restauradores de reconstituição de um `mundo curado` incluem quase sempre a supressão ou, ao menos, a limitação do pluralismo – e com boas razões: o pluralismo coloca sempre alternativas diante dos olhos, as alternativas obrigam a refletir; a reflexão solapa o fondamento de todas as versões de um ´mundo curado`- ou seja, de sua auto-evidência .
O fenômeno do fundamentalismo, como bem acentuou Giddens, deve ser analisado “contra o pano de fundo do surgimento da sociedade pós-tradicional” . Ele implica, de fato, a realidade de uma “tradição sitiada”. Diante da ameaça globalizadora, ele reage com a afirmação tradicional da tradição . Rejeita-se todo e qualquer engajamento dialogal com a modernidade, bem como qualquer possibilidade de reflexividade da tradição. Na raiz do fundamentalismo há o sentimento de insegurança, desorientação ou anomia resultantes de uma dinâmica modernizadora e a busca desenfreada por um fundamento seguro. Torna-se intolerável para os fundamentalistas a possibilidade de esvaecimento de seus valores tradicionais. Reagem ao abalo provocado pelas crises do mundo moderno em suas comunidades de fé e em suas convicções básicas. Como medidas de contra-ataque, recusam todos os vetores associados à lógica moderna: a hermenêutica, o pluralismo, o relativismo, a evolução e o desenvolvimento ; e reforçam os canais de solidariedade grupal. Como assinala Sérgio Paulo Rouanet,
com sua capacidade de recriar nexos de solidariedade grupal, de dotar a vida de sentido e finalidade, de inventar um passado mítico em que não existiam as tensões e as incertezas do mundo contemporâneo, de alimentar a esperança numa vida futura que possa compensar todas as humilhações do presente e de fazer da religião uma trincheira de resistência cultural, capaz de enfrentar as pressões niveladoras provocadas pela globalização, o fundamentalismo parece constituir uma resposta para todas as frustrações da vida moderna .
O fundamentalismo é uma realidade recorrente nas religiões nos tempos modernos, surgindo sempre como uma reação aos sinais dos tempos. Com respeito ao contexto religioso, este termo foi aplicado pela primeira vez por volta da passagem do século XIX para o século XX, referindo-se a um movimento teológico de origem protestante. Este movimento nasce nos Estados Unidos como reação ao modernismo e liberalismo teológico, e assume como bandeira as idéias de inerrância bíblica, de escatologia milenista e anti-ecumenismo .
Sobretudo após os episódios violentos de 11 de setembro de 2001, a questão do fundamentalismo foi muito enfatizada pelos diversos meios de comunicação. Há uma tendência na mídia ocidental, fortalecida após esta data, de identificar e/ou reduzir o fenômeno do fundamentalismo à questão islâmica. Trata-se na realidade de um grande equívoco. Como mostrou Karen Armstrong, “o fundamentalismo é um fato global e em toda religião importante tem surgido como resposta aos problemas de nossa modernidade” . Na verdade, a tendência fundamentalista irá marcar presença no Islã bem mais tarde do que a verificada nas outras duas grandes tradições monoteístas, ou seja, o judaísmo e o cristianismo. Esta tendência irá ocorrer no Islã sobretudo por volta dos anos de 1960 e 1970, em reação ao enraizamento da cultura moderna em solo muçulmano .
Há que sublinhar a questão específica da terminologia. O termo fundamentalismo está intimamente ligado à sua origem no contexto cristão, assumindo uma conotação bem determinada. Afirma-se como uma tendência do conservadorismo protestante americano, tendo como base fundamental uma interpretação literalista e estreita da Bíblia. Para evitar distorções problemáticas, a aplicação deste termo a outras designações religiosas deve ser realizada de forma mais matizada. Alguns autores preferem utilizar outras designações quando tratam do fenômeno análogo que ocorre em outras tradições: integrismo, conservadorismo, estremismo religioso etc. O fenômeno atual do fundamentalismo marca presença em várias tradições religiosas, envolvendo também aquelas caracterizadas por perspectiva inclusiva, como o hinduísmo e o budismo.
No âmbito do judaísmo, a resposta aos desafios da modernidade ocorreu seguindo trajetórias diferentes. Ao lado de posições reformistas e abertas ao processo de assimilação da dinâmica moderna, houve igualmente o reforço de tendências ortodoxas, rigidamente críticas a toda e qualquer contaminaçao cognitiva provinda dos ideais iluministas. Há que reconhecer a importância do lugar concedido à interpretação no judaísmo. Trata-se de um povo com “vocação hermenêutica”. Na linha do espírito de abertura do Talmude, Deus não pode ser encerrado numa perspectiva petrificada, pois é um Deus infinito. Resguarda-se um espaço livre para a interpretação e o horizonte aberto para a apreensão de novos sentidos. Segundo uma importante passagem do Talmude: “Palavras de uns e de outros, palavras do Deus vivo” . Este espírito de abertura não encontrou, porém, espaço em formas particulares do Judaísmo Ortodoxo atualmente florescente. Verifica-se nestes casos pontos de concordância bem precisos com a nebulosa fundamentalista. Deve-se sublinhar, em particular, a “concepção segregacionisa” que toma forma nestas expressões concretas do judaísmo, marcada por traços bem característicos, sobretudo a rejeição de todo intercâmbio com o mundo circunstante e a concepção exclusivista da verdade. Afirmam-se no atual cenário judaico não apenas os núcleos ultra-ortodoxos, mas também os grupos sionistas religiosos, que vem marcando presença de forma articulada desde 1902. Como indica Bernard Sorj, “o sionismo, primeiro como movimento social e depois como ideologia de um Estado que devia criar uma nova cultura homogênea, participou dessa tendência excludente. Centrado no dogma de que a diáspora era a origem de todos os males do povo judeu, o sionismo desvalorizava todas as outras expressões do judaísmo moderno” . O que se verifica atualmente em Israel é uma expressão do triunfo político do sionismo, cujos resultados estão bem visíveis no atual conflito com os palestinos. Os desdobramentos conflitivos desta realidade são questionados por José Saramago em impressionante depoimento:
É nisto que consiste, desde 1948, com ligeiras variantes meramente táticas, a estratégia política israelita. Intoxicados mentalmente pela idéia messiânica de um Grande Israel que realize finalmente os sonhos expansionistas do sionismo mais radical; contaminados pela monstruosa e enraizada ‘certeza’ de que neste catastrófico e absurdo mundo existe um povo eleito por Deus e que, portanto, estão automaticamente justificadas e autorizadas, em nome também dos horrores passados e dos medos de hoje, todas as ações próprias resultantes de um racismo obsessivo, psicológica e patologicamente exclusivista .
Com respeito ao catolicismo, o traço do fundamentalismo estará mais evidenciado nos procedimentos modernos com os quais a tradição eclesiástica busca resguardar as decisões doutrinais obrigatórias. Enquanto os protestantes sublinham a infalibilidade da Escritura , os católicos acentuarão a infalibilidade do magistério. Uma dinâmica mais conservadora diante dos tempos modernos irá paulatinamente ganhando espaço no campo católico com o tridentinismo. Trata-se aqui da afirmação de um sistema e de um espírito, constituídos a partir do Concílio de Trento (1545-1563), que envolverão diversos setores do mundo católico: teologia, ética, prática religiosa, liturgia, organização eclesiástica etc. Este tridentinismo irá favorecer uma representação particular do catolicismo romano, reticente e crítico face aos desafios da modernidade. Uma expressão viva de tal representação irá ocorrer por ocasião da “controvérsia modernista”, no início do século XX. Em reação ao espírito do tempo, o Papa Pio X lançará em 1907 a encíclica Pascendi, que em nome da infalibilidade do magistério, condenará em sua globalidade os “erros” do modernismo. Instaura-se, assim, um elemento singular no campo católico, caracterizado pelo zelo doutrinal e pela perseguição aos que se desviam do “caminho reto”. Embora tais forças conservadoras encontraram um importante contra-ponto no Concílio Vaticano II (1962-1965) e nos movimentos eclesiais renovadores que o anteciparam e sucederam, elas voltarão a exercer o seu influxo a partir da década de 80, durante o pontificado de João Paulo II. Na atual conjuntura eclesiástica, estão presentes e ativas forças conservadoras e articuladas em favor de uma restauração, entendida como a busca de um novo equilíbrio, depois dos “exageros” da abertura conciliar .
A afirmação fundamentalista no Islã ocorrerá sobretudo como uma reação ao laicismo coercitivo que acompanha a sedução modernizadora. Nasce como fruto de uma insegurança e apreensão face à dinâmica secularizadora, ao temor da perda da tradição e da exclusão do divino da vida pública. Depois de viver um período de grande floração e expansão, cujo apogeu encontra-se no século XIII , o Islã viverá um momento de crise. Este período coincidirá com a dinâmica de afirmação colonialista européia. O desgaste sofrido pode ser atribuído tanto ao processo de devastação resultante das várias ondas de invasão dos mongóis, como ao declínio econômico e político-militar dos países muçulmanos.
Com a crise de plausibilidade instaurada, haverá espaço para um novo rearranjo e interrogações alternativas sobre o destino do Islã. O contato com a Europa colonialista possibilitou um processo de abertura ao modernismo. A busca de renovação da comunidade (umma) muçulmana seguirá o modelo ocidental: o novo imperativo será de reforma (islâh), de busca do novo e de esforço interpretativo (ijtihâd). Um dos grandes inspiradoras para tal mudança foi Jamâl ad-din al-Afghânî (1839-1897), que atuou no Cairo em favor de uma “reforma islâmica” e um retorno às fontes da Escritura islâmica, libertada da sufocante tradição legal. Deixou uma leva de discípulos, entre os quais Muhammad ‘Abduh (1849-1905), reconhecido como o “verdadeiro organizador do movimento modernista (salafiyya)”. Os dois propunham a busca de uma nova e revitalizadora leitura do Corão. O processo de secularização ganhou, porém, um acento particular e radicalizado em determinados países muçulmanos como a Turquia, Egito e Irã. No caso da Turquia, o processo foi bem agressivo, e ocorreu durante o governo de Ataturk (1881-1938), um “modernista radical” que em 1924 abole o califado otomano, instaura uma república nacionalista turca e dá início a um processo de “ocidentalização do islamismo” . Dentre suas iniciativas, pode-se mencionar a abolição das ordens sufis, a exclusão do árabe e persa dos programas de ensino, o fechamento das escolas de ensinamento do Corão, o cancelamento da idéia do Islã como religião de estado na constituição, a obrigação do uso de trajes ocidentais e a proibição do véu para as mulheres . Um similar processo de modernização ocorre no Egito e no Irã. Neste último país, o programa de modernização levado a efeito pelo Reza Khan Pahlawi (Reza Shah) foi igualmente implacável.
As reações ao processo secularizador vieram em seguida. O primeiro movimento fundamentalista no Islã, os Irmãos Muçulmanos, nasce no Egito em 1928, como reação crítica à dinâmica modernizadora e secularizadora em curso, acusada de ocasionar a desestruturação da comunidade islâmica. Lançam um slogan que estará sempre presente nas correntes islamistas: “A nossa Constituição é o Corão” . A mesma reação ao laicismo usurpador do Ocidente presidiu a formação do movimento Jamaat-i-Islami em 1948 no Paquistão. O seu grande ideólogo foi Mawdudi (1903-1979), que defende um novo caminho de islamização do Estado, que possibilite uma soberania exercida em nome de Allah. Aos cinco tradicionais pilares do Islã, ele acrescentará um sexto, a jihad, entendida como luta contra as forças que provocam o aniquilamente cultural e religioso do Islã. A influência deste ideólogo se fará sentir em outro grande nome do fundamentalismo islâmico, Sayyid Qutb (1906-1966). Este reformador exercerá uma forte oposição ao laicismo e “paganismo” de al-Nasser no Egito, em nome da criação de um verdadeiro Estado muçulmano. Na base do fundamentalismo sunita está a influência da ideologia de Qutb, que pontuou igualmente a afirmação do poder dos talibãs em 1994 no Afeganistão.
Para estes e tantos outros movimentos fundamentalistas que estarão presentes no campo islâmico, sobretudo a partir dos anos 70, a solução para os problemas políticos dos muçulmanos não pode encontrar sua resposta em valores exógenos, mas na afirmação efetiva de um Estado islâmico que aplique concretamente a lei muçulmana (shari’a). A revolução iraniana de 1978-1979 foi um divisor de águas importante, e a partir dela a ofensiva fundamentalista ganhará expressão mais decisiva. Ela não surgiu, porém, do nada, mas foi longamente gestada numa contra cultura religiosa. O sucesso e prestígio deste empreendimento revolucionário acabaram alimentando uma série de fenômenos aproximativos seja nas zonas diretamente marcadas pelo xiismo iraniano, como o Líbano e os Estados do Golfo, bem como em outras partes.
Não há como desconhecer a presença do fenômeno fundamentalista em curso no Islã. Mas seria incorreto e equivocado concluir que todo o Islã é fundamentalista, como afirmou o historiador inglês Paul Johnson, em entrevista de 2001 . Na verdade, “a atual explosão integralista, nas suas várias formas e facetas, significa certamente um fenômeno profundo e preocupante mas claramente minoritário (e se espera não duradouro) da secular tensão entre tradição e modernidade, entre sabedoria divina e sabedoria humana que caracteriza o Islã desde suas origens” As formas mais “explosivas” e contundentes dos movimentos islamistas acabam prevalecendo e abafando a realidade mais ampla e complexa do fenômeno do Islã. A exigência de uma relativização não invalida a importância de um trabalho crítico e científico que deve ser feito em favor da compreensão da tradição islâmica para além das transgressões que ela sofreu ao longo da história . Não se pode, entretanto deixar de acentuar a difícil e dolorosa situação que vem provocando a insurgência e afirmação fundamentalista no Islã. Embora seja difícil diagnosticar com precisão as causas deste fundamentalismo, não há como negar sua realidade de “efeito objetivo de fatores cuja eliminação requer nada menos que uma correção de rumos na estrutura de nossa modernidade”
4. O desafio da acolhida do pluralismo
Para quem quer que esteja acompanhando a situação mundial, não há dúvida sobre a realidade tensa, delicada e ameaçadora que paira como um horizonte sombrio sobre o destino da humanidade. A imagem que hoje vigora, como acentuou Cliffort Geertz, não é a da celebração e solidariedade inter-cultural, mas de “um mundo repleto de pessoas que glorificam alegremente seus heróis e diabolizam seus inimigos” . O etnocentrismo ganha hoje uma fisionomia problemática, lançando uns povos contra os outros e afirmando a dinâmica de uma “incomunicabilidade” letal. Nesta dinâmica de impermeabilidade aos valores da alteridade, torna-se mais que urgente o desafio do diálogo e da abertura ao pluralismo religioso.
Os acontecimentos de setembro de 2001 acabaram provocando o acirramento de ânimos em favor de teses como a do “choque de civilizações”. Falou-se em cruzada, em luta do bem contra o mal, da liberdade contra o medo etc. Vem ganhando cada vez mais cidadania um pensamento e prática agressivos e violentos contra o outro, motivados pelo mote da caça aos terroristas. A reformução da ideologia da guerra fria, agora temperada com a tensão paradigmática do Ocidente contra o resto do mundo, ganha terreno em corações e mentes. A afirmação das teses que buscam opor as civilizações acaba favorecendo a hostilidade e impedindo o fomento de melhor compreensão do momento atual. Defender posturas que limitam o lugar e o sentido das identidades culturais, é ocultar um dado fundamental da realidade atual: a passagem da identidade no mundo moderno para um “regime plural”. Não se pode mais limitar o alcance das identidades, e o sentido de sua pertença. A defesa de um “choque de civilizações” acaba por revelar, na realidade, um “choque de ignorâncias”, ou seja, querer tranformar ‘civilizações’ e ‘identidades’ em algo que elas não são, entidades estanques e fechadas, destituídas das múltiplas correntes e contracorrentes que animam a história humana e que, ao longo dos séculos, tornaram possível que essa história não apenas contenha guerras de religião e conquista imperial, mas que também seja feita de intercâmbios, fertilizações cruzadas e partilhas .
Embora a perspectiva de paz no século que se inicia seja ainda bem remota, permanece o desafio essencial da abertura ao outro, da mútua compreensão e do recíproco enriquecimento. O novo século começa marcado pela presença inquietante e desafiadora do outro, do diferente, daquele que não pode ser negado em sua peculiaridade; do outro como realidade irreversível e irrevogável. Como sublinha Sanchis, “o mundo mexeu: deslocamentos, divisões, expansões. Encontros, encaixes, recobrimentos” . A globalização encurtou o mundo, mas instaurou o impacto da presença da diversidade. Esta presença tão numerosa de outros tão diversos é um dado característico deste século XXI. Diante desta realidade, “o que é intolerável não é a diferença, mas a indiferença”, ou seja a incapacidade de reagir ao “desgaste da compaixão” que cresce a cada momento. O grande perigo que ronda o tempo atual é o da afirmação dogmática de comunidades humanas que funcionam como “mônadas semânticas, quase sem janelas”, especializadas em cultivar a arte do solilóquio e da surdez. As religiões podem estar envolvidas neste círculo isolacionista e imobilizadas pela incomunicabilidade dogmática, ou pela heresia maior do descompromisso com o outro, mas podem exercer sua influência em favor de um encontro renovador e enriquecedor, direcionadas à solidariedade mútua, à paz e o bem da humanidade. É nesta segunda direção que se encontra a aposta dialogal, e a possibilidade única das religiões poderem adquirir sua credibilidade: dialogar para não morrer.
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