terça-feira, 13 de abril de 2010

O desafio das teologias índias

O desafio das teologias índias

 

Faustino Teixeira

PPCIR/UFJF

 

 

Introdução

 

Um dos grandes nomes da mística cristã, Meister Eckhart, comentava num de seus sermões alemães sobre os talos de grama. Assinalava quão admirável o fato desses talos serem desiguais e iguais. Seguindo as pistas de um mestre, sublinhava que eram desiguais “por provirem da superabundância da bondade de Deus; da bondade que ele derrama generosamente em todas as criaturas, para revelar ainda mais a sua majestade”. Mas ao mesmo tempo eram iguais na sua pureza primeira, assim como todas as coisas.[1] Na natureza celebramos hoje a grande riqueza da biodiversidade e o desafio essencial de sua preservação. De forma semelhante, existe também a diversidade das religiões que merece a nossa atenção e cuidado particulares. São expressões religiosas distintas e irrevogáveis, que traduzem “todas as riquezas da sabedoria infinita e multiforme de Deus”.[2] Celebrar  a pluralidade religiosa é testemunhar o plural na criação e reconhecer o manto misericordioso do Deus criador que envolve todo o universo. O mundo inteiro é “sustentado pelas mãos de uma beleza que é também presença que fala” (L.F.Pondé).

 

1. A controvérsia em torno das teologias índias

 

O belo texto de Eleazar López Hernández trata o tema das teologias índias e de sua contribuição para a vida do mundo. Estamos diante de um desafio que é fundamental e que envolve uma perspectiva nova de compreender e reconhecer o valor da alteridade. A teologia da libertação falou com vigor na força histórica dos pobres, dos ausentes que se fazem presentes na história e manifestam o direito de pensar enquanto expressão de vontade de vida. Eleazar sublinha que “o momento atual está caracterizado por uma nova irrupção do mundo indígena na sociedade e na Igreja. De repente, todas as modalidades de teologia India entraram em cena e ocuparam os espaços sociais e eclesiais, com uma voz e um protagonismo que não se reconhecia anteriormente”[3]. São teologias que renascem viçosas e buscam apresentar o rosto índio de Deus, sinalizando a rica e antecedente presença do Espírito na criação. Não há porque reconhecer no mundo indígena apenas o lugar onde se processa a evangelização, como se fosse um espaço destituído da graça do Deus da vida. Na verdade, o anúncio evangelizador nunca ocorre num “vácuo”, pois o Espírito já “está presente e atua entre aqueles que escutam a Boa-Nova, ainda antes da ação missionária da Igreja iniciar”[4]. Desse lugar “outro” desdobram-se singulares dons espirituais, prodigalizados por Deus, que enriquecem a vida da Igreja.

 

Nem sempre isso vem reconhecido pela Igreja, que resiste reiteradamente contra a dinâmica dessa nova irrupção. Nos últimos decênios, verifica-se, na conjuntura eclesiástica, uma preocupação com o relativismo e com o enfraquecimento do dinamismo missionário. Trata-se de um tema que vem ocupando a atenção do papa Bento XVI, desde o período de sua atuação cardinalícia, como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Em trechos de uma entrevista publicada pela revista Jesus, em novembro de 1984, o cardeal Ratzinger questionava o juízo, a seu ver injusto, sobre o laço entre a atividade missionária e o colonialismo. Em sua defesa da atividade missionária, falava sobre a “ênfase excessiva” concedida aos valores das religiões não cristãs e o risco de exaltação da condição pré-cristã: um tempo de “ídolos” e de “mêdo”, de um Deus “distante” e de uma terra “abandonada aos demônios”.[5] Em reflexão posterior, publicada em julho de 1995, o cardeal Ratzinger fala na presença de um “dogma do relativismo” que abafa a pertinência e significado da missão evangelizadora e identifica sinais deste relativismo na teologia índia latino-americana, que estaria buscando reviver os valores das “velhas religiões” do continente. Identifica essa busca como o “sonho romântico” de querer “preservar ilhas pré-tecnológicas no oceano da humanidade”, ou encerrar os homens e culturas numa “reserva natural espiritual”.[6] Curiosamente, o tema vem retomado mais recentemente, no discurso proferido por Bento XVI na abertura da V Conferência Geral do Episcopado Latinoamericano e do Caribe, em Aparecida (Brasil). Em seu discurso, Bento XVI sublinha que as autênticas culturas não podem ficar encerradas em si mesmas ou petrificadas, mas devem estar abertas à fecundação inter-cultural e aos elementos que as podem conduzir a uma nova síntese. Com base nessa reflexão, justifica a ação missionária junto aos índios e a consequente abertura à fé cristã. Indica ainda que Jesus Cristo era “o Salvador que anelavam silenciosamente”. Questiona em seguida o que denomina “a utopia de querer dar vida às religiões pré-colombianas, separando-as de Cristo e da Igreja universal”, e identifica tal passo como um “retrocesso”.[7]

 

Reagindo a tal perspectiva, Eleazar Hernández assinala que o resgate espiritual dessa força do passado e de atualização de sua memória, não significa anacronismo ou romantismo. Trata-se de algo semelhante ao que a Igreja faz ao retomar a memória de Abraão, Moisés e outros profetas. O mergulho no passado é um passo significativo para “buscar ali a dimensão de coisas verdadeiras e perenes, de verdades que não têm tempo porque estão na eternidade, onde vive Deus, e vivem também nossos antepassados”.[8] Na visao de Eleazar, que compartilho plenamente, dar voz às teologias índias é favorecer o vínculo com a “rica sabedoria religiosa dos povos mais antigos do continente”, frutificada ao longo de “milênios de busca das realidades divinas e espirituais” e alimentada permanentemente pelo Espírito. Trata-se de um patrimônio espiritual singular e que não pode ser descartado como deletério.

 

2. O difícil aprendizado da alteridade

 

A reflexão católica atual ainda é bem devedora de uma teologia do acabamento, que se caracteriza por grande dificuldade de aceitar a irreversibilidade do pluralismo religioso e da dinâmica natural da diversidade. Já dizia Lévi-Strauss, em clássico texto sobre o etnocentrismo, que “a diversidade das culturas raramente surgiu aos homens tal como é: um fenômeno natural, resultante das relações diretas ou indiretas entre as sociedades”. Essa diversidade é vista, em muitos casos, como “monstruosidade” ou “escândalo”.[9] A tendência na Igreja católico-romana é de entender a diversidade religiosa como momento passageiro ou conjuntural de uma dinâmica necessária que leva a Jesus Cristo e à Igreja. Isto está claro no discurso de Bento XVI na abertura do V Celam, bem como na recente homilia por ele proferida para os bispos e religiosos em Angola (março de 2009). Nessa homilia, o papa chama a atenção para os limites das religiões tradicionais africanas e convoca à dinâmica de conversão:

 

Mas, se estamos convencidos e temos a experiência de que, sem Cristo, a vida é incompleta, falta uma realidade – e a realidade fundamental –, devemos também estar convencidos de que não fazemos injustiça a ninguém se lhe mostrarmos Cristo e lhe oferecermos a possibilidade de encontrar, deste modo, também a sua verdadeira autenticidade, a alegria de ter encontrado a vida. Antes, devemos fazê-lo, é obrigação nossa oferecer a todos esta possibilidade de alcançarem a vida eterna.[10]

 

O que alguns antropólogos que trabalham com a questão indígena no Brasil salientam nessa complexa discussão envolvendo o tema da missão,  é a grande dificuldade quanto à compreensão do status da diversidade cultural. Sem deixarem de reconhecer alguns avanços que acontecem no redimensionamento da perspectiva, com a introdução da reflexão sobre a inculturação, assinalam a presença de entraves problemáticos, que traduzem dificuldades precisas de operar com o “código da cultura e da alteridade”.[11] Na verdade, somos ainda reféns de uma teologia do acabamento para a qual a alteridade permanece “intangível”. Há muito o que caminhar na reflexão teológica sobre a cultura: um desafio ainda em aberto para avançar mais fundo no reconhecimento verdadeiro da alteridade.

 

3. O resgate de uma espiritualidade terrenal

 

Há que resgatar a identidade religiosa dos povos originários, reconhecer a singularidade de sua espiritualidade e a grandeza de sua cultura. Como sinaliza Eleazar Hernández, “os povos indígenas do passado, mais que peritos conhecedores das estrelas, da medicina, das matemáticas, do tempo, da arte das plumas, eram peritos em humanidade e sabedoria de Deus”[12]. Com base em sua atuação no altiplano peruano, com as famílias quechuas, aymaras e mestiças, Diego Irarrazaval reconhece ali uma “espiritualidade concreta e terrenal”.[13] Toda a natureza – a terra, os bosques e outeiros – está embebida pela força de um mistério de vida e pela presença do Espírito. Trata-se de uma visão “cosmoteândrica”, que faculta a comunhão da matéria, de Deus e do humano, entendidos como “dimensões constitutivas da realidade”. Nos rituais andinos celebra-se uma grande comunhão: da comunidade humana com o meio ambiente e a divindade geradora de vida. Há uma viva consciência da imanência de Deus e da sacralidade da criação, ou ainda melhor, de uma transparência de Deus e de sua diafania por toda parte.

 

A espiritualidade terrenal indígena recupera valores que são essenciais para o ser humano, e que estão abafados em nossa sociedade pontuada pela racionalidade do mercado. Ganham cidadania a hospitalidade, a atenção e o cuidado com a natureza, com as formas sustentáveis de vida e a preservação de uma singular sabedoria espiritual. Em nosso continente, as tradições indígenas acentuam a importância do “bem viver”, que tem um alcance espiritual bem mais significativo que o “viver melhor” da ideologia dominante. O “bem viver” supõe uma perspectiva distinta:

 

visa uma ética da suficiência para toda a comunidade e não apenas para o indivíduo. O ´bem viver` supõe uma visão holística e integradora do ser humano inserido na grande comunidade terrenal que inclui além do ser humano, o ar, a água, os solos, as montanhas, as árvores e os animais: é estar em profunda comunhão com Pacha Mama (Terra), com as energies do universo e com Deus.[14]

 

A qualidade de vida e o desenvolvimento integral do ser humano escapam aos indices tradicionais do PIB (Produto Interno Bruto). Como caminho alternativo, o Butão,  pequeno país situado entre a China e a Índia, criou o índice de Felicidade Interna Bruta (FIB), com parâmetros desta vez qualitativos para medir o desenvolvimento humano e social integrados. Entre os indicadores do FIB encontram-se: o padrão de vida, a boa governança, a educação e saúde, a resiliência ecológica, a diversidade cultural, a vitalidade comunitária, a utilização equilibrada do tempo e o bem estar psicológico e espiritual.[15] Como indica Marcos Arruda, o FIB traduz uma “abordagem holística” que vem responder às necessidades materiais e espirituais das pessoas e da sociedade:

 

Seu núcleo é, pois, o postulado de que o bem estar físico e vital (social e econômico), mental e espiritual devem ser desenvolvidos simultaneamente no mundo contemporâneo. O objetivo do FIB é criar a conceituação e a motivação para um caminho alternativo de desenvolvimento, que nutra o processo de construção de um ser humano e sociedade plenamente desenvolvidos.[16]

 

Há uma grande sintonia da categoria “bem viver”, presente entre as tradições indígenas do nosso continente, com alguns indicadores do índice de Felicidade Interna Bruta, utilizados no Butão. No cerne da preocupação não está mais a lógica do acumular e a dinâmica da produtividade excludente, mas a busca harmonica de equilíbrio com o Todo e com o Real. A verdadeira experiência mística não é nada mais do que a “experiência integral da realidade”, ou seja, ser capaz de despertar para o Real que preside e habita toda a realidade.

 

(Publicado na Revista Horizonte, v. 7, n. 14, junho 2009, pp. 12-20)

 

 



[1] Mestre Eckhart. Sermões alemães 1. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 155 (Sermão 22).

[2] SECRETARIADO para os não-cristãos. A Igreja e as outras religiões. Diálogo e missão. 2ed. São Paulo: Paulinas, 2002, n. 41.

[3] Eleazar López Hernández. Teologias índias, ofrenda para la vida del mundo. Mimeo, 2009, p. 6.

[4] PONTIFÍCIO Conselho para o diálogo inter-religioso. Diálogo e anúncio. Petrópolis: Vozes, 1991, n. 68.

[5] Joseph Ratzinger. “Ecco perché la fede è in crisi”. Jesus, ano VI, novembre 1984, p. 71.

[6] Joseph Ratzinger. Le Christ, la foi et le défi des cultures. La documentation Catholique, n. 2120, juillet 1995, p. 704.

[8] Eleazar López Hernández. Teologias índias..., p. 5.

[9] Lévi-Strauss. Raça e história. Os pensadores. São Paulo: Abril cultural, 1980, p. 53.

[11] Robin M.Wright (Org.). Transformando os deuses. Os múltiplos sentidos da conversão entre os povos indígenas no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 1999; Paula Montero (Org.). Deus na aldeia. Missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Editora Globo, 2006 (ver em particular o artigo de Marcos Pereira Rufino: o Cimi no debate da inculturação).

[12] Eleazar López Hernández. Teologias índias..., p. 4.

[13] Diego Irarrazaval. Un cristianismo andino. Quito: Abya-Yala, 1999, p. 16; Id. Reimplantação teológica da fé indígena. In: ASETT (Org.). Pelos muitos caminhos de Deus. Goiás: Rede, 2003, pp. 93-96.

[14] Leonardo Boff. O viver melhor ou o bem viver?: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=37858 (acesso em 02/04/2009).

[15] Marcos Arruda. Crise financeira como oportunidade de criar uma economia mundial solidária: http://www.tni.org/detail_page.phtml?act_id=19022 (acesso em 02/04/2009).

[16] Ibidem.

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