segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Questões para o livro de Leonardo Boff: Reflexões de um velho teólogo e pensador

Questões para o livro do L.Boff – Espiritualidade

Faustino Teixeira
PPCIR-UFJF

Para elaborar o seu livro, Reflexões de um velho teólogo e pensador (Vozes, 2018), Leonardo Boff indicou uma série de estudiosos de sua obra para provoca-lo nas reflexões tecidas nos diversos capítulos. Eu fiquei responsável de elaborar as questões em torno ao tema da espiritualidade. São questões que estarão refletidas no último capítulo do livro, mas que também reverbera nos capítulos 7 e 8. Seguem as questões:

(1) Leonardo, amigo querido, venho acompanhando o seu trabalho de perto faz décadas. Entendo que a sua reflexão tem uma importância nodal para o percurso da teologia latino-americana, com repercussão internacional. Percebo que desde quando você fez cinquenta anos, foi fazendo balanços da sua vida. Sua primeira reflexão neste sentido foi publicada no livro, O que ficou. Balanço aos 50 (Vozes, 1989), com o texto: Um balanço de corpo e alma. Nesse trabalho você dizia, ao final: “A vida humana é parecida com uma árvore. Quanto mais sobe a copa mais fundas devem ser as raízes. Quanto mais avançamos na vida tanto mais retrocedemos às nossas matrizes iniciais”. E concluía: “Praza Deus  que o tempo nos seja propício para crescer em Sua direção, na direção dos outros e na direção de nosso próprio coração”. Na revista Numen, do PPCIR-UFJF, você fez o balanço dos sessenta, com o texto: Balanço aos sessenta: entre a cátedra de Pedro e a cadeira de Galileu Galilei (Numen, v. 2, n. 2, dez/1999). No texto você fala do novo tempo em sua vida, depois de sua autopromoção ao estado leigo; fala de seu aprofundamento na ecologia e depois da questão da espiritualidade. E diz: “Penso que a coisa mais ansiada e buscada hoje em dia não seja tanto a religião mas a espiritualidade (...). Pela espiritualidade percebemos as coisas religadas umas às outras e à Fonte originária donde emergem e para onde confluem”. Assinala que a espiritualidade foi o objeto de sua principal produção intelectual “nos últimos tempos”. E fazia a comparação com a águia escondido no mundo interior, “que deve ganhar asas e voar. E ao voar nos carregar para o infinito de nosso desejo, para o coração de Deus que habita nas profundidades de nosso coração e do coração do universo”. E concluía dizendo que a missão mais nobre do teólogo era a de “trazer à memória de todos a bem-aventurada presença de Deus em tudo o que existe e vive”. Depois veio o balanço dos setenta, publicado na REB(n. 274, abril de 2009). O título: A vida aos 70: um sonho matinal. Ao falar dos marcos de sua caminhada sublinha alguns importantes, como a marca franciscana, o compromisso com a igreja libertadora e os empobrecidos e a luta em favor da irmã e mãe Terra e Gaia. Sinaliza o importante passo dado em direção a uma ecoteologia da libertação integral. Na parte final, fala da experiência de Deus, do Deus que não é solidão, mas “comunhão dos Três”; de um Deus-Trindade que permanece “mistério insondável” e que nos convida ao silêncio: Um Deus que é “mistério de ternura, de embraçamento e de inenarrável comunhão”. Naquele momento, acena para o momento da morte: “Ao tombar como uma árvore, espero cair em seus braços e ser aconchegado em seu útero materno e paterno”. Indica que em toda sua caminhada ficou uma semente: “Mas sobrou a semente. Sinto-me hoje apenas semente”. Agora, Boff, aos oitenta anos, como você capta o significado mais profundo de sua vida espiritual? Como você a percebe neste momento e quais os desafios que ela lança nessa nova travessia?

(2) Num precioso livrinho publicado pela Sextante em 2001, Espiritualidade – um caminho de transformação, você lança uma reflexão importante e que nos ajudou muito a pontuar nossa argumentação sobre o tema: a distinção entre espiritualidade e religião. Uma questão também abordada por Dalai Lama no seu livro: Uma ética para o novo milênio (Sextante, 2000). A espiritualidade vem relacionada com “qualidades do espírito humano”, podendo então estar presente mesmo em alto grau entre pessoas que não estão ligadas a um segmento religioso. Como você diz: “Não devemos nunca esquecer que os portadores permanentes da espiritualidade são as pessoas consideradas comuns, que vivem a retidão da vida, o sentido da solidariedade, e cultivam o espaço sagrado do Espírito”. Isto pode ocorrer tanto em experiências religiosas e em igrejas, como em outros espaços. Como você vê hoje essa questão?

(3) Na carta encíclica Laudato si (2015), o papa Francisco fala em “espiritualidade ecológica” (LS 216), na íntima relação que vigora entre o cuidado da ecologia e a paz interior. Este é um tema também muito presente na sua reflexão. Seria interessante você desenvolver de forma mais precisa esta relação apontada por Francisco, relacionando-a com sua perspectiva.

(4)  Em sua obra, Ética da vida. A nova centralidade, você situa a espiritualidade como “aquela atitude que põe a vida no centro, que defende e promove a vida contra todos os mecanismos de diminuição, de estancamento e de morte”. A espiritualidade nasce, então, da experiência da gratuidade, da percepção profunda da comunhão que vigora entre todas as coisas. Este é um tema também sinalizado por Francisco em sua encíclica sobre o cuidado da casa comum. Por diversas vezes ele fala de interligação entre as coisas, e também da dignidade que adorna tudo, com direitos que são característicos. Para tanto, faz uma profunda crítica à forma como a antropologia cristã lidou com a relação do ser humano com o mundo, num antropocentrismo problemático. Outros autores, em campos distintos, abordaram esse desafio, como Deleuze/Guatari quando falam em rizoma: das linhas “que não param de se remeter umas às outras”; ou então Tim Ingold, quando fala de nosso entrelaçamento na textura do mundo. Em que medida a espiritualidade pode contribuir para reforçar esse nexo singular do ser humano com todas as coisas e criaturas? É o que poderíamos chamar de uma espiritualidade da ressonância, lembrando o grande mestre Zen Dôgen.

(5) Fomos contemplados recentemente com um lindo trabalho seu, de tradução da Imitação de Cristo (Tomás de Kempis), com a novidade da introdução de um último livro/capítulo sobre o seguimento de Jesus. Todos sabemos da importância desta obra para os caminhos da espiritualidade moderna, com incidência profunda no tempo atual, sendo um dos livros mais lidos entre os cristãos de todo o mundo. Enfatizo aqui dois aspectos importantes na obra de Kempis: o movimento em direção à interioridade e o despojamento de si mesmo. Sei da importância que este livro ocupa em sua vida. Gostaria que você pudesse dizer em que medida esta obra abriu caminhos no seu percurso espiritual?

(6) Não se pode negar o lugar e o significado que tantos místicos ocuparam em sua reflexão teológica. Gostaria aqui de lembrar de um deles, de modo muito especial: Mestre Eckhart. É conhecida a obra que você coordenou pela Vozes: Mestre Eckhart. A mística de ser e de não ter(Vozes, 1983). Sugestiva a sua introdução: Mestre Eckhart: a mística da disponibilidade e da libertação. Gostaria de sublinhar o nexo essencial destacado por você nesta introdução entre a mística de Eckhart e a libertação. Falo aqui particularmente do lugar singular concedido a Marta, como expressão viva de uma mística inserida no tempo: de alguém que está junto das coisas, mas ao mesmo tempo livre com respeito a elas. Gostaria que você apresentasse para nós o seu modo de entendimento da relação da espiritualidade com a mística. Em que medida o caminho dos místicos, nas diversas tradições religiosas, tem contribuído para a nossa compreensão presente da vida espiritual.

(7) Queria destacar aqui a sua presença e sua atuação no redação da importante Carta da Terra. Ali encontramos sinais fundamentais que apontam para a nova espiritualidade que deve inspirar o século XXI. Dentre os princípios apresentados na carta, e que tem um toque inter-religioso essencial, está aquele que diz que “devemos reconhecer e preservar os conhecimentos tradicionais e a sabedoria espiritual em todas as culturas que contribuam para a proteção ambiental e o bem-estar humano”. Esta colocação vem ao encontro de uma singular reflexão feita hoje no campo antropológico, que assinala a urgência de uma atenção às cosmologias antigas e às suas inquietudes. Temos aqui no Brasil a sabedoria dos quilombolas e dos povos originários, de seu rico potencial espiritual, que aos poucos ganham expressão, como o caso do livro de Davi Kopenawa e Bruce Albert: A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami (2015). Que laços essenciais você consegue estabelecer entre estes saberes e conhecimentos tradicionais e a nova espiritualidade de ritmo ecológico que vem se anunciando em nosso tempo?

(8) Em duas de suas obras, o tema do cuidado com o espírito está bem presente: Saber cuidar (Vozes, 1999) e O cuidado necessário(Vozes, 2012). Você fala do ser humano como “portador de espírito”, de um espírito que “possui a mesma ancestralidade que as energias e a matéria originária”. Em que medida esse cuidado firma-se como essencial, assim como o cuidado com o planeta, com os outros e com o próprio corpo? Quais os desdobramentos fundamentais desse cuidado com e espírito?

(9) Outro autor que teve uma importância substantiva em sua trajetória acadêmica foi Teilhard de Chardin. Creio que foi um dos pilares na afirmação de sua visão espiritual, pontuada pela materialidade. Na visão espiritual de Teilhard, vemos o importante traço da diafania de Deus no universo; do despertar de uma simpatia irreversível pelo que move na terra. Trata-se de uma ocular distinta daquela tradicional na caminhada cristã, que bendiz a matéria e o trabalho no tempo. Como diz o místico francês, o desafio de subir para o Espírito “vestido com o esplendor concreto do Universo”. Qual a sua posição a respeito desta visão espiritual temperada com o ritmo do Universo?

(10) Outro livro seu de grande repercussão foi aquele organizado junto com frei Betto, em torno da Mística e espiritualidade(Rocco, 1994), com várias edições. Já na abertura da obra você lança uma interrogação: “Sempre que uma cultura entra em crise ocorre uma volta vigorosa do religioso e do místico”. É mesmo o que sucede. Na mesma obra você escreve sobre a contribuição da mística oriental. Teria como destacar alguns dos personagens importantes da mística oriental na configuração de um novo olhar sobre o tema da mística cristã? E que temas fundamentais ou intuições eles trazem para a nossa reflexão?


(11) Pensando com atenção destacada para esse nosso tempo de pluralismo religioso e de abertura macro-ecumênica, em que medida os temas da mística e da vida espiritual revelam-se significativos para questionar os exclusivismos religiosos e a sedução fundamentalista? É correto dizer que a mística traz consigo um vigoroso potencial relativizador?

(12) Penso também aqui em outro tema que você retoma em diversas ocasiões a respeito das tensões entre mística e instituição religiosa. Na sua introdução ao livro da Vozes sobre Mestre Eckhart você diz: “A instituição religiosa assentada particularmente sobre seguranças que exigem os mecanismos de controle, dificilmente, convive com a experiência dos místicos. Ela possui pouca flexibilidade para entender a linguagem ousada dos que experimentam o Inefável do Mistério”. Sem dúvida, os místicos trazem consigo uma linguagem nova, ousada, excessiva. Por que desta dificuldade institucional em lidar e hospedar a novidade linguística trazida por eles?

(13) Em sua obra autobiográfica o teólogo Jürgen Moltmann fala da importância de uma espiritualidade dos sentidos vigilantes (Vasto Spazio. Queriniana, 2009). Vejo que é um tema que também aparece nas suas reflexões sobre a espiritualidade. Em contraponto a uma espiritualidade voltada para o outro mundo, uma compreensão de vida espiritual sintonizada com os sentidos, com o corpo e com a terra. Uma espiritualidade com rosto feminino. Quais as marcas sensíveis de uma espiritualidade fundada no tempo, envolvendo todos os sentidos?

(14) Lembro-me da importância de um artigo seu sobre a espiritualidade na construção da paz. Trata-se, a meu ver, de um tema essencial e que você abordou com muita pertinência. Você falava na importância da paz espiritual como requisito para a paz no ambiente. A paz interior como “fonte secreta que alimenta a paz cotidiana” e que se irradia por todo canto. Trata-se de um tema que está também na Carta da Terra: “Reconhecer que a paz é a plenitude criada por relações corretas consigo mesmo, com outras pessoas, outras culturas, outras vidas, com a Terra e a totalidade maior da qual somos parte”. Gostaria que você pudesse explicitar isto um pouco mais para nós.

(15) O tema da Terra Gaia é uma constante em sua reflexão. De modo particular o cuidado com o nosso único planeta. Vivemos, porém, num tempo difícil, onde o mundo vive em suspensão em razão de tantas catástrofes e cataclismas, de violências contra a Terra. Alguns cientistas sociais falam de Gaia sob um outro ângulo, sublinhando a sua face de “intrusão” e de “mal-estar” (Isabelle Stengers – No tempo das catástrofes. Cosac Naify, 2015). É a terra que reage e responde de forma implacável ao humano e seu potencial destruidor, no tempo do Antropoceno. Nesse sentido, Gaia é também um chamado para a resistência contra o Antropoceno. Infelizmente, o inimigo somos nós mesmos. Alguns antropólogos, como Bruno Latour, falam em Guerra de Gaia, que opõe humanos e terranos, mas uma guerra que ele acredita estar já perdida (Bruno Latour. Face à Gaia. Huit conférences sur le nouveau régime climatique. Paris, La Découverte, 2015). Como você se posiciona diante desta complexa questão? Acredita que os terranos têm alguma possibilidade de “vitória”? Acredita no potencial da espiritualidade que vigora nestes povos, como indício da crença num outro mundo possível?

(Encaminhado para a Vozes em 27/05/2018)