segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Neblinas na igreja católica

 Neblinas na igreja católica

 

Faustino Teixeira

 

 

Avaliando com um pouco mais de calma a conjuntura do catolicismo romano nesse difícil momento histórico, confesso que sou tomado por pasmo e preocupação. 

 

Passado esse período que se seguiu à morte do papa Ratzinger, e lendo diversos artigos que foram publicados nesse período, dou-me conta que estamos vivendo uma crise muito grave, que envolve o horizonte de um projeto eclesial, tentado levar adiante pelo papa Francisco.

 

Muitas coisas foram ditas sobre o Ratzinger, algumas interessantes e válidas. Impressionou-me o fato de em muitos artigos que li, situou-se o gesto de renúncia dele no pontificado como o grande legado que ele deixa para o mundo. A meu ver, concordando com um amigo com que acabo de conversar, o que ele deixa como legado, de fato, é ter sido um inquisidor, que puniu gravemente um enorme contingente de teólogos ou pastoralistas. Esse é o legado que fica para mim.

 

O que percebi em artigos nacionais e estrangeiros, em análises de teólogos, pastoralistas, bispos, cardeais e vaticanistas, é que a sintonia com o projeto-Francisco está muito frágil. 

 

O clima deixado pelos "lobos", para utilizar uma expressão de Marco Politi, ainda é muito firme e contagioso. As malhas de um catolicismo conservador estão bem asseguradas, depois de quatro décadas dos pontificados de Wojtilla e Ratzinger.

Uma boa parte do clero, um número impressionante de novos padres, e segmentos significativos de leigos, ficam bem mais confortados num horizonte eclesiástico tradicional. Basta ver os alunos nos institutos teológicos, de toda parte, e seu enraizamento num catolicismo conservador. 

 

Os artigos que foram feitos depois da morte de Ratzinger mostram claramente o "fio delicado" que envolve um compromisso mais efetivo com a dinâmica evangelizadora de Francisco. 

 

Confesso a vocês que ando meio sem esperança numa renovação eclesial. Aquele nosso precioso compromisso com uma Igreja que a gente acredita, vai se pulverizando num terreno de escândalos abafados e resistências cada vez mais precisas contra um catolicismo libertador. 

 

A utilização indevida do nome de Deus por católicos tradicionalistas, empenhados na defesa do governo Bolsonaro, causou-me indignação e dor. A estética das arminhas em ambientes eclesiásticos foi uma vida demonstração do encaminhamento desejado por muitos. Os episódios recentes em Brasília foram expressão de sua continuidade...

 

Essa lamentável situação ocorre também no cenário de igrejas irmãs, como a luterana, que igualmente se viu cindida por posicionamentos adversos com respeito ao apoio a Bolsonaro. A recente e contundente carta aberta de Walter Altmann, um de nossos melhores teólogos no Brasil, dirigida a um pastor bolsonarista é exemplo vivo do que está ocorrendo também em âmbito evangélico.

 

O que mais me irrita, confesso, é o silêncio que se impõe, com raras e nobres exceções, como no caso de Dom Moll e alguns outros, visualizando um costume bem naturalizado entre católicos de preferir o silêncio ao sadio profetismo.

Não são poucos os amigos, e gente maravilhosa, que me procuram e manifestam sua descrença no catolicismo que está aí; o seu cansaço com o clericalismo e a revolta com tudo o que vem sendo abafado num mundo que parece estar em "decomposição". Talvez essa seja uma palavra forte, mas é a que vem em minha mente, com tristeza. 

 

Em seu recente livro, "Vers l' implosion" (2022), a socióloga francesa, Danielle Hervieu-Léger - entrevistada por Jean-Louis Schlegel -, trata de uma série de questões que nos preocupam: os vacilos presentes numa igreja em processo de "implosão"; de um catolicismo exculturado; de uma igreja bloqueada; de um clericalismo crescente, que ela identifica como auto-imune. 

 

Ao final lança algumas perspectivas de futuro, mas bem tímidas... Grande questão levantada por ela ao final do livro: Como permanecer católico. Avança na ideia, quem sabe, de um catolicismo de diáspora e dispersão.

 

Cito um trecho do livro: "A crise de abusos sexuais e espirituais revelados depois de cerca trinta anos, faz vacilar a Igreja Católica. A crise vem do interior do catolicismo, e mesmo de seus ´melhores servidores`, padres ou leigos, mas também porque ela é universal e sistêmica. Muito debilitada por uma intensa secularização em razão das mudanças societárias da segunda metade do século XX. Por falta de reformas consequentes, a Igreja aparece cada vez mais expulsa da cultura comum, e deslegitimizada".

 

Lendo com calma o artigo de Marco Politi, um dos mais lúcidos vaticanistas, sobre a "guerra dentro da Igreja" (Il Fatto Quotidiano), minhas preocupações acumulam-se mais. 

 

Ele fala da "frente conservadora-tradicionalista" que vem se mobilizando contra Francisco, e que agora com a morte do bispo emérito de Roma tende a se agravar: "Petições foram lançadas contra Francisco, cardeais de alto nível questionaram publicamente suas posições teológicas, conferências convocadas a poucos passos do Vaticano falaram de suas ´teses heréticas`, um arcebispo-núncio exigiu perante a opinião pública mundial que Bergoglio deixou o papal trono!". 

 

Falando do governo do papa anterior, Politi sublinha que o pontífice alemão foi um "incansável produtor de uma guerra cultural contra a modernidade em nome de ´princípios inegociáveis`". 

 

E agora, num cenário modificado, depois de sua morte, o que estamos presenciando, diz Politi, são inúmeros ataques doutrinários contra Francisco, movidos por grupos de cardeais e bispos em manobras no mínimo muito estranhas. O fato mais recente, também lamentável, foi a publicação do livro de Ganswein, fiel escudeiro de Ratzinger.

 

O grosso da batalha, continua Politi, está por vir, com o Sínodo Mundial a ser realizado em Roma em 2024. Ali estará em jogo, também não tenho dúvida, "o próximo conclave que a feroz frente conservadora - fortalecida pelos temores dos moderados - pretende predeterminar."

 

Há que ter esperança, não tenho dúvida, mas está difícil!!!

 

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Estar simplesmente no tempo

 Estar simplesmente no tempo


Faustino Teixeira

 

Muito interessante esse estudo que venho fazendo visando um artigo que deve ser publicado em breve numa revista teológica. Como não sou egoísta, vou partilhando aos poucos alguns dados colhidos e alguns insights que vou tendo ao longo desse trabalho, que já perdura algum tempo. São inúmeros autores que vêm me alimentando nesse tempo de reflexão novidadeira.

 

Um incentivo maior veio com o papa Francisco, com sua belíssima encíclica Laudato si, dedicada ao cuidado da casa comum. Ele já inicia a sua reflexão dizendo que nós todos somos TERRA, e que o nosso corpo vem modelado por elementos do planeta (LS 2). Logo em seguida ele sublinha que nós, humanos, estamos todos inter-relacionados com os outros seres: humanos e não humanos. Taí a pista que precisava para o meu trabalho. 

 

Lendo aqui o recente livro de Donna Haraway, sobre o encontro das espécies, sublinho uma expressão que ela coloca logo no início do livro: “Eu sou uma criatura da lama, não do céu”. Algo assim, sensacional, que indica com toda a radicalidade a nossa inserção no tempo. E temos, com Rilke, que dizer continuamente: “Estar aqui é um esplendor”.

 

Mas voltando a Haraway, ela diz ainda:

 

“Adoro o fato de que genomas humanos sejam encontrados em apenas cerca de 10% de todas as células que ocupam o espaço mundano que chamo de meu corpo; os outros 90% das células são preenchidos pelos genomas de bactérias, fungos, protistas e que tais, alguns dos quais tocam uma sinfonia necessária para que eu esteja viva e outros que estão de carona e causam a mim, a nós, nenhum dano (...). Adoro o fato de que, quando ´eu` morrer , todos esses simbiontes benignos e perigosos tomarão e usarão o que restar do ´meu` corpo, nem que seja só por um tempo, já que ´nós` somos necessários uns aos outros em tempo real.”

 

O biólogo Stefano Mancuso, também parte de minha biografia, confirma esse dado importante: que nós, os animais, somos portadores de apenas 0,3% da biomassa, enquanto 99,7% estão com os vegetais e os outros seres invisíveis que não se inserem nem no reino vegetal ou animal: os fungos e bactérias. 

 

As reflexões de Haraway, também sublinhadas pelo filósofo italiano Emanuele Coccia, nos ajudam a perceber com mais clareza que a vida é movimento e continuidade, ou como diz Jung, a vida é perenidade e eterna mudança. O nosso nascimento não traduz um início, mas uma continuidade. Cada nascimento, diz Coccia, é “uma penetração em um corpo estranho”, é a tradução patente que somos “um pedaço desse mundo”, que se revelou agora com mais uma transformação. Assim também a morte, que é simplesmente “o limiar de uma metamorfose”.

 

Seguindo ainda Coccia, nos damos conta de que “o destino de todos os seres vivos é tornar-se o corpo de uma outra espécie”, e que “o ´cadáver` é vida e refeição de outros seres vivos. Toda morte é uma continuação da vida sob outros rostos”. 

 

Na verdade, o nosso destino é “ser comido”, e não há nisso nenhuma humilhação, diz Coccia. Estamos num cenário bonito, da teia da vida, e nossa morte é um momento sublime de transformação no nosso modo de ser. Somos lama, viemos da lama, e tornaremos a lama, enredando uma dinâmica de compostagem criadora de vida.

 

 

 

domingo, 8 de janeiro de 2023

A eternidade no tempo

 A eternidade no tempo

 

Essa reflexão nasce de um debate on-line ocorrido no Grupo de Emaús, em janeiro de 2022. Tudo ocorreu depois da morte do papa Ratzinger.  O debate foi rico e diversificado. Aqui retoma a discussão: 


Voltando ainda ao nosso debate, que já daria um livro, queria buscar trazer alguns novos elementos. Entendo perfeitamente a dificuldade apresentada por alguns, entre os quais, o querido Celso Carias, sobre essa questão do juízo final, do céu, purgatório, ou inferno. Ocorre que depois de minhas leituras sobre o “mundo invisível dos fungos” e da teia vital que une todos os seres num laço de profunda unidade, mudanças substantivas ocorreram em minha teologia. Pude também tentar aprofundar com mais calma a reflexão de Francisco na Laudato si, quando fala na interligação entre as coisas, mas sobretudo quando indica logo no início da encíclica que todos nós somos terra, e que nosso corpo vem constituído de elementos dos planetas.

 

Depois de ler o estonteante livro do filósofo italiano Emanuele Coccia, Metamorfoses(2021 – o original francês é de 2020), muitas reflexões brotaram iluminando temas de meus trabalhos. Abro aqui com uma pista já levantada por Jung em seu livro: Memórias, sonhos, reflexões(1961). No prólogo de sua obra ele diz que a vida sempre se afigurou a ele como “uma planta que extrai sua vitalidade do rizoma”. Diz acreditar na “perenidade da vida sob a eterna mudança”. É também o que fala Gil em sua bela canção Tempo Rei, contrastando com a visão de Caetano onde fala em fim do ciclo do tempo. 

 

A reflexão de Coccia vai nessa linha de Jung, defendendo vivamente uma ideia de Metamorfosee não de fim. Sublinha, com razão, que o sopro que nos habita não finda com o cadáver. Nós e toda a humanidade estamos vinculados ao ciclo de relacionamentos, onde nada tem, propriamente, substancialidade. O que somos é um “prolongamento e uma metamorfose de uma vida anterior”. O nascimento é um “acréscimo” em elo de corrente de transformação da vida, e a morte é simplesmente “o limiar de uma metamorfose”.

 

Cada ser vivo expressa em seu ser “a vida do planeta inteiro”, e quando passamos para outra margem, não se dá um descanso, como tendemos a dizer, mas a movimentação continua, sob outra forma. Por isso a pensadora Donna Haraway se define hoje mais como “compostista” do que “pós-humanista”. E por que ? Pelo fato de nosso corpo se transformar em composto que vai alimentar novas vidas.

 

Essa reflexão provoca sérias interrogações para a nossa teologia. Com a teologia moderna e contemporânea já começamos a questionar essa ideia de vida separada, para além da morte, onde reina um espírito que se liberta do corpo para viver num outro lugar. 

 

Superamos, felizmente essa ideia, e os livros de Leonardo Boff nos ajudaram a pensar com mais integralidade: a ideia de que o Reino de Deus está no meio de nós, de que “céu” e “inferno” traduzem modos de existência e não lugares. Leonardo é bem claro em seu livro de 1972, Jesus Cristo libertador: “o reino de Deus não é um território mas uma nova ordem das coisas”. O reino, diz com acerto, “é a totalidade desse mundo material, espiritual e humano agora introduzidos na ordem de Deus”.

 

Também Karl Rahner  ajudou-nos a transformar nossa ideia de eternidade. Para ele “é no tempo – como fruto maduro dele – que surge a eternidade”. Não há porque empurrar esse tempo para um “além”. Aprendi também com Adolphe Geshé que a salvação não é algo que se dá além, mas é o resultado positivo de uma vida nobre e bem sucedida no tempo. Aprendemos também um novo modo de entender a ressurreição de Jesus, vista não mais como a revivescência de um cadáver, mas como a manutenção viva de uma memória, que não se apaga na história. 

 

Com isso, fica obtuso pensar em “juízo final”, fora do tempo ou em lugares fantasmagóricos, fora do tempo, identificados como inferno, purgatório ou céu. Isso não significa abster-se de trabalhar com esses símbolos, que permanecem vigorantes e importantes. Mas agora sinto que o tal “juízo” se dá no tempo, quando as pessoas que fazem de sua vida uma experiência do mal, não permanecem vivas no aquém e no coração da pessoas. A maldade delas não tem futuro, no sentido de que serão esquecidas e permanecerão na morte. 

 

Há aqueles que deverão passar por uma “purgação”, como diz com acerto Susin, mediante um processo de discernimento, que pode até ser da própria pessoa ao final de sua vida. Não sei se foi o caso de Ratzinger. Mas pode até ser. 

 

Lendo aqui um dos três livros da trilogia de Schillebeeckx, História humana, revelação de Deus (1994), ele diz que “não há inferno para os homens maus, mas eles “castigam-se eternamente a si mesmos”. Isso me faz lembrar o filme O inocente, de Lucchino Visconti, quando o autor do mau passa toda sua vida lavando-se do sangue “invisível” de suas mãos. A maldade, diz Schillebeeckx, bem como a opressão, não têm futuro: “é sem esperança, em virtude de sua própria lógica interna”. 

 

Ir para o inferno não é ir para um lugar, mas permanecer no esquecimento ou queimar-se na dor de uma vida sem sentido. É como o personagem do romance de Graciliano Ramos, Paulo Honório, cuja vida foi toda tecida por maldade. Ao final de seus dias, refletindo em sua fazenda, depois que todos o abandonaram, e também sua mulher com o suicídio, encontra-se ali na mesa, sozinho, refletindo sobre o que foi o seu passado. Ele diz:

 

“O que estou é velho. Cinquenta anos (...). Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casa espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada (...). Hoje não canto nem rio. Se me vejo ao espelho, a dureza da boca e a dureza dos olhos me descontentam (...) Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes (...) Se ao menos a criança chorasse... Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria (...) Eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos”.

 

Isso, gente, para mim, é o inferno. O céu, é outra coisa, e aquele modo de ser tranquilo de uma vida vivida com dignidade e nobreza. Quando estamos tranquilos e serenos tendo como oferta nas mãos simplesmente a riqueza e generosidade que pautaram uma vida de honradez.

 

 

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Reflexões sobre a passagem de um papa emérito

 Reflexões sobre a passagem de um papa emérito

Faustino Teixeira

IHU-Unisinos / Paz e Bem

 

Vejo-me na necessidade de justificar aqui as razões de minhas críticas ao cardeal Ratzinger, que se tornou papa Bento VI, quando ainda está sendo velado. 

Não desconheço os seus méritos de teólogo, com obras importantes publicadas quando ele estava em período de docência. 

 

Mas como homem de autoridade, sobretudo depois de tornar-se prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, a partir de janeiro de 1982, tenho muitas críticas a seu respeito.

Foi doloroso para mim ver sua visão trituradora da teologia da libertação, e em particular sua punição ao amigo teólogo Leonardo Boff, que viveu momentos de grande dor depois de ter sido silenciado e punido pela Congregação da Doutrina da Fé. 

 

Seguiram-se tantos outros teólogos, também punidos por Ratzinger e seus auxiliares. Cito também o caso de outro teólogo da libertação, Jon Sobrinho, cujas obras foram notificadas pela CdF em 26 de novembro de 2006, quando já estávamos sob o pontificado de Bento XVI (papa Ratzinger). Mas não só teólogos foram punidos ou advertidos, também bispos importantes como Pedro Casaldáliga.

 

Uma dor particularmente difícil de ser por mim enfrentada foi a que se relacionou à punição de meu supervisor de pós-doutorado, o exemplar teólogo jesuíta Jacques Dupuis, que tive o privilégio de conhecer de perto e sorver com alegria os seus ensinamentos sobre o cristianismo e o pluralismo religioso.

 

O caso Dupuis, como ficou conhecido, foi um dos mais dramáticos ocorridos durante a gestão de Ratzinger na CdF. 

 

Sua presença na Gregoriana, como professor dos mais queridos, foi sempre motivo de muita desconfiança por Ratzinger. Seu livro principal, Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, de 1977, foi motivo de uma drástica notificação da CdF sob a presidência de Ratzinger. 

 

Depois de um longo sofrimento e tentativas de defesa, o seu livro veio notificado pela CdF em janeiro de 2001, pouco depois da publicação da famigerada Declaração Dominus Iesus, de agosto de 2000.

 

O caso Dupuis vem exemplarmente documentado no precioso livro “Il mio caso non è chiuso”. Conversazioni con Jacques Dupuis, de autoria de Gerard O´Connel. Trata-se de um volumoso livro, com 439 páginas, publicado na Itália pela Editora EMI, em 2019. 

Digo a vocês que li esse livro com lágrimas nos olhos, ao acompanhar a realista narração traçada no livro.

 

Não sem razão, o grande teólogo dominicano, Yves Congar, em seu “Diário de um teólogo” (publicado postumante pela CERF em 2000), identificou o Santo Ofício como a “Gestapo” católica. Ele e outros importantes teólogos como Henri de Lubac, tinham sofrido antes nas mãos desta instituição sombria. 

 

Na época de Ratzinger, outros tantos teólogos foram violentados em sua busca de livre expressão teológica. 

 

O caso Dupuis pude acompanhar mais de perto, pois sua punição ocorreu no período mesmo em que eu estava em Roma sob sua supervisão no pós-doutorado. 

No mesmo dia em que saiu a primeira matéria crítica à sua obra, ele estava em minha casa, a convite de minha família. Pude observar de perto o seu sofrimento. Dizia para mim na ocasião: "Não sei ensinar o que eu não penso".

 

No livro de O´Connel, infelizmente não publicado em português, o relato é impressionante. Vale lembrar que entre os consultores da CdF estavam quatro professores da Gregoriana, que não tinham lá suas simpatias por Dupuis. Entre eles os teólogos Albert Vanhoye e Karl Becker. 

 

Eles participaram da única reunião da CdF onde se tomou a decisão de condenação do livro de Dupuis. Durante o processo de investigação de seu livro, Jacques Dupuis foi convidado a deixar o ensinamento na Gregoriana e essa decisão foi afixada no átrio da Universidade Pontifícia, disponível para o olhar apreensivo de todos os estudantes. Uma humilhação...

 

Dupuis reconhece no livro-entrevista de O´Connel que não houve diálogo algum com ele. Foi uma decisão arbitrária, que passou por cima de todas as tentativas de respostas às observações críticas lançadas contra o seu livro.

 

O que estava em jogo era a pesada crítica da CdF contra “os graves erros contra a fé” presentes em sua obra. 

 

Dupuis relata que tudo isso provocou nele uma “profunda angústia” e um “sentimento de revolta”. A dor foi ainda maior, pois ele não encontrou o apoio que precisava na própria comunidade da Gregoriana, com raras exceções.

 

Em sua última aula ministrada na Gregoriana, em 1997, onde eu estava presente, foi longamente aplaudido pelos cerca de duzentos alunos de seu curso. 

Ele mesmo sublinha no livro: “Recordo, em particular, quando me levantei, recebi um longo e forte aplauso, na aula magna, no que acabou sendo, minha última aula na Universidade”. 

 

Recorda que talvez os alunos pressentiam que aquela seria a sua última aula e quiseram saudá-lo com um generoso aplauso.

 

Dupuis ainda tentou continua atuando depois de sua punição pela CdF, mas as resistência, também de Ratzinger, continuaram vivas, impendindo sua atuação pública. 

O novo livro escrito por ele depois da notificação, finalizado em 2004, foi impedido de ser publicado: “Pluralismo religioso e diálogo”. As razões do impedimento eram claras: por motivos doutrinas e prudenciais. 

 

Em carta dirigida a ele pelo vice-reitor da Gregoriana, pe. Francisco Egaña, foi advertido sobre a vigilância de seus superiores sobre ele, e que provocar a CdF com um novo livro seria um dando não só para ele, como também para a Universidade e os Jesuitas.

Em sua resposta ao vice-reitor, publicada na ocasião, Dupuis sublinhou que tinha “perdido a vontade de viver desde 02 de outubro de 1998”. 

 

Na sequência dos acontecimentos, as coisas foram só piorando para ele, jogado ao túmulo do esquecimento. 

 

Foi convidado a receber um título de doutor honoris causa na Universidade de Toronto, mas foi aconselhado a não ir, como também ocorreu com todos as outras viagens previstas.

 

O livro “Perché non sono eretico”, foi publicado postumamente, em 2012, mesmo estando pronto bem antes. Nesse livro, Dupuis comentava a sua opinião sobre a declaração Dominus Iesus e também todo o processo relacionado à sua notificação. 

 

O livro foi editado por William Burrows, e publicado na Itália em 2012, com base na versão original inglesa. Até hoje o livro também não foi publicado em português.

 

Voltando ao livro de O´Connel, Dupuis relata já depois da notificação, a ação controladora de Ratzinger continuou, com a censura às suas saídas para conferências, como sempre fazia. 

 

Em carta de Ratzinger ao superior de Dupuis, o padre Kolvenbach, em janeiro de 2002, ficava claro que o rechaço à presença de Dupuis em duas das conferências citadas era uma iniciativa pessoal dele, do "Panzer-Kardinal"

 

Dupuis foi também retirado da editoria da revista Gregorianum, da qual fizera parte durante muitos anos. 

 

Tudo isso ocorria sob o frio e indiferente olhar do reitor da Gregoriana. Todo o processo foi vivido por Dupuis com muito sofrimento. 

 

Ele dizia a respeito: “Passei e suportei uma profunda ferida que jamais terá cura. Não poderei ser a mesma pessoa de antes, que se alegrava com a vida com um senso de liberdade a que todos deveriam ter direito”. 

 

Dupuis relata que seu ensino na Gregoriana gozava de grande sucesso, mas isso também o fragilizava, provocando igualmente muito ciúme entre outros docentes. 

Relata que alguns diziam que os ataques que sofria tinham também como alvo a teologia asiática, de que era um entusiasta.

 

Dupuis chega a dizer no livro de O´Connel que o cardeal Ratzinger nem chegou a examinar pessoalmente o seu caso, restringindo-se a contentar-se com a opinião de alguns consultores da CdF. 

 

Fala ainda da própria “ignorância” dos cardeais que compunham a CdF a respeito de informações mais precisas sobre o seu processo.

 

O livro feito em homenagem ao seu trabalho de teólogo, em 05 de dezembro de 2002 (seu Festschrift) não recebeu nenhuma saudação dos altos funcionário do Vaticano, nem mesmo da Gregoriana. 

 

Durante o lançamento do livro-homenagem, Dupuis relatou com emoção que o único verdadeiro amor de sua vida tinha sido sempre Jesus Cristo.

 

Desde que ocorreu a notificação de seu livro, Dupuis passou a ser “abandonado” por sua Universidade. Mesmo recebendo a aprovação de seu superior, o padre geral, para permanecer morando na Gregoriana, ele percebeu que estava ali cada vez mais deslocado, com pouquíssimos os que ainda podiam acolhê-lo com carinho. 

Suas refeições eram feitas solitariamente. Seu sentimento e vontade era de deixar logo aquele lugar. Como recurso, contava apenas com os 150 Euros mensais para suas despesas pessoais.

 

Suas energias vitais foram minguando cada vez mais, e sua caminhada foi perdendo a luz. 

A dor por que passou, de dimensão violenta, foi aumentando, vindo a falecer pouco depois do Natal. Foi internado depois de desfalecer no refeitório da Universidade Gregoriana, e veio a falecer em 28 de dezembro de 2004.

 

Por causa disto e de tantas outras coisas, fica muito difícil para mim dizer que celebro com alegria a passagem de Bento XVI. 

 

O que posso afirmar, como católico peculiar, é que não consegui alcançar a virtude de amar Bento XVI. 

 

Lembro-me que quando ele se tornou papa, num dos jornais do dia seguinte, Leonardo Boff, afirmou: “Vai ser muito difícil amar esse papa”. 

 

Digo a vocês hoje, também com penar, que continuei tendo essa mesma dificuldade ao longo de sua atuação como papa. Peço a Deus, que o receba com carinho, mas há névoas que precisam ser ainda trabalhadas no seu juízo final.