terça-feira, 20 de abril de 2010

Diálogo Inter-Religioso: o desafio da acolhida da diferença

DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO:

O DESAFIO DA ACOLHIDA DA DIFERENÇA

 

                                                                                 Faustino Teixeira

                                                                        PPCIR-UFJF/ Iser-ssessoria

 

         “De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos          seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram          capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a          que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos

         tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus”

         (José Saramago)

 

Introdução 

 

O diálogo inter-religioso constitui neste início do século XXI um dos desafios mais imprescindíveis para a humanidade. Tem-se falado inúmeras vezes que a paz entre as religiões constitui condição fundamental para a paz no mundo. Infelizmente, este horizonte de fraternidade e diálogo encontra-se ainda bem distanciado. O quadro do tempo atual é revelador de um espectro de violência e fascínio do mal. Tal cenário revela-se ainda mais doloroso ao se perceber a presença e o lugar da religião nos embates e conflitos contemporâneos. Desde as últimas décadas tem-se verificado “um surpreendente surto de violência condicionada pela religião. Em todos os continentes surgiram conflitos étnicos, nacionais ou sociais, onde a religião desempenhou um papel fatídico”[1]. Trata-se de uma realidade que tem levado alguns intelectuais a sinalizar a impossibilidade de uma aproximação ou congraçamento dos seres humanos através das religiões e a proclamar a vinculação entre religião e violência. Denuncia-se o “fator Deus”  ou as violências que ocorrem “em nome de Deus”, abrindo corações e mentes para as intolerâncias mais sórdidas.[2]           

O discurso teológico sobre a força ética das religiões esbarra muitas vezes na dinâmica concreta e histórica das agressões, fanatismos, ódios e hostilidades inter-religiosas. Em muitos casos, as posturas de intransigência e exclusão apoiam-se em sentimentos arraigados de superioridade, arrogância identitária e pretensão exclusiva de verdade, que impossibilitam qualquer exercício de fraternidade recíproca. Há um traço de ambigüidade ou enigma que atravessa todas as religiões, implicando a presença de um dualismo que pode possibilitar tanto a afirmação de humanidade, como o acirramento da violência.[3] Em razão de sua inserção histórica, as religiões podem, contrariando a sua motivação original, exercer uma “instrumentalização do sagrado” em favor da afirmação de seu poder particular com respeito aos outros.

 O grande, difícil e arriscado desafio do diálogo inter-religioso consiste em apontar e demonstrar a possibilidade de um horizonte de conversação alternativa; de indicar que a violência religiosa não faz parte da essência da religião, mas constitui um desvio  ou traição do dinamismo mais profundo que anima a relação do ser humano com o Absoluto. Na verdade, “a relação autêntica com o Absoluto como tal não é violenta sob nenhum aspecto, antes pelo contrário. Ela desperta a coragem inabalável para produzir mais humanidade em todos os setores da vida”[4].  Um dos imperativos mais essenciais do diálogo inter-religioso neste momento histórico diz respeito à convocação de todos em favor da paz, bem como a retomada do genuíno sentimento religioso, o único capaz de inspirar os valores fundamentais  contra a violência e os conflitos. Como indicou João Paulo II na recente jornada de oração em favor da paz, realizada em janeiro de 2002 na cidade de Assis, “o genuíno sentimento religioso conduz de fato a perceber o mistério de Deus, fonte da bondade, e isto constitui uma fonte de respeito e de harmonia entre os povos”[5].

O diálogo inter-religioso baseia-se na consciência viva do valor da alteridade e da riqueza da diversidade. Sem desconhecer a singularidade das diferenças, o diálogo aposta na possibilidade da renovação facultada pelo encontro. O grande perigo que ronda o tempo atual é o da afirmação dogmática de comunidades humanas que funcionam como “mônadas semânticas, quase sem janelas”, especializadas em cultivar a arte do solilóquio e da surdez. O risco maior não está na afirmação e na celebração do plural, como pensam alguns, mas na imagem sombria de um mundo repleto de pessoas que glorificam os seus heróis ou a si mesmas e diabolizam os seus inimigos.[6] As religiões podem estar envolvidas neste círculo isolacionista e imobilizadas pela incomunicabilidade dogmática, mas podem também exercer sua influência em favor de um encontro renovador e enriquecedor, direcionadas à solidariedade mútua, à paz e o bem da humanidade. É nesta segunda direção que se encontra a aposta dialogal, e a possibilidade única das religiões poderem adquirir a credibilidade: dialogar para não morrer.

No âmbito da reflexão teológica católica, a questão do diálogo inter-religioso tem sido objeto de acaloradas discussões, apresentando-se hoje como um dos grandes desafios para toda a teologia neste século XXI. Há ainda muitas resistências explícitas ou veladas no campo católico para a abertura inter-religiosa. Os sinais da abertura conciliar esbarram em iniciativas restauradoras mais temerosas diante do “risco” da alteridade e vinculadas à afirmação exclusiva da identidade. Esta fixação nas diferenças confessionais, como bem expressou um dos grandes teólogos do ecumenismo, decorre mais do medo da perda da identidade do que do interesse profundo pela verdade.[7] Na lógica da defesa da identidade encaixa-se perfeitamente a distinção estabelecida entre fé teologal e crenças e a negação do pluralismo religioso de princípio, como aparecem delineados na declaração da Congregação para a Doutrina da Fé, Dominus Iesus (2000). A hipótese aqui defendida, e que será abordada ao longo da reflexão, indica a plausibilidade de um caminho diverso. Segundo esta hipótese, não pode haver real diálogo inter-religioso sem uma consideração de abertura ao pluralismo de princípio, bem como uma perspectiva de real humildade face aos desígnios gratuitos e misteriosos do Deus sempre maior.

 

1.    O Diálogo inter-religioso e suas condições

 

O ser humano é um nó de relações, não podendo ser compreendido de forma destacada do outro com o qual se comunica. O diálogo constitui, assim, uma dimensão integral de toda a vida humana. É na relação com o tu, que o sujeito constrói e aperfeiçoa a sua identidade. Trata-se de uma experiência humana fundamental e “passagem obrigatória” no caminho da auto-realização do indivíduo e da comunidade humana.[8] O que conta no diálogo é a reciprocidade existencial, o “intercâmbio de dons”, a dinâmica relacional que envolve a semelhança e a diferença em processo rico de abertura, escuta e enriquecimento mútuos. É neste contexto dialogal que a identidade vai ganhando fisionomia e sentido, enquanto expressão de uma busca que é incessante, árdua e criativa.

Dentre a extensa variedade de formas de diálogo, situa-se o diálogo inter-religioso com sua peculiaridade própria. Trata-se do “conjunto das relações inter-religiosas, positivas e construtivas, com pessoas e comunidades de outras confissões religiosas, para um mútuo conhecimento e um recíproco enriquecimento”[9]. O diálogo inter-religioso instaura uma comunicação e relacionamento entre fiéis de tradições religiosas diferentes, envolvendo partilha de vida, experiência e conhecimento. Esta comunicação propicia um clima de abertura, empatia, simpatia e acolhimento, removendo preconceitos e suscitando compreensão mútua, enriquecimento mútuo, comprometimento comum e partilha da experiência religiosa. “O diálogo inter-religioso acontece em vários níveis e envolve tanto indivíduos como comunidade. Movido pelo espírito vindo de aspectos exteriores para aspectos mais interiores da vida, ele leva a níveis mais profundos de comunhão no Espírito, sem detrimento da experiência religiosa específica de cada comunidade, mas aprofundando-a”[10]. Este relacionamento inter-religioso ocorre entre fiéis que estão enraizados e compromissados com sua própria fé, mas igualmente disponíveis ao aprendizado com a diferença.

Uma das condições mais essenciais para o diálogo inter-religioso é a virtude da humildade. No diálogo experimenta-se a consciência dos limites e a percepção da presença de um mistério que a todos ultrapassa. O diálogo envolve o discernimento da contingência e vulnerabilidade, e isto implica uma disposição de escuta do outro que interpela. O diálogo exige humildade, abertura e respeito ao diferente. Não basta, porém, abrir-se à diversidade, mas igualmente afirmar a liberdade e a dignidade do outro, deixar-se interpelar por sua verdade. Daí a exigência do reconhecimento do “valor da convicção religiosa do outro”, e de que esta convicção funda-se numa “experiência de revelação”[11]. Na ausência de tal reconhecimento, priva-se o diálogo do terreno comum que possibilita sua realização efetiva. Assim como o diálogo exige como condição a fidelidade à própria identidade, exige também o respeito à dignidade do outro em suas convicções. De forma análoga, o outro é alguém animado pelo mesmo tipo de engajamento absoluto com respeito à sua verdade.[12]

O diálogo inter-religioso pressupõe convicção religiosa, exigindo de seus interlocutores um empenho de honestidade e sinceridade, que envolve a integralidade da própria fé. Para ser autêntico, o diálogo exige reciprocidade: “É evidente que os cristãos  não podem dissimular, na práxis do diálogo inter-religioso, a própria fé em Jesus Cristo. Por sua vez, reconhecem nos seus interlocutores, que não partilham a fé que eles têm, o direito e o dever inalienáveis de se empenhar no diálogo preservando suas próprias convicções pessoais – e também as pretensões de universalidade que podem fazer parte da fé dos mesmos”[13].  Junto com a adesão, vem a abertura e o acolhimento do outro. O diálogo requer igualmente como disposição “a prontidão em se deixar transformar pelo encontro”[14]. A afirmação e plausibilidade da convicção religiosa articulam-se com o imperativo de abertura, e isto exige a não absolutização do que é relativo, um risco sempre presente em toda fé religiosa.

A abertura à verdade, é outra disposição fundamental na dinâmica inter-religiosa. Para que haja diálogo, é necessário que os interlocutores estejam dispostos não somente a aprender e receber os valores positivos presentes nas tradições religiosas dos outros, mas igualmente disponíveis e abertos à verdade que os envolve e ultrapassa; é indispensável que esta busca da verdade ocorra sem restrições mentais, em espírito de acolhida e abertura, pois ninguém pode pretender uma assimilação plena deste horizonte que está sempre adiante. O diálogo inter-religioso acontece entre interlocutores que estão engajados com uma forma particular de apropriação da verdade. Na medida em que ocorre o confronto de verdades, que são distintas mas não necessariamente contraditórias, processa-se uma transformação em cada um dos interlocutores, que são provocados a descobrir uma nova forma de apropriação de sua própria fé. Como desdobramento da dinâmica dialogal, ocorre necessariamente uma interpretação nova da própria tradição. O diálogo inter-religioso faculta, assim, a experiência rica e inovadora de “celebração de uma verdade que é mais elevada e mais profunda que a verdade parcial” reivindicada pelos interlocutores em questão, ainda que os mesmos possam estar persuadidos de seu engajamento incondicional com sua verdade particular.[15] Como indicou Joseph O’Leary, filósofo e teólogo irlandês, “a verdade da religião não reside plenamente em nenhuma religião, mas somente na relação ecumênica das grandes tradições”[16] O diálogo é sempre “uma viagem fraterna” (DA 79), um “caminhar em conjunto em direção à verdade” (DM 13). Mas esta verdade está sempre adiante, é surpresa permanente. No encontro com o outro abre-se a possibilidade de captar dimensões inusitadas desta verdade que é aletheia: permanente desvelamento. O outro é capaz de favorecer a seu interlocutor, no diálogo, a captação de certos aspectos ou dimensões do mistério divino que escapam à sua visada. Para o cristão, em particular, este desafio de aprendizado é fundamental: “Existem, pois, aspectos ‘verdadeiros’, ‘bons’, ‘belos’ – surpreendentes – nas múltiplas formas (presentes na humanidade) de pacto e entendimento com Deus, formas que não encontraram nem encontram lugar na experiência específica do cristianismo”[17].

Esta experiência de caminhada conjunta, de mútuo aprendizado e enriquecimento, é uma experiência fundamentalmente religiosa e espiritual. Na sua base encontra-se uma espiritualidade. Há uma vinculação íntima entre o diálogo inter-religioso e a espiritualidade. Não é sem razão que a partilha das experiências de oração e contemplação, enquanto expressões da busca do Mistério, vem identificada como o nível mais profundo do diálogo inter-religioso[18]. Trata-se da dimensão mais íntima e significativa da comunicação, transbordando o âmbito do conhecimento conceitual e das formulações da linguagem comum. Vive-se a profundidade de uma “comunhão acima do nível das palavras”, uma experiência autêntica e rica, que não se detém diante das diferenças, e que se encontra envolvida e abraçada pelo mistério do totalmente Outro[19]. O diálogo inter-religioso é um ato religioso, um ato espiritual, pois pressupõe uma atitude de confiança e entrega a um mistério sempre maior, que é dom e surpresa permanente. Daí a significativa imagem do diálogo como uma “viagem fraterna” de uns e outros, em clima de igualdade, em direção a tal mistério. O diálogo verdadeiro é animado por liberdade total, não podendo ser movido por oportunismos táticos. Trata-se de uma realidade auto-finalizada, que tem o seu próprio valor, não podendo ser compreendida em função de uma causa própria ou particular. O diálogo não pode exigir nada do outro, senão a disposição de ouví-lo, compreendê-lo e respeitá-lo. O que ocorre no diálogo é uma “conversão mútua”, não enquanto mudança de religião, mas enquanto transformação dos interlocutores em função do mistério da acolhida da diferença, a acolhida do outro, sem restrições, em sua diferença irrevogável[20].

 

2.    O Diálogo como adesão e abertura

 

No livro do profeta Isaías encontra-se uma pista importante para a compreensão do diálogo inter-religioso. O texto apresenta de forma admirável os dois eixos sobre os quais deve-se apoiar todo diálogo: o empenho de afirmação da identidade e o desafio da abertura: “Alarga o espaço da tua tenda, estende as cortinas das tuas moradas (...), alonga as cordas, reforça as estacas” (Is 54,2). No diálogo apresentam-se fiéis que estão comprometidos com a sua própria fé, mas igualmente disponíveis e abertos ao apelo que vem do outro interlocutor e do mistério que os envolve. Não ocorre uma dispersão da identidade ou fusão da mesma num “sincretismo” vago, mas a afirmação de sua singularidade. A abertura ao outro acontece sempre “no seio de um compromisso determinado”, no espaço de uma tradição que é assumida e amada[21]. Um dos grandes mestres do diálogo, Dalai Lama, tem sempre enfatizado em suas reflexões que a afirmação do valor da própria tradição constitui requisito para melhor reconhecer o valor e a preciosidade das outras tradições religiosas[22]. O diálogo é melhor realizado quando firmado no solo da tranqüilidade e harmonia de uma fé assumida e aprofundada. Em experiência singular vivida por monges e monjas cristãos do Mar Musa, na Síria, o diálogo é por eles percebido como exercício amoroso que se encontra ancorado numa firme experiência de adesão de fé. A profundidade da abertura à religião muçulmana, como eles mesmos confirmam, ocorre em virtude da tranqüilidade da fé em Jesus Cristo, e não de uma dúvida a seu respeito[23].

Importantes autores da antropologia contemporânea têm sublinhado a dimensão universal do fenômeno do etnocentrismo. A dicotomia “nós e outros”, a sensação de centralidade de um universo privado, constituem tendências de afirmação e reforço da identidade cultural. Há um sentido positivo inscrito em tal fenômeno, enquanto garantia de fidelidade a um conjunto de valores, mas há que manter sobre ele um permanente controle. Tal fidelidade pode, por sua vez, provocar insensibilidade a outros valores e uma crescente incomunicabilidade: “nós somos nós, eles são eles”[24]. O desafio do diálogo consiste em articular e harmonizar o desejo e o valor da distinção que marca cada identidade singular e a provocação do aprendizado da alteridade: “se quisermos ser capazes de julgar com largueza, como é óbvio que devemos fazer, precisamos tornar-nos capazes de enxergar com largueza”[25].

Em razão do etnocentrismo, há uma grande dificuldade de se perceber a diversidade das culturas como um fenômeno natural. Como sublinha Levi Strauss, tende-se a ver a diversidade como “escândalo” ou “monstruosidade” e considerar a própria sociedade e o modo particular de vida como centro referencial: o mais correto e o mais natural. Para ilustrar esta perspectiva, ele toma o exemplo do viajante sentado à janela de um trem que se move em seus trilhos próprios, com sua própria velocidade e direção. Os trens que passam em sentido paralelo, são outros trens, mas vão em direção similar e com velocidades não muito diferentes. Estes ainda são razoavelmente visíveis, quando olhados do compartimento do primeiro trem, e deles pode-se acumular alguma informação. Mas há também os trens que passam em sentido inverso. Deles não se pode adquirir senão uma “impressão confusa”, reduzindo-se a “uma perturbação momentânea do campo visual”. Sua realidade, na prática, provoca irritação, pois interrompe o curso normal da “plácida contemplação da paisagem”[26]. O exemplo apontado por L.Strauss, busca indicar que cada membro de um cultura encontra-se solidariamente ligado a ela, assim como o viajante ao seu trem. Desde o nascimento, acumula-se no indivíduo, por diligências diversificadas, um sistema complexo de referências, traduzido em juízos de valor, motivações e interesses. Este sistema o acompanha permanentemente, e “as realidades culturais de fora só são observáveis através das deformações por ele impostas, quando ele não nos coloca mesmo na impossibilidade de aperceber delas o que quer que seja”[27].

O mundo da diferença vem relegado ou desfocado em razão dos limites de informação e significação implicados na dinâmica de um lugar cultural determinado. O alcance daquilo que se pode pensar, apreciar, julgar e amar, encontra-se “aprisionado nas fronteiras de nossa sociedade”. A abertura ao diferente exige o exercício da ultrapassagem destas fronteiras, de forma a poder captar as “lacunas” e “assimetrias” que indicam o caminho de compreensão da alteridade. Desconhecer ou “obscurecer essas lacunas e assimetrias, relegando-as ao campo da diferença passível de ser reprimida ou ignorada, da mera dessemelhança, que é o que o etnocentrismo faz e está destinado a fazer (...), equivale a nos isolar desse conhecimento e dessa possibilidade, em termos literais e rigorosos, de mudarmos de idéia”[28].

Este mesmo tipo de reflexão pode ser aplicado ao campo das religiões e do diálogo inter-religioso, servindo de referência para se poder compreender a complexidade da questão e suas decorrentes exigências. Um dado prévio a qualquer reflexão e exercício do diálogo consiste no reconhecimento da realidade e valor da alteridade. A outra religião vem sempre resguardada por um mistério de incomensurabilidade e irrevogabilidade. Como indicou o teólogo Paul Knitter, “quanto mais se tenta penetrar no mundo de uma outra tradição religiosa, mediante encontros pessoais e o estudo dos textos, tanto mais se depara com um muro de diferenças que são, no final, incompreensíveis”[29]. Conhecer e avaliar realmente uma outra religião implicaria “romper” com uma perspectiva determinada e deslocar-se para este outro referencial. Não seria suficiente um mero conhecimento dos fatos de sua tradição, mas implicaria “entrar na pele do outro, calçar seus sapatos, ver o mundo, de certo modo, como o outro vê, (...) colocar para si as questões do outro, penetrar no sentido que o outro tem de ‘ser um hindu, um muçulmano, um judeu, um budista, ou qualquer outra coisa’”[30]. Uma semelhante abertura é extremamente difícil, exigindo uma singular e excepcional capacidade de compreensão, de empatia e simpatia interior. Mas independente dos esforços empenhados, haverá sempre a permanência de um enígma e de um mistério que pulsa no mais íntimo da outra tradição, que garante e preserva um espaço irredutível às pretensões de um olhar estrangeiro.

A presença e o reconhecimento deste enigma não obstruem, porém, o desafio do dinamismo dialogal. O outro é “mysterium tremendum”, que jamais pode ser complementado ou reduzido em seu significado único. Mas é também “mysterium fascinans”, enquanto convida ao encontro e se disponibiliza ao aprendizado da diferença. Não se trata, porém, de desconhecer a possibilidade de aprendizados mútuos e enriquecimentos recíprocos, levados a efeito pela salutar prática dialogal, mas de resguardar o que há de singular no outro: enquanto houver história, haverá igualmente uma situação de “contestação recíproca” e agônica que é salutar.

 

3. A acolhida do pluralismo de princípio

 

As religiões não são apenas genuinamente diferentes, mas também autenticamente preciosas. Há que honrar esta alteridade em sua especificidade peculiar. E honrar a alteridade é ser capaz de reconhecer o valor e a plausibilidade do pluralismo religioso de direito ou de princípio. A diversidade religiosa deve ser reconhecida não como expressão da limitação humana ou fruto de uma realidade conjuntural passageira, mas como traço de riqueza e valor. A diferença deve suscitar não o temor, mas a alegria, pois desvela caminhos e horizontes inusitados para a afirmação e crescimento da identidade. Os outros não são leões que rugem (1 Pd 5,8), mas janelas que possibilitam a oxigenação das identidades particulares. A abertura ao pluralismo constitui um imperativo humano e religioso. Trata-se de uma das experiências mais enriquecedoras realizadas pela consciência humana: o reconhecimento do valor da diversidade como traço e riqueza da experiência humana[31].

Reconhecer o pluralismo religioso de princípio, e não apenas de fato, significa desocultar o significado positivo das diversas tradições religiosas na globalidade do único desígnio salvífico de Deus. Esta acolhida positiva da pluralidade revela uma ampliação do olhar e atesta “a generosidade superabundante com que Deus se manifestou de muitos modos à humanidade e a resposta multiforme que os seres humanos deram à auto-revelação divina nas várias culturas”[32]. A diversidade não vem percebida como limite, mas como sinal dos dons ilimitados “escondidos” por Deus na criação e na história; um “patrimônio espiritual” que revela “todas as riquezas da sabedoria infinita e multiforme de Deus”[33]. Antes mesmo que os seres humanos se dispusessem a buscar a Deus, eles já se encontravam num espaço habitado por sua presença.

O reconhecimento do pluralismo religioso de direito vem sendo partilhado por significativos teólogos católicos nestes últimos anos, apesar da resistência encontrada em outros autores ou representantes do magistério eclesiástico.[34] O Concílio Vaticano II (1962-1965) significou um primeiro passo de reconhecimento do pluralismo religioso de fato, evitando, porém, abordar a questão da qualificação teológica das outras religiões. Os primeiros movimentos de abertura nesta direção foram realizados, em âmbito católico, pelas reflexões  produzidas pela Federação das Conferências Episcopais Asiáticas (FABC), nascida em 1970[35]. Já na Primeira Assembléia Plenária da FABC, realizada em Taiwan em abril de 1974, os bispos asiáticos sinalizaram a positividade das outras tradições religiosas no plano divino da salvação, enquanto portadoras de um “patrimônio de experiências religiosas”[36]. Esta tendência de abertura será afirmada nos documentos posteriores desta Federação e de seus organismos conexos. Destaca-se como preocupação constante da FABC a abertura ao pluralismo religioso e sua articulação com a história da salvação. Fala-se em “pluralismo receptivo”, indicando a dinâmica inter-relacional e de complementaridade que vigora entre as religiões no único plano salvífico. Para o magistério asiático, a variedade das culturas e religiões é vista como “manifestação da infinita riqueza do Deus de todos os homens”, que durante toda a história cobriu de atenção e cuidado a caminhada diversificada dos povos[37]. Retomando esta mesma sensibilidade, o breve documento do então Secretariado para os Não-Cristãos sobre a Igreja e as outras religiões (DM-1984) introduzirá em âmbito mais oficial este posicionamento de grande abertura à realidade do pluralismo religioso, sinalizando a visão da imanência universal de Deus no mundo.

O diálogo inter-religioso encontra o seu fundamento principal nesta convicção da universalidade da graça de Deus. Não há possibilidade de um controle humano sobre a dinâmica da gratuidade do Deus sempre maior, do mistério do “Deus que se dá”. São caminhos impenetráveis que animam as tradições religiosas daqueles que devem ser considerados como amigos e não concorrentes. As diversas religiões não constituem simples obra da dinâmica humana, mas “respostas ao encontro com o mistério de Deus ou a realidade última”[38]. Esta abertura ao plural, como acolhida da diferença, constitui um traço fundamental do cristianismo[39].    

As resistências que se opõem à consideração de um pluralismo de princípio encontram sua razão de ser na condição de incerteza e insegurança que tal abertura pode provocar nos indivíduos e comunidades. Como antídoto à possível relativização ou desubstancialização das identidades, afirma-se o desejo de estabilidade e fundamentação.[40] É o que se pode perceber na reação crítica apresentada pela Declaração Dominus Iesus, que relaciona a justificação do pluralismo de direito com as teorias de índole relativista, que tenderiam a comprometer a aceitação da verdade revelada[41].

A afirmação do pluralismo de princípio não significa a sedimentação de uma perspectiva relativista. Alguns traços importantes podem ser elencados para dirimir certas dificuldades que acompanham tal reflexão. Em primeiro lugar, há que sublinhar que esta abertura ao pluralismo não significa um nivelamento das experiências diversas, mas a consciência de sua diversidade. Em segundo lugar, há que frisar que esta mesma abertura não abafa o valor do testemunho particular, exigindo, porém, uma mudança em seu exercício e estilo. Este testemunho deve acontecer, não como exercício de arrogância, mas imbuído de amor, auto-doação e humildade. A riqueza de uma comunidade plural é tecida pela inter-relação de testemunhos autênticos[42]. Em terceiro lugar, a consciência do pluralismo não significa a exclusão do discernimento crítico com respeito às religiões específicas. Como indica o documento Diálogo e Anúncio, “afirmar que as outras tradições religiosas contêm elementos da graça não significa, por outro lado, que tudo, nelas, seja fruto da graça”[43]. Em quarto lugar, a afirmação do pluralismo não pode restringir-se  a uma resposta passiva ao fato da pluralidade religiosa, mas deve manter acesa a “responsabilidade para desenvolver critérios de valoração que permitam esclarecer a validez relativa de cada posição ou proposta”[44].

 

4.    A questão da verdade

 

Um dos grandes embaraços que dificultam o exercício e a reflexão sobre o diálogo inter-religioso relaciona-se à questão da verdade. O esclarecimento desta questão aparece hoje como um dos importantes desafios para todos os que se empenham nesta causa. Trata-se de um tema urgente e inevitável. Como indica Hans Küng, “nenhum problema produziu na história das Igrejas e das religiões tantas controvérsias, tantos conflitos sangrentos e até tantas ‘guerras de religião’ como o problema da verdade”[45]. A forma como o cristianismo ao longo da história interpretou sua verdade e singularidade nem sempre possibilitou uma salutar abertura ao horizonte da alteridade. A ênfase recaiu sobre a pretensão de domínio e posse absoluta da verdade, garantida pela observância de uma ortodoxia muitas vezes impiedosa[46]. Talvez um dos obstáculos mais decisivos ao diálogo inter-religioso é o sentimento de auto-suficiência e arrogância identitária. São sentimentos que acabam provocando atitudes defensivas ou agressivas. O teólogo dominicano, Christian Duquoc, em trabalho recente levantou uma hipótese que relaciona a pretensão assumida pela Igreja católica ao longo dos séculos de deter a verdade com certeza absoluta e o exercício da violência institucional. Esta cumplicidade que vincula a convicção de possuir a verdade e a violência, como indica o autor, constitui um fenômeno recorrente na história da Igreja. Para Duquoc, os conflitos provocados pela Igreja, muitas vezes seguidos de violência, não decorrem de suas “deficiências humanas” ou “imperfeições”, mas de uma firme persuasão sobre seu privilégio supremo: testemunhar a verdade na história.[47]

 Mudanças importantes aconteceram a partir do Concílio Vaticano II, com a afirmação progressiva mas cautelosa de um espírito mais ecumênico, mas sempre contrabalançada por reações de resistência abertas ou sutis. A questão central permanece, porém, viva e acesa. Uma pista importante foi apontada por Hans Küng em seu ensaio em favor de uma criteriologia inter-religiosa. A pergunta que busca responder é precisa: “existe, de fato, um caminho teológico responsável que permita aos cristãos recolher a verdade das outras religiões, sem perder a verdade da própria religião e, com isso, a própria identidade?”[48] Em sua tese, Küng defende que a verdade não constitui monopólio de nenhuma religião, o que não significa que as religiões não tenham critérios específicos de verdade. Estes critérios, válidos e fundamentais, encontram sua relevância e obrigatoriedade no âmbito interno de cada confissão religiosa, não podendo, porém, estender-se objetivamente às outras confissões.[49]

Com base na criteriologia de Küng, há que situar corretamente certas assertivas comuns na tradição cristã e católica, tanto no âmbito da cristologia como da eclesiologia. Com respeito à cristologia, podem ser mencionadas algumas, tomadas do testemunho do Novo Testamento: “Não há sob o céu, outro nome dado aos homens pelo qual devemos ser salvos” (At 4,12); “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai a não ser por mim” (Jo 14,6); “Eu te estabeleci como luz das nações, para levares a salvação até aos confins da terra” (At 13,47). Tais assertivas, entre outras, inserem-se na categoria de “afirmações de fé”. Expressam uma linguagem de “confissão de fé” e traduzem uma “verdade existencial” plausível para a comunidade dos fiéis que seguem o Novo Testamento. Esta linguagem confessional situa-se numa experiência pessoal ou coletiva, comunicando uma profundidade que marca a convicção cristã. Tais assertivas, porém, não podem ser entendidas como “linguagem objetivante ou constatante”, ou seja, verificáveis de forma plausível fora da própria fé. Pode-se afirmar como verdadeira a confissão de fé professada pelos fiéis cristãos no caráter revelador decisivo de Jesus Cristo. Para estes fiéis, o absoluto ganha em Jesus uma fisionomia viva, revelando-se para eles como a Palavra e o Caminho. Trata-se de uma “verdade existencial” experimentada na própria religião, mas que não pode ser objetivada como válida para todas as religiões[50]. E esta confissão de fé, que reforça nos cristãos a consciência da significação salvífica do acontecimento Cristo para toda a humanidade, não pode ser usada como “base para negar outras confissões de fé”[51].

Com respeito à eclesiologia, encontram-se também algumas assertivas tomadas dos documentos do Concílio Vaticano II que podem ser entendidas no âmbito da comunidade particular: “Cremos que esta única religião verdadeira se encontra na Igreja católica e apostólica, à qual o Senhor Jesus confiou o encargo de levá-la a todos os homens (...)” (DH 1); “Só pela Igreja católica de Cristo, que é o instrumento geral da salvação, pode ser atingida toda a plenitude dos meios de salvação” (UR 3); “Esta Igreja, peregrina na terra, é necessária para a salvação” (LG 14); “Os que ainda não receberam o Evangelho se ordenam por diversos modos ao Povo de Deus” (LG 16)[52]. Conforme a visão dos fiéis católicos, o cristianismo apresenta-se como uma mensagem e um caminho de salvação. Para eles, a Igreja é única e seu papel insubstituível: tornar visível para os seres humanos a mensagem de Jesus Cristo e a realidade do Reino, visível e operante na história.  É a experiência que vivenciam a partir de dentro de sua perspectiva devocional. A mensagem profética do cristianismo provoca uma seriedade existencial que se traduz em envolvimento pessoal radical e seguimento.

 Seguindo a linha do critério religioso específico, o cristianismo será experimentado como verdadeira religião para os seus fiéis. Esta percepção cristã não poderá, porém, significar exclusão da verdade presente nas outras religiões. A partir do núcleo mesmo da mensagem evangélica, os cristãos deverão perceber que o mistério de Deus é provocação permanente, também para a Igreja, no sentido de sua abertura ao Reino e à verdade presente no mistério da criação e da história. Daí a imagem importante da Igreja peregrina, a caminho, sempre aberta às surpresas de Deus. Há que reconhecer a singularidade cristã e católica, sem porém confundir “a universalidade de direito do Cristo como Verbo encarnado e a universalidade do cristianismo como religião histórica. É preciso não fazer do cristianismo uma religião absoluta, que incluiria tudo o que há de bom nas outras religiões. Nem o cristianismo histórico, nem a Igreja vista pelos homens são absolutos”[53]

Levando-se em conta o desafio do diálogo inter-religioso, a teologia cristã é convocada ao exercício hermenêutico de interpretar a mensagem cristã no novo contexto do pluralismo religioso. A mensagem cristã não possibilita uma única interpretação, mas está permanentemente aberta a múltiplas recepções. Estas, por sua vez, não podem pretender-se definitivas. A hermenêutica teológica não se aplica exclusivamente aos textos fundadores do cristianismo, mas envolve igualmente os textos da tradição cristã. O teólogo Claude Geffré propõe uma hermenêutica conciliar. Para ele, “as definições conciliares devem ser interpretadas à luz da dinâmica de correlação crítica entre a experiência cristã fundamental e as novas e atuais experiências humanas”[54]. Seguindo as regras da hermenêutica teológica, determinadas formulações assumidas pelo magistério da Igreja em certo momento histórico, podem ser transformadas em outro momento em razão da mudança de seu alcance semântico e de sua significação. O recurso à reformulação de certos enunciados pode ser, no novo momento histórico, a garantia de fidelidade à própria afirmação de fé.[55]

Algumas expressões eclesiológicas definidas no Concílio Vaticano II, e retomadas em documentos mais recentes do magistério católico, apresentam um conteúdo semântico problemático ou discutível para o momento atual, caracterizado pelo pluralismo religioso. É o que ocorre quando se afirma que só a Igreja “possui a plenitude dos meios de salvação”[56], que ela é “necessária para a salvação” (LG 14)[57], e que os fiéis das outras tradições estão “ordenados” à Igreja (LG 16).[58] A utilização da expressão “plenitude”, aplicada à Igreja, é ambígua, como mostrou recentemente Claude Geffré. Para este autor, “afirmar que a plenitude da verdade encontra-se no cristianismo, não é afirmar que ela encontra-se só na Igreja católica, na medida em que ela não é senão uma das figuras históricas do cristianismo. E o cristianismo mesmo, na sua tradição histórica, é somente uma das expressões da plenitude do mistério de Deus como se manifesta no Novo Testamento”[59]. Infelizmente, o recurso a tais expressões vem sendo utilizado de forma discriminatória com respeito às outras tradições religiosas. Na Declaração Dominus Iesus, faz-se recurso ao conceito de “plenitude dos meios de salvação” para diferenciar os membros da Igreja com respeito aos adeptos das outras religiões, que segundo a Declaração, estariam em “situação gravemente deficitária”[60]. Semelhante centralização eclesiocêntrica, encontra-se presente no documento da Comissão Teológica Internacional sobre o cristianismo e as religiões. Segundo o documento, “somente na Igreja, que está em continuidade histórica com Jesus, pode-se viver plenamente seu mistério”[61]; é a Igreja “o lugar privilegiado da ação do Espírito”[62]. Em função do acento dado à necessidade da Igreja para a salvação e da “ordenação” à Igreja dos não-cristãos, o documento citado titubeia quando busca tratar a questão da função salvífica das outras religiões. O máximo que consegue afirmar, e de forma ainda insegura, é a possibilidade de uma “certa função salvífica”, mas logo em seguida reitera que tal função não pode ser equiparada “à função que a Igreja realiza para a salvação dos cristãos e dos que não o são”[63].

Ao examinar a obra de diversos teólogos que trabalham o tema do diálogo inter-religioso, verifica-se que a maior dificuldade de avanço na reflexão relaciona-se com o “embaraço” eclesiológico. As expressões cunhadas pela tradição são de tal forma decisivas e vinculantes para os mesmos, que o trabalho hermenêutico fica dificultado.[64] Torna-se, porém, mais do que urgente o exercício de um “salto qualitativo” na eclesiologia, que concretize um enunciado mais aberto da mesma doutrina no contexto do crescente pluralismo religioso.

 

5.    Uma eclesiologia dialógica

 

Importantes reflexões realizadas sobre os desafios de uma eclesiologia dialogal tem espocado nos últimos anos, sobretudo a partir das experiências inovadoras realizadas na Ásia. Não mais fazem sentido as teses que reiteram a idéia de uma única religião verdadeira. Hoje em dia, a relação entre o cristianismo e as outras religiões deve ser concebida num quadro mais orgânico da realidade universal, em termos de “interdependência relacional”, ou de “diferentes modalidades de encontro da existência humana com o Mistério divino”[65]. Neste quadro dinâmico, o modelo eclesiológico que se impõe é o “extroverso” ou “dialógico”, ou seja, de uma Igreja que se afirma na relação, cuja identidade não se traduz como produto cristalizado e imutável, mas se realiza como “realidade vivente” (living Church). Esta eclesiologia viva pode ser captada nos diversos documentos produzidos pela Federação das Conferências Episcopais Asiáticas (FABC). Acionada pelo desafio plural, a Igreja não eclipsa sua identidade essencial, mas redimensiona o exercício de sua sacramentalidade na história. A perspectiva que se abre é de uma Igreja “com os outros e para os outros”, voltada e orientada para o horizonte mais amplo do Reino de Deus.[66]  E este horizonte mais amplo, é igualmente animado por uma simbologia inter-religiosa, pois o Reino de Deus é um “mistério que provoca uma profunda relação entre todas as religiões sem ligar-se de maneira exclusiva a nenhuma delas”[67]. Esta afirmação de uma sacramentalidade relacional da Igreja, indica que o diálogo entre Deus e a humanidade acontece mediante a Igreja e outras formas de mediação simbólica do Reino.[68] A sacramentalidade da Igreja não vem entendida como “exclusiva ou exaustiva”, mas relacional[69]. A realidade do pluralismo religioso vem, assim, integrada na própria inteligibilidade da Igreja[70].   

Esta nova perspectiva eclesial repercute necessariamente na compreensão da missão. Na perspectiva do pluralismo de princípio, vigora a chave hermenêutica da presença universal do Mistério em toda a criação e história. A missão eclesial não perde o seu lugar, mas vem redefinida em chave reinocêntrica[71]. O testemunho permanece como essencial, mas sempre entendido na dinâmica do “intercâmbio de dons”. Os cristãos não têm porque omitir para os outros a sua experiência de encontro com o Senhor, a alegria deste “mistério de amor”. Este desejo de compartilhá-lo com os outros deve, porém, ser motivado por este mesmo amor[72]. O testemunho autêntico ocorre não em razão de uma obrigação ou “mandato”. Um testemunho realizado sob tais bases provoca, antes, a crise e o descrédito da própria Igreja.[73] E o fundamental não é a provocação em favor da mudança de religião, mas da mudança de perspectiva de vida: de uma vida auto-centrada para uma vida centrada no mistério dos outros e no mistério de Deus. Daí ser a conversão mais profunda a que direciona todos para o mistério de Deus.

 

6.    A teologia interpelada: à quisa de conclusão

 

Os teólogos da libertação mostraram com grande propriedade que a teologia é sempre ato segundo. O momento prévio e primeiro é sempre pontuado pelo compromisso vivo. Sem esta pré-condição a teologia não pode firmar-se em solo profundo e produtivo. Aplicando ao campo aqui discutido, há que sublinhar que a experiência do diálogo inter-religioso precede igualmente a reflexão teológica, como ato primeiro. A teologia das religiões nasceu do solo irrigado pela prática dialogal e é deste solo que continua a haurir suas inspirações e hipóteses mais profundas. A teologia das religiões constitui uma resposta, prolongamento e reapropriação teórica do diálogo inter-religioso e seus desafios.[74]  

Não só a teologia das religiões vem provocada pelo diálogo inter-religioso, mas toda a teologia. Com base na realidade do pluralismo religioso e na práxis do diálogo, toda a reflexão teológica vem acionada a buscar uma nova interpretação da realidade religiosa pluriforme envolvente. No campo do cristianismo este desafio se faz fundamental. Infelizmente, tanto a mentalidade comum dos cristãos como a reflexão teológica, “continuam trabalhando inconscientemente com grande parte dos pressupostos anteriores”[75]. Verifica-se ainda a presença, sutil ou velada, de um axioma que moldou toda a tradição cristã: “extra ecclesiam nulla sallus”. Este axioma constitui a expressão ideológica da pretensão que tem movido a Igreja católica de ser a única religião verdadeira. A terminologia teológica que anima ainda hoje muitos pregadores cristãos e também teólogos, como indica Dupuis, está ainda eivada de um “vocabulário deletério com respeito aos ‘outros’”. Vigora ainda a presença negativa de termos como “pagãos”, “infiéis”, “não-cristãos” etc. Faz-se necessário e urgente não apenas uma “purificação da memória”, mas igualmente uma “purificação da linguagem teológica”.[76]

A abertura teológica que acompanhou o Concílio Vaticano II (1962-1965) já significou um primeiro passo de sensibilização para as outras tradições religiosas. Permanece, porém, como um desafio imprescindível um “salto qualitativo da teologia cristã”, em todos os seus tratados, no sentido de uma maior valorização e fundamentação teológica da experiência religiosa dos outros. Trata-se de condição essencial para a manutenção da credibilidade da mensagem cristã no mundo multi-cultural e multi-religioso da atualidade.[77] Abre-se aqui um espaço fundamental para a dimensão hermenêutica da teologia, enquanto possibilidade real de “alargamento do horizonte do discurso teológico”. Uma teologia hermenêutica busca correlacionar de forma criativa a experiência contextual presente e o testemunho da experiência fundante confiada à memória da tradição eclesial. O pensamento teológico é convidado a inserir-se numa dinâmica ou movimento criativo que articula de forma viva o passado e o presente, expondo-se, assim, ao risco de uma interpretação nova do cristianismo para o tempo presente.[78] 

Em texto alvissareiro da década de 60, o grande teólogo alemão Karl Rahner lançou as bases de questionamento da assim chamada “teoria do acabamento”, que definia as outras religiões como “religiões naturais”, enquanto expressão do movimento do ser humano para Deus. Segundo esta visão, só o cristianismo seria uma religião sobrenatural, sendo que todas as outras tradições encontrariam nele o seu acabamento e realização.[79] Para Rahner, as outras religiões não apresentam unicamente “elementos de uma natural crença em Deus”, mas igualmente “substanciais traços sobrenaturais da graça, concedida por Deus ao homem em razão de Cristo”[80]. Esta tese de Rahner reaparecerá no decreto Ad gentes (n.9), do Concílio Vaticano II: “O que de verdade (veritatis) e graça (gratiae) há no coração e no espírito dos homens ou nos ritos e culturas próprias dos povos, não só não se perde, mas é purificado, elevado e consumado para a glória de Deus(...)”[81]. O espírito que preside este número da Ad Gentes encontrará ressonância em documentos mais recentes do magistério como Diálogo e Missão (1984) e Diálogo e Anúncio (1991) e o seu alcance é revelador, como indica o teólogo Andrés Torres Queiruga:

 

Reconhecer que há ‘verdade e santidade’ nas demais religiões significa, direta e imediatamente, que os homens e mulheres que as praticam se salvam nelas e por elas; e não a simples título individual, nem muito menos à margem ou apesar delas. O que, por sua vez, supõe uma guinada de cento e oitenta graus na perspectiva, pois isso eqüivale a dizer que Deus está se revelando e exercendo a sua salvação em todas e cada uma das religiões, sem que jamais algum homem ou mulher tenham sido privados da oferta de sua presença amorosa.[82]

 

A preservação deste fundamental espírito de abertura constitui a grande tarefa teológica para este novo milênio que se inicia. Uma abertura que possa suscitar o encorajamento teológico necessário para ampliar a compreensão dos desígnios misteriosos de Deus e dos caminhos que os realizam.

 

 

 

 



[1] K-J.KUSCHEL & W.BEUKEN, “Editorial - A violência assusta – como superá-la”, Concilium (Br) n. 272 (1997) 5. Ver também: F.HOUTART, “O culto da violência em nome da religião”, Concilium (Br) n. 272 (1997) 7-17.

[2] J.SARAMAGO, “O fator Deus”, Folha de São Paulo, 19 de setembro de 2001, p. 8 – Especial Guerra na América; S.RUSHDIE, “O nome do problema é Deus”, Folha de São Paulo, 17 de março de 2002,  p. A 29; U.GALIMBERTI, “Quando gli dei prendono le armi”, La Repubblica,  06 novembre 2001.

[3] C.GEFFRÉ, Profession Théologien: quelle pensée chrétienne pour le XXI siècle? Paris: Albin Michel, 1999, pp. 33-34 ( tr. it. : Professione teologo: quale pensiero cristiano per il XXI secolo? Cinisello Balsamo: San Paolo, 2001 ).

[4] E.SCHILLEBEECKX, “Religião e violência”, Concilium (Br) n. 272 (1997) 171.

[5] JOÃO PAULO II, “Discorso di Giovanni Paolo II”, Il Regno-Documenti n. 3 (2002) 76.

[6] G.GEERTZ, Nova luz sobre a antropologia, Rio de Janeiro: Zahar, 2001, p. 84.

[7] J-M R.TILLARD, Credo nonostante..., Bologna: EDB, 2000, p. 34.

[8] M.BUBER, Eu e tu, São Paulo: Cortez & Moraes, 1977, p. 32; FABC, “Teses sobre o diálogo inter-religioso”, Sedoc 33 / n. 281 (2000) 51; JOÃO PAULO II, Ut Unum Sint, São Paulo: Paulus, 1995,  n. 28.

[9] SECRETARIADO Para os Não Crentes, A Igreja e as outras religiões, São Paulo: Paulinas, 2001, n. 3. Trata-se do documento conhecido como Diálogo e Missão (DM), publicado originalmente em 1984.

[10] FABC, Teses sobre o diálogo inter-religioso, doc.cit., p. 62 e tb. 60-61. Como indica o documento da FABC, “o diálogo é um processo. Ele começará normalmente com a tolerância e a coexistência pacífica. Então ele vai se transformando em um diálogo de vida, promovendo a aceitação e até mesmo a admiração mútuas.”. Como passos seguintes podem ocorrer a colaboração em projetos comuns e a partilha em profundidade das experiências espirituais. Ibidem, p. 63.

[11] P.TILLICH, Le christianisme et les religions, Paris: Aubier, 1968, p. 133. Este traço essencial do diálogo não foi captado pela Dominus Iesus, para a qual a paridade que é pressuposto do diálogo refere-se exclusivamente à “dignidade pessoal das partes, não aos conteúdos doutrinais”: CONGREGAÇÃO para a Doutrina da Fé, Declaração Dominus Iesus, São Paulo: Paulinas, 2000, n. 22.

[12] C.GEFFRÉ, Croire et interpréter, Paris: Cerf, 2001, p. 102-103 ( tr. it. : Credere e interpretare: la svolta ermeneutica della teologia, Brescia: Queriniana, 2002).

[13] J.DUPUIS, Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, São Paulo: Paulinas, 1999, p. 516.

[14] PONTIFÍCIO Conselho para o Diálogo Inter-religioso, Diálogo e anúncio, Petrópolis: Vozes, 1991, n. 47. Este documento será cifrado como DA.

[15] C.GEFFRÉ, Croire et interpréter, op.cit., p. 103.

[16] J.O’LEARY, La vérité chrétienne à l’âge du pluralisme religieux, Paris: Cerf, 1994, p. 46. Em direção semelhante afirmou Schillebeeckx que “há mais verdade (religiosa) em todas as religiões no seu conjunto do que numa única religião, o que também vale para o cristianismo”: E.SCHILLEBEECKX, História humana revelação de Deus, São Paulo: Paulus, 1994, p. 215.

[17] E.SCHILLEBEECKX, História humana revelação de Deus, op.cit., p. 215; J.DUPUIS, Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, op.cit., p. 521.

[18] SECRETARIADO para os Não-Cristãos, A igreja e as outras religiões, doc.cit., n.35.

[19] O grande místico cristão, Thomas Merton, expressou e vivenciou de forma admirável esta experiência de comunicação em profundidade. Para ele, só é capaz de alcançar tal nível de relação aquele que ultrapassa a prática das tradições exteriores: “deve ser um exemplo vivo da realização tradicional e interior. Deve estar completamente aberto à vida e à nova experiência por ter utilizado integralmente sua própria tradição e a ter ultrapassado. Isto lhe permitirá encontrar a disciplina de um outro, a tradição aparentemente estranha e remota, e encontrar um terreno comum de entendimento verbal com ele. O nível ‘pós-verbal’ seria, pelo menos idealmente, aquele em que ambos se encontram além de suas próprias palavras e de seu próprio entendimento, no silêncio de uma experiência máxima, suprema, que possivelmente não poderia ocorrer se eles não se tivessem encontrado e falado...”: T.MERTON, O diário da Ásia, Belo Horizonte: Editora Vega, 1978, p. 248.

[20] J.DUPUIS, Il cristianesimo e le religioni, op.cit., p. 27; R.PANIKKAR, Entre Dieu et le cosmos, Paris: Albin Michel, pp. 150 ,167,172.

[21] P.RICOEUR, Em torno ao político: leituras 1, São Paulo: Loyola, 1995, pp. 188-189; J-M.R.TILLARD, Dialogare per non morire,  Bologna: EDB, 2001,  pp. 34-35.

[22] DALAI LAMA, A bondade do coração: uma perspectiva budista sobre os ensinamentos de Jesus, Lisboa: Edições Asa, 1997, p. 55;

[23] M.LUCCHESI, Os olhos do deserto, Rio de Janeiro: Record, 2000, pp. 56-57.

[24] C.GEERTZ, Nova luz sobre a antropologia, op.cit., pp. 69-73.

[25] Ibidem, p. 85.

[26] L.STRAUS, “Raça e história”, in Id. Os pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1980, pp. 66-67; C.GEERTZ, Nova luz sobre a antropologia, op.cit., p. 75.

[27] L.STRAUSS, “Raça e história”, in op.cit., p. 66.

[28] C.GEERTZ, Nova luz sobre a antropologia, op.cit., p. 76.

[29] P.KNITTER, Una terra molte religioni, Assisi: Cittadella Editrice, 1998, p. 33.

[30] In J.DUPUIS, Rumo a uma teologia do pluralismo religioso, op.cit., p. 517-518.

[31] R.PANIKKAR, Entre Dieu et le cosmos, op.cit., p. 166.

[32] J.DUPUIS, Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, op.cit., p. 526. Para Dupuis, o pluralismo religioso encontra o seu fundamento na “imensidade de um Deus que é amor e comunicação”. A iniciativa de auto-comunicação deste mistério de amor - muitas vezes e de forma diversificada - nas tradições religiosas, expressa a natureza mesma de sua comunicação transbordante à humanidade: uma maneira de “prolongar para fora da vida divina a comunicação plural intrínseca àquela mesma vida.”:  J.DUPUIS, Il cristianesimo e le religioni, op.cit., pp. 468-469 e 43.

[33] SECRETARIADO para os Não-Cristãos. A Igreja e as outras religiões, doc.cit., ns. 41, 22 e 26.

[34] Cf. E.SCHILLEBEECKX, História humana revelação de Deus, op.cit., pp. 212 e 216; J.DUPUIS, Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, op.cit., pp. 526-528; Id. Il cristianesimo e le religioni, op.cit., pp. 42-43 e 466-470; C.GEFFRÉ, Croire et interpréter, op.cit., pp. 93-100; M.AMALADOSS, Rinnovare tutte le cose: dialogo, pluralismo ed evangelizazione in Asia, Roma: Arkeios, 1993, pp. 123-140; R.PANIKKAR, Entre Dieu et le cosmos, Paris: Albin Michel, 1998, p. 166.

[35] O que já pode ser observado na Declaração sobre a evangelização da Ásia hoje, resultado da Primeira Assembléia Plenária da FABC, realizada em Taiwan em abril de 1974. Uma série de outros documentos importantes desta mesma Federação de Bispos ou das repartições a ela associadas estarão sintonizados com esta perspectiva de abertura. Cf. FEDERAZIONE delle Conferenze Episcopali Asiatiche, Documenti della Chiesa in Asia, Bologna: EMI, 1997.

[36] Ibidem, p.62 (n. 70). O documento da I Assembléia da Federação dos Bispos Asiáticos não se limita, porém, a afirmar a positividade das outras tradições religiosas. Sinaliza um avanço ao mostrar que as religiões não significam somente experiências naturais (“de baixo”), mas expressam a presença de Deus que atrai para si os povos asiáticos. Nesse sentido, foram acolhidas como “instrumento mediante o qual a iniciativa de Deus entrar em comunhão com o homem encontrou realização, e continua a encontrá-la ainda hoje”: M.M.QUATRA, Regno di Dio e missione della Chiesa nel contexto asiatico: uno studio sui documenti della FABC (1970-1995), Roma, 1998, Tese (Doutorado em Missiologia) – Faculdade de Missiologia, Pontifícia Universidade Gregoriana, p. 185.

[37] M.M.QUATRA, Regno di Dio..., op.cit., p. 515.

[38] FABC, O que o Espírito diz às Igrejas, in Sedoc 33 / n. 281 (2000) 45.

[39] E.SCHILLEBEECKX, História humana revelação de Deus, São Paulo: Paulus, 1994, p. 213; J.S.O’LEARY, La vérité chrétienne à l’âge du pluralisme religieux, Paris: Cerf, 1994, p. 13; W.ARIARAJAH, La Biblia y las gentes de otras religiones, Santander: Sal Terrae, 1998, p. 64-65.

[40] A atual dinâmica presente no mundo das Igrejas de afirmação da identidade, e radicalizada nos movimentos fundamentalistas, expressa “uma forma de auto-afirmação e, freqüentemente, uma expressão do temor de perder a si  mesmo”.  As dificuldades de abertura ao ecumenismo (e ao diálogo inter-religioso) traduzem, na prática, o temor da abolição da “identidade confessional” : W.KASPERS, “Situazione e visione del  movimento ecumenico”, Il Regno-Attualità (It) n. 4 (2002) 136.

[41] CONGREGAÇÃO para a Doutrina da Fé, Declaração Dominus Iesus, doc.cit., n. 4.

[42] W.ARIARAJAH, La Biblia y las gentes de otras religiones, op.cit., p. 115 e 119.

[43] PONTIFÍCIO Conselho para o Diálogo Inter-religioso,  Diálogo e anúncio, doc.cit.  n. 31.

[44] D.TRACY, Pluralidad y ambigüedad: hermenéutica, religión, esperanza, Madrid: Trotta, 1997, p. 139.

[45] H.KÜNG, Teologia a caminho: fundamentação para o diálogo ecumênico, São Paulo: Paulinas, 1999, p. 262.

[46] E.SCHILLEBEECKX, História humana revelação de Deus, op.cit., p. 211.

[47] C.DUQUOC, “Credo la Chiesa”: precarietà istituzionale e Regno di Dio, Brescia: Queriniana, 2001, p. 26. Como sublinha Duquoc, a inquisição não nasceu do laxismo, mas do exercício zeloso pela fé e a verdade: Ibidem, p. 135.

[48] H.KÜNG, Teologia a caminho, op.cit., p. 262.

[49] Não creio ser pertinente a crítica implícita tecida pelo Documento da Comissão Teológica Internacional à criteriologia de Küng, ao sublinhar que tal perspectiva acaba por “diminuir ou privatizar” o problema da verdade das religiões. O que ocorre, de fato, é que esta complexa questão não pode ser trabalhada de forma discriminante para com as outras religiões. Já Schillebeeckx sustentou que esta questão deve esta situada num “círculo hermenêutico” e sua resposta definitiva somente em chave escatológica. Cf. E.SCHILLEBEECKX, História humana revelação de Deus, op.cit., p. 210-211.

[50] H.KÜNG, Teologia a caminho, op.cit.,  p p. 284 e 286; E.SCHILLEBEECKX, História humana revelação de Deus, op.cit., p. 190.

[51] W.ARIARAJAH, La Biblia y las gentes de otras religiones, op.cit, p. 114 e 95. Na visão do teólogo Andrés Torres Queiruga, “o diálogo das religiões obriga a revisar com absoluta seriedade o ‘cristocentrismo’”. Para ele, certas frases do repertório cristão, que podem ter sentido numa linguagem imediatamente confessante, deveriam “ser eliminadas, não só por serem psicologicamente ofensivas para os demais, mas por serem objetivamente falsas, pois implicam a negação de toda verdade nas demais religiões, incluído o Antigo Testamento”. Este autor sinaliza a importância da convicção cristológica vivenciada pelos cristãos, mas para ele, tal convicção não pode acontecer como uma imposição, mas deve ser postulada no respeito para com aqueles que professam uma convicção distinta. Sinaliza igualmente que esta mesma convicção “deve ser apresentada como proposta aberta ao diálogo, ao contraste e à verificação”: A.T.QUEIRUGA, Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, São Paulo: Paulinas, 2001, pp. 344-345 e 347-348.

[52] ENCHIRIDION Vaticanum  1 – Documenti ufficiali del Concilio Vaticano II, Bologna: EDB, 1996. As siglas citadas correspondem: DH: Declaração Dignitatis Humanae (sobre a liberdade religiosa); UR: Decreto Unitatis Redintegratio (sobre o ecumenismo); LG: Constituição Dogmática Lumen Gentium (sobre a Igreja).

[53] C.GEFFRÉ, “A fé na era do pluralismo religioso”, in F.TEIXEIRA (Org.), Diálogo de pássaros, São Paulo: Paulinas, 1993, p. 67.

[54] C.GEFFRÉ, Croire et interpréter, op.cit., p. 46.

[55] Ibidem, p. 49. Em linha semelhante de reflexão, o teólogo Juan Luis Segundo indicou com precisão que “nenhuma fórmula é, indefinidamente,  plena e perfeita na expressão da verdade. Assim, deve ser complementada cada vez que novas experiências de fé ou novos conhecimentos humanos exigem resolver questões, ou descartar erros que a antiga fórmula não podia prever”. Para este autor, “as fórmulas têm que ser reformadas para que a verdade que veiculam seja e permaneça viva” :  J.L.SEGUNDO, O dogma que liberta, São Paulo: Paulinas, 1991, pp. 388 e 389.

[56] JOÃO PAULO II, Sobre a validade permanente do mandato missionário – Carta encíclica Redemptoris Missio, Petrópolis: Vozes, 1991, n. 55 (siglada aqui como RM). A compreensão mais profunda do diálogo fica praticamente abafada  na forma como esta encíclica o apresenta: “O diálogo deve ser conduzido e realizado com a convicção de que a Igreja é o caminho normal de salvação e que só ela possui a plenitude dos meios de salvação” (RM 55). Daí não se estranhar a reação que causou em teólogos como J.Hick, que sobre este mesmo número afirmou: “fica claro que a intenção por trás disso não é a de cancelar o ímpeto de converter toda a raça humana a uma fé cristã explícita”. J.HICK, A metáfora do Deus encarnado, Petrópolis: Vozes, 2000, p. 121.

[57] O teólogo Otto Hermann Pesch sublinhou que esta tese “de que a Igreja é ‘necessária’ para a salvação’ já não se entende, de algum tempo para cá – e sob correção de anteriores concepções rigoristas – como necessidade insubstituível duma pertinência jurídica à Igreja católica romana”: O.H.PESCH, “A obra da graça divina como justificação e santificação do homem”, Mysterium Salutis IV/8, Petrópolis: Vozes, 1978, p. 89.

[58] Uma idéia correlata com esta de ordinantur, tomada de São Tomás de Aquino, é a de eclesialização da graça, segundo a qual a Igreja seria a expressão mais perfeita da ação do Espírito, e esta ação tenderia a  levar  todos os seres humanos à comunidade onde ela pudesse melhor se expressar, ou seja, à Igreja. Esta idéia que encontrou forte resistência entre os Reformadores, continua ainda presente no campo católico.

[59] C.GEFFRÉ, Profession Théologien: quelle pensée chrétienne pour le XXI siècle? Paris: Albin Michel, 1999, p. 257. Em crítica à concepção de um “ecumenismo de retorno”, vigente até o Vaticano II, Walter Kaspers busca sinalizar a correta interpretação cristocêntrica do ecumenismo conciliar, que interdita qualquer “pretensão arrogante” da Igreja católica, no sentido de um monopólio da salvação. Retoma a bela imagem da Igreja peregrina, de uma “ecclesia semper purificanda”, que não busca simplesmente a “anexação das outras Igrejas”, mas que, no respeito à sua alteridade específica, visa a realização de uma comunhão mais profunda: W.KASPERS, “L’única Chiesa di Cristo”, Il Regno-Attualità (It) n. 4 (2001) 129-130.

[60] CONGREGAÇÃO para a Doutrina da Fé, Declaração Dominus Iesus, doc.cit., n. 22. Restabelecendo o campo da apologética católica, esta Declaração provocou um grande mal estar entre os teólogos e organismos comprometidos com a causa do ecumenismo e do diálogo inter-religioso, levando muitos a duvidar do empenho ecumênico da Igreja católica. De todas as partes ocorreram reações. O cardeal Walter Kaspers, atual presidente do Pontifício conselho para a unidade dos cristãos, reagiu explicitamente ao afirmar que a Declaração,  ofendeu  e feriu não só vários de seus amigos, mas a ele mesmo:  W.KASPERS, “L’única Chiesa di Cristo: situazione e futuro dell’ecumenismo”, Il Regno-Attualitá (It) n. 4 (2001) 128. Avaliando alguns recentes documentos da Igreja católica, entre os quais a Dominus Iesus, o teólogo Michael Amaladoss afirmou que os mesmos, desafortunadamente, oferecem “razões suficientes para suspeitar de seus motivos”. Na sua visão, que compartilho, a pretensão de superioridade presente em atitudes da Igreja católica, que advoga a plena posse dos dons a oferecer, “é uma atitude que não ajuda ao diálogo”: M.AMALADOSS, “Dificultades del dialogo com las religiones orientales”,  Iglesia viva (Es) n. 208 (2001) 1-2 

[61] COMISSÃO Teológica Internacional, O cristianismo e as religiões, São Paulo: Loyola, 1997, n. 49c.

[62] Ibidem, ns. 56 e 61.

[63] Ibidem, ns. 84 e 86.

[64] Em artigo publicado em 1994 na revista Perspectiva Teológica e anexado em livro posterior, o teólogo Mário de França Miranda defende uma tese que será literalmente seguida no documento da Comissão Teológica Internacional, da qual este teólogo faz parte. Trata-se da questão da legitimidade salvífica das outras tradições religiosas. Para França, torna-se problemático afirmar de forma global e apriorística que as religiões são caminhos legítimos de salvação. Em sua opinião, carece de sustentação “a passagem sutil de um dado de fato (cada um se salva necessariamente dentro de um contexto cultural-religioso) para uma afirmação teológica que faz, sem mais, das religiões caminhos salvíficos legítimos”: M.F.MIRANDA,  O cristianismo e as religiões, São Paulo: Loyola, 1998, pp. 17-18. Ver ainda: J.MOINGT, Rencontre des religions, Études (Fr) n. 366/1 (1987) 105. Mesmo em autores mais abertos, como Jacques Dupuis, verifica-se uma dificuldade de avançar neste campo eclesiológico: cf. J.DUPUIS, Il cristianesimo e le altre religioni, op.cit., pp. 386-387, 395, 473-474.

[65] J,DUPUIS, Il cristianesimo e le religioni, op.cit., p. 181.

[66] Mas como sublinha Duquoc, a Igreja viverá sempre nesta  “situação obscura, entre a opacidade da história e a luz do Reino”. Este Reino, para o qual tende a Igreja desde a sua origem, é também o “seu tormento”, na medida em que “relativiza o instituído,  que é sempre necessário, e o dinamiza, incitando-o à reforma”: C.DUQUOC, “Credo la Chiesa”: precarietà istitucionale e Regno di Dio, op. cit.,  pp. 316 e 24-25.

[67] M.M.QUATRA, Regno di Dio e missione della Chiesa nel contesto asiatico, op.cit., p. 325.

[68] Como indica J.Dupuis, “o fato de a Igreja ser o sacramento do Reino de Deus universalmente presente na história não implica necessariamente que ela exerça uma atividade de mediação universal da graça em favor dos membros das outras tradições religiosas que entraram no Reino de Deus respondendo ao convite de Deus pela fé e pelo amor”: J.DUPUIS, Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso,  op.cit.,  p. 485.

[69] M.M.QUATRA, Regno di Dio e missione della Chiesa nel contesto asiatico, op.cit.,  pp. 521 e 326-327.

[70] Ibidem, p. 520.

[71] Ibidem, p. 448s.

[72] PONTIFÍCIO Conselho para  Diálogo Inter-religioso, Diálogo e anúncio, doc.cit., n. 83. Em reflexão recente, João Paulo II sublinhou que “o diálogo não pode ser fundado sobre a indiferença religiosa”, sendo que sua realização implica o dom de um testemunho de esperança e alegria. Este dom que se anuncia, acontece no respeito à liberdade de cada um. Mas se o diálogo envolve a “reciprocidade de dons”, ele implica igualmente a disposição da escuta. A Igreja, sublinha o papa, “jamais cessará de indagar”, e os sinais da presença do Espírito estarão sempre a ajudar os cristãos, mediante o diálogo com a experiência humana universal, “a compreender mais profundamente a mensagem de que são portadores”: JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte, São Paulo: Paulus/Loyola, 2001, ns. 55-56.

[73] W.ARIARAJAH, La Biblia y las gentes de otras religiones, op.cit., pp. 89-100.

[74] J-C.BASSET, Le dialogue interreligieux: histoire et avenir, Paris: Cerf: 1996, p. 412.

[75] A.T.QUEIRUGA, Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, op.cit., p. 318; J.L.SEGUNDO, O dogma que liberta,  op.cit., p. 403.

[76] J,DUPUIS, Il cristianesimo e le religioni, op.cit., p. 24.

[77] Ibidem, p. 476.

[78] C.GEFFRÉ, Le christianisme au risque de l’interpretation, Paris: Cerf, 1983; Id. Un nouvel age de la théologie, Paris: Cerf, 1987; W.JEANROND, Introduction à l’herméneutique théologique: développement et signification, Paris: Cerf, 1995; J-P.JOSSUA & N-J.SED (Ed.), Interpréter: hommage amical à Claude Geffré, Paris: Cerf, 1992.

[79] Há que reconhecer que esta visão permanece ainda hoje vigente no magistério eclesiástico católico  (Redemptoris Missio n.45) e em outros importantes documentos teológicos (Comissão Teológica Internacional, O cristianismo e as religiões, n. 103).

[80] K.RAHNER, “cristianesimo e religioni non cristiane”, in Id. Saggi di antropologia soprannaturali, Roma: Paoline, 1965, p. 545.

[81] Enchiridion Vaticanum 1, Op.cit., p. 1081. A propósito cf. tb. J.DUPUIS, Il cristianesimo e le religioni, op.cit., pp. 29-30.

[82] A.T.QUEIRUGA, Do terror de Isaac ao Abbá de Jesus, op.cit., pp. 318-319.

(Publicado na Revista Perspectiva Teológica, v. 34, n. 93, maio/agosto 2002, pp. 149-177)

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