terça-feira, 20 de abril de 2010

O episcopado latino-americano diante do diálogo inter-religioso

O EPISCOPADO LATINO-AMERICANO

DIANTE DO DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO

 

Faustino Teixeira

PPCIR/UFJF

 

Resumo

 

Este artigo busca enfocar o posicionamento do episcopado da América Latina e do Caribe com respeito ao tema do diálogo inter-religioso, tendo por base os textos das Conferências de Medellín, Puebla e Santo Domingo, bem como o Documento de Participação publicado em vista da V Conferência Geral a ser realizada em 2007 na cidade de Aparecida do Norte (Brasil). A hipótese avançada no artigo indica que o tema do diálogo inter-religioso não ganhou ainda sua devida importância na reflexão do episcopado do continente. O que se verifica é uma diminuição crescente de interesse pela questão e uma afirmação cada vez mais decisiva em favor da retomada da identidade católica e da ênfase no anúncio evangelizador explícito.

 

  Introdução

 

Um olhar retrospectivo sobre as quatro Conferencias Gerais do Episcopado Latino-Americano, bem como para os preparativos para a V Conferencia que será realizada na cidade de Aparecida do Norte em 2007, indica que o tema do diálogo inter-religioso não ocupa um lugar de destaque nas atenções dos bispos latino-americanos. A preocupação com o tema, que pode ocorrer em casos específicos, não fica tão evidenciada nos documentos que traduzem as opções fundamentais definidas pelos bispos desde o encontro de Medellín, em 1968. Esta perspectiva talvez venha reforçada pelo fato do continente latino-americano ter uma marca cristã bem definida. Com base no caso brasileiro, os dados do último Censo do IBGE (2000) mostraram que o catolicismo registra 73,8% da declaração de crença, enquanto os evangélicos alcançam 15,4%. Somando-se estes dados verifica-se que quase 90% da declaração de crença indica uma filiação cristã. Mas já se começa a perceber uma situação nova, marcada pela destradicionalização e pela pluralização do campo religioso. Uma situação distinta ocorre na Ásia, onde o catolicismo tem uma presença bem minoritária e se vê confrontado com uma perspectiva plural bem mais definida. No caso dos documentos da Federação das Conferências Episcopais Asiáticas (FABC) a questão do dialogo inter-religioso encontra um lugar de grande destaque, já desde a primeira metade da década de setenta[1]. O objetivo deste artigo é buscar compreender as razões que levam o episcopado latino-americano a priorizar outras questões em sua atuação pastoral e indicar a importância de uma nova atenção ao tema do pluralismo religioso e do diálogo inter-religioso.

 

  1. Os passos de Medellín e Puebla

 

  Os eixos temáticos que pontuaram estas  duas  Conferências giraram em torno da promoção humana, da opção pelos pobres e a urgência da libertação, embora deva-se salientar que a Conferencia de Puebla (1979) marcou um novo momento caracterizado pela inserção de novos matizes que temperaram a contundência original de Medellín[2].

 

Na Conferência de Medellín não há referencia explícita ao diálogo inter-religioso, mas percebe-se uma sensibilidade do episcopado à questão geral do diálogo: do “diálogo sincero” no interior da própria Igreja, no sentido do respeito à “diversidade legítima” (16,22[3]); do diálogo com a juventude e os universitários (5,13 e 7,18); do dialogo teológico com os “diversos ramos do saber” (4,6); do dialogo com os artistas e homens de letras (7,17) etc. Ao tratar a questão da escola católica, o documento de Medellín aponta a necessidade de uma “abertura ao diálogo ecumênico” (4,19). A sensibilidade dialogal encontra-se também presente na relação com a religiosidade popular. Os bispos indicam que esta religiosidade expressa uma “secreta presença de Deus” (6,5), e traduz “uma enorme reserva de virtudes autenticamente cristãs” (6,2). Em sintonia com a perspectiva teológica cristã dominante no período, marcada pelo lógica do acabamento, os bispos sublinham que esta religiosidade deve ser aceita “com alegria e respeito”, mas também purificada (6,5 e 8,2), podendo ser  “ocasião ou ponto de partida para um anúncio da fé” (8,2).

 

A Conferência de Puebla já expressa um novo momento do episcopado latino-americano, onde a questão do diálogo inter-religioso começa a fazer sentido. Há um capítulo específico do documento final sobre o tema do diálogo para a comunhão e participação. Não se fala especificamente do dialogo inter-religioso, mas do “diálogo ecumênico entre as religiões e os não-crentes” (1096)[4].  Nota-se na reflexão um influxo da encíclica Ecclesiam suam de Paulo VI (1964)[5], que praticamente inaugurou a temática do “dialogo” na dinâmica renovadora conciliar. Paulo VI trata a questão do dialogo nesta encíclica a partir da idéia de círculos concêntricos que envolvem o diálogo com o mundo inteiro, com os membros das outras religiões, com as outras Igrejas cristãs e o que se dá internamente na própria Igreja católico-romana. O documento de Puebla vai privilegiar três áreas de intercâmbio: os cristãos não-católicos, os não-cristãos e os não-crentes (1098). Parte-se da tomada de consciência do “crescente pluralismo religioso” (1099), que desafia a Igreja latino-americana. Os bispos reconhecem que a Igreja católica “constitui a imensa maioria na América Latina” (1100), mas já admitem a presença de outros filões religiosos como as Igrejas orientais, os movimentos religiosos livres, o judaísmo, islamismo e outras religiões não cristãs. Assinalam também a presença da “não crença”. Em linha de sintonia com a sensibilidade ecumênica conciliar, os bispos em Puebla apontam para a importância desse novo desafio, embora reconheçam que em muitos cristãos persiste uma desconfiança a respeito, seja em razão da presença do proselitismo, de instrumentalizações políticas ou da vigência de “tendências alienantes” em determinados movimentos religiosos (1108). A sensibilidade inter-religiosa volta-se mais precisamente para o judaísmo e o islamismo (1110, 1116, 1123 e 1111). Mas o desejo geral dos bispos inclina-se para uma nova disposição: de entrar “num fecundo intercâmbio com as manifestações religiosas e culturais que caracterizam o nosso hodierno mundo pluralista” (1114). E isto exige uma “atitude mais simples, humilde e auto-crítica da Igreja” (1118), de forma a facultar uma nova compreensão da dimensão ecumênica e dialogal com o mundo não-cristão, enquanto parte integrante do “múnus evangelizador” (1127).

 

Com respeito à religiosidade popular, os bispos reconhecem sua “capacidade de síntese vital” e a forma criativa como consegue englobar o divino e o humano (448). Descortinam nesta religiosidade um potencial singular, mas nem sempre aproveitado pastoralmente, de “chegar ao coração das massas” (449). São destacados aspectos positivos e negativos dessa religiosidade. Como pontos positivos sublinham “a consciência de dignidade pessoal e de fraternidade solidária (...); a capacidade de expressar a fé numa linguagem total que supera os racionalismos (canto, imagens, gestos, cor, dança) (...); a capacidade de celebrar a fé em forma expressiva e comunitária” (454 e 913). Como pontos negativos indicam os riscos de “superstição, magia, fatalismo, idolatria do poder, arcaísmo estático (...), reinterpretação sincretista, reducionismo da fé a um mero contrato na relacão com Deus” (456 e 914). Essa forma de compreender a religiosidade popular fez história na América Latina e pontuou a dinâmica reflexiva da teologia da libertação. Mas permanece em vigor na reflexão dos bispos em Puebla a idéia de “purificar” esta religiosidade de seus traços aberrantes e “sincretismos regressivos” (453); ou seja, a necessidade de “reinterpretar” essa religiosidade no sentido de facultar a visualização das “sementes do Verbo” que nela estão guardadas “à espera da Palavra viva” (451). É bem nítida a idéia de que a visão cristã vem aperfeiçoar e iluminar essa religiosidade. Na visão dos bispos é o Evangelho que completa e dinamiza a religião do povo (457, 458).

 

  1. Santo Domingo e o acento na nova evangelização

 

Com a Conferência de Santo Domingo a questão da nova evangelização ganha um lugar central. E aqui é nítido o influxo da reflexão de João Paulo II, e de forma muito especial a encíclica Redemptoris Missio, sobre a questão da validade permanente do mandato missionário. Já se percebe de forma nítida uma mudança com respeito às duas Conferências anteriores. O acento agora recai sobre a urgência do anúncio explícito, que ganha uma prioridade não apenas de ordem mas também de urgência. A linha motora da Conferência traduz o imperativo de “um novo impulso evangelizador, que ponha Cristo no coração e nos lábios, na ação e na vida de todos os latino-americanos”[6]. É com a chave da nova evangelização que devem ser compreendidas todas as opções tomadas em Santo Domingo. O que se evidencia é a necessidade de uma dinâmica evangelizadora explícita e vigorosa (33), capaz de penetrar nas “raízes mais profundas da cultura comum” dos povos da América Latina e do Caribe (32). O ideal sublinhado é de que todas as culturas encontrem sua finalização no cristianismo (13). Fala-se em inculturação do evangelho, mas num sentido bem preciso de  inserção da mensagem evangelizadora nas culturas, ou seja, de “tradução” da mensagem evangélica (30, 243) e de “redenção” da cultura, entendida como sua purificação, aperfeiçoamente e elevação (13,36,230)[7]. O que se busca é uma “sã inculturação”, compatível com o “claro sentido da fé”, e que possa garantir “o valor dos símbolos universais” e estar  “em harmonia com a disciplina geral da Igreja” (248)[8]. É nesta lógica de inculturação que o documento se debruça sobre a religiosidade popular (36) e as culturas indígenas e afro-americanas (248 e 249). Vigora no documento uma eclesiologia de tipo universalista e uma cristologia que pende ao cristomonismo. A luz do Espírito fica concentrada praticamente na Igreja, como se sua ação só viesse a se manifestar com a chegada dos missionários (17)[9]. Trata-se de uma pneumatologia que não funciona[10].

 

Os bispos em Santo Domingo falam na “importância de aprofundar um diálogo com as religiões não-cristãs” presentes no continente, e de forma particular com as religiões indígenas e afro-americanas (137). E assinalam como condições fundamentais para esse dialogo uma série de disposições, entre as quais destacam: a superação de preconceitos históricos em favor de  uma “mudança de atitude” que possa favorecer um “clima de confiança e proximidade”; o aprofundamento do conhecimento das outras religiões; a promoção de ações em favor da paz (138). Mas esse dialogo não é reconhecido como valor em si[11], mas destinado ao remate cristão. Vigora a idéia de diálogo como ocasião para a evangelização[12]. Isto vem evidenciado quando os bispos tratam a questão do diálogo com as religiões afro-americanas e os povos indígenas. A atenção concentra-se na busca das “sementes do Verbo” presentes em tais religiosidades e no oferecimento do “anúncio integral do Evangelho”, de forma a evitar o risco do sincretismo religioso (138).

 

A palavra dominante não é o diálogo, mas a busca de retomada e garantia da identidade cristã (143) ameaçada pelas “seitas fundamentalistas” (140,141), pela multiplicação de “novos movimentos religiosos” (149) e pelo secularismo indiferentista (153,154). O documento traduz uma grande ânsia evangelizadora e uma nítida convocação missionária. A tarefa da nova evangelização é “suscitar a adesão pessoal a Jesus Cristo e à Igreja” (26).

 

  1. Aparecida e a reconquista do substrato católico

 

A Conferência de Aparecida está prevista para acontecer em 2007, mas já se dispõe de um Documento de Participação[13] visando animar a preparação da V Conferência Geral. Mesmo não sendo ainda a expressão final da Conferencia de Aparecida, o Documento de Participação vem sofrendo inúmeras criticas de teólogos latino-americanos. Vale destacar de modo especial a cuidadosa avaliação feita por Agenor Brighenti[14]. Segundo o editorial da revista Perspectiva Teológica, do departamento de teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Belo Horizonte), “o texto inicial do Documento de Participação não aponta para novidades e esperanças. Pois ele paga tributo demasiado pesado a uma era que está a acabar e não anuncia o que se quer criar”[15].

 

O Documento de Participação parte de uma premissa já apresentada em Puebla sobre o “radical substrato católico na América Latina” (24)[16]. Mas a preocupação agora é com o risco que este substrato vem sofrendo na sociedade globalizada e plural. Constata-se que “de muitos ângulos da sociedade globalizada, surgem ameaças erosivas desse substrato, o que enfraquece a presença evangelizadora da Igreja e carcome algo de medular do patrimônio espiritual e moral da América Latina e do Caribe” (141)[17].  O documento retoma a tônica da nova evangelização, presente em Santo Domingo, e reforça a idéia de que Cristo é “a verdadeira novidade que supera todas as expectativas da humanidade” (40). Permanece, assim, o desafio essencial de “dar testemunho de Jesus Cristo e anunciá-lo vivo, ressuscitado e presente (...)” (40).

 

Em linha de continuidade com a Conferência anterior, o Documento de Participação enfatiza a necessidade de “sair ao encontro daqueles que têm sede de Deus e não conhecem o seu rosto” (82); daqueles que “buscam” a Deus mas não conhecem os segredos e os mistérios da “iniciativa de Deus” que se faz presente em Jesus Cristo (82)[18]. E o documento enfatiza que só em Jesus é que Deus pode ser encontrado, e ele significa “o sentido e o lar definitivo” da própria vida (82)[19]. Daí a necessidade de não se poupar esforços no sentido de levar a todos a mensagem missionária (82).

 

Há em todo o documento uma preocupação com a dinâmica pós-moderna que vem se ampliando também no campo religioso. Trata-se de uma atmosfera que, segundo o texto, incrementa a tentação do relativismo e do indiferentismo religioso (108) e enfraquece ou pulveriza o sentido da busca da verdade (109). O pluralismo religioso é visto com certa reserva, na medida em que estaria provocando a desestabilização das auto-evidências tradicionais (148). Há também como motivo de preocupação o vigor dos novos fundamentalismos (109), o crescimento do sincretismo religioso (148), e a afirmação de um agnosticismo militante e relativismo laicista (145), que em casos concretos alimenta uma “agressividade nova, aberta ou latente contra a Igreja” (147).  Daí a ênfase na retomada do “substrato católico”, da “seiva católica”, ou seja, da defesa da identidade ameaçada. 

 

Não há praticamente espaço para o diálogo inter-religioso no Documento de Participação. Há uma breve menção às iniciativas existentes no âmbito do diálogo ecumênico e inter-religioso (34 p), mas que acaba ficando retórica no quadro mais geral do trabalho apresentado. O pluralismo religioso não vem acolhido em sua positividade, mas como um dado que provoca o risco da relativização identitária (148). Quando se fala sobre a liberdade religiosa, logo se adverte contra o risco dos “falsos laicismos” (87). Ao abordar o direito de existência das culturas indígenas, acrescenta-se a importância de garantir seu intercâmbio com outras culturas e o seu aperfeiçoamento pelo cristianismo (107). Não há um tratamento específico para a questão do diálogo com as religiões afro. Elas são mencionadas no bojo da reflexão sobre o sincretismo religioso ou da dupla pertença, e de forma claramente preconceituosa (148 e 155). Permanece em vigor a utilização de terminologia deletéria, como a expressão “seitas”,  quando se aborda determinadas confissões religiosas pentecostais (157). E, no fundo, uma dificuldade muito grande de aceitar e entender que as pessoas possam encontrar em outras comunidades religiosas não católicas ou não cristãs um caminho legítimo e profundo de viver sua fidelidade ao Mistério maior[20]. Há na verdade a presença de um eclesiocentrismo bem marcado, que defende a idéia de que a Igreja é detentora de tudo aquilo que os fieis podem encontrar para o exercício da felicidade.

 

Toda ênfase vem concentrada na missão evangelizadora, na “Grande Missão continental” que possa impulsionar o despertar missionário (173).  Como assinala Agenor Brighenti, o modo como a missão vem apresentada no documento “dá margem a pensar que consiste em incorporar todos em Cristo, que equivale a incorporar todos à Igreja católica (162). Seria um sair para fora para trazer para dentro”[21]. Ainda segundo Brighenti, a impressão que fica é a de uma Igreja que “já tem todas as respostas e, poderá, sozinha, transformar esse mundo” com a marca cristã. Sublinha-se que “na Igreja se pode encontrar tudo o que esses batizados buscaram em outros agrupamentos religiosos e, além disso, um tesouro sacramental, doutrinal e espiritual e pastoral ainda maior” (158). O acento vem dado na “visibilidade cristã”, como reação à tendência crescente de diminuição do número de católicos no continente (97) e o êxodo para as comunidades pentecostais (157). Não há para o documento outro “mapa de navegação” mais pertinente para a “felicidade de Deus” do que o apresentado pelo cristianismo (159).

 

A Guisa de Conclusão

 

Após passar em revisão os textos de três Conferencias do Episcopado da América Latina e Caribe e o Documento de Participação da Conferência de Aparecida, a ser realizada proximamente, tendo por objetivo captar o modo como apresentam e trabalham o diálogo inter-religioso, a sensação que fica é de uma carência. Apesar da importância do tema e de sua urgência neste início do século XXI, o que se constata é que a atenção prioritária do episcopado do continente vai cada vez mais em outra direção. O grande lema que marca a preocupação dos bispos, sobretudo após Santo Domingo, é o da evangelização explícita e da afirmação da identidade católica num tempo marcado pela crescente destradicionalização. Há um nítido descompasso com respeito à reflexão teológica mais atual, que vem buscando situar o pluralismo religioso como um novo e essencial paradigma. Não se trata unicamente de pensar o pluralismo religioso como um fato conjuntural ou passageiro, mas compreendê-lo como uma realidade de princípio, inserida posititivamente no desígnio misterioso de Deus. Como mostra com acerto o teólogo Claude Geffré, “a pluralidade dos caminhos que levam a Deus continua sendo um mistério que nos escapa. Mas é justamente a nova tarefa da teologia interpretar um pluralismo religioso aparentemente intransponível à luz do que sabemos da vontade universal de salvação de Deus”[22]. Fala-se hoje na necessidade de um “salto qualitativo” na reflexão teológica sobre as outras religiões, no aperfeiçoamento não só da linguagem teológica a propósito, mas também de uma “purificação do próprio entendimento teológico e uma compreensão renovada no modo de pensar os ´outros`e seu patrimônio cultural e religioso”[23]. E esta é uma condição fundamental para o cristianismo manter sua credibilidade no tempo atual. Não há mais condições de uma reflexão teológica e pastoral que continue insistindo numa perspectiva exclusivista. Trata-se de um desafio que convoca a abertura de novos horizontes para o ensinamento oficial do magistério da Igreja, de retomada de um espírito renovador, atento, aberto e acolhedor da alteridade. E esta nova perspectiva não conduz ao abafamento do anúncio, como alguns tendem a acreditar, mas situa-o em nova perspectiva, marcada pelo acento no testemunho em favor do Reino que vem. De um anúncio que seja temperado pelo “espírito do dialogo”[24] e alimentado pelo mistério do amor (DA 83). Não há por que viver sob o imperativo da urgência, mas  deixar-se habitar pelo “tempo da paciência de Deus”[25]. Só mesmo Deus “conhece os tempos e as etapas do cumprimento desta longa busca humana” (DA 84). De forma muito feliz, a Comissão Consultiva Teológica da FABC mostrou em suas teses sobre o diálogo inter-religioso a relação que vigora entre o anúncio e o diálogo:

 

“A Igreja não monopoliza a ação de Deus no universo. Enquanto ela está consciente de uma missão especial de Deus no mundo, ela tem que estar atenta à ação de Deus no mundo, como manifesta também nas outras religiões. Esta dupla consciência constitui os dois pólos da ação evangelizadora da Igreja em relação às outras religiões. Se o anúncio é a expressão de sua ciência de estar em missão, o diálogo é a expressão da sua ciência da presença e da ação de Deus fora de suas fronteiras”[26].

 

Uma das imagens mais substantivas para expressar o diálogo inter-religioso é a que foi apresentada por João Paulo II por ocasião da Jornada Mundial pela Paz, realizada em Assis no ano de 1986. Ao falar sobre este tema para os representantes das diversas religiões mundiais ele usou a imagem de uma “viagem fraterna” direcionada para uma meta transcendente que escapa aos domínios humanos. A expressão também veio retomada pelos bispos asiáticos ao tratarem da atitude de diálogo com os amigos de outras tradições religiosas, e serve como a provocação final para o episcopado da América Latina e do Caribe neste tempo de preparação para a Conferência de Aparecida:

 

“É uma verdade incontornável que o Espírito de Deus está agindo em todas as religiões tradicionais. Dialogar é então uma viagem em companhia do Espírito para descobrir de onde vem e para onde vai a sua graça. O que explica por que se trata de um ato espiritual e que só pode efetuar essa viagem estando aberto ao Espírito e sensível à sua voz”[27].

 

(Publicado na revista Encontros Teológicos, ano 21, n. 3, 2006, pp. 135146)

 



[1] Faustino TEIXEIRA. Entre o desafio do diálogo e a vocação do anúncio. Convergência, v. 34, n. 327, 1999, pp. 526-528.

[2] João Batista LIBÂNIO. A caminho da V Conferencia de Aparecida. Perspectiva Teológica, v. 38, n. 105, maio/ago 2006, pp.194-200.

[3] CONSELHO Episcopal latino-americano. A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do concílio. Petrópolis: Vozes, 1969 (Conclusões de Medellín).

[4] III CONFERÊNCIA Geral do Episcopado Latino-Americano. A evangelização no presente e no futuro da América Latina. Petrópolis: Vozes, 1979 (Documento de Puebla).

[5] PAULO VI. Os caminhos da Igreja no mundo moderno. 5 ed.  Petrópolis: Vozes, 1967 (Carta Encíclica Ecclesiam suam – Documentos Pontifícios 147).

[6] Mensagem da IV Conferência aos povos da América Latina e Caribe. In: IV Confêrencia Geral do Episcopado Latino-Americano. Santo Domingo: Conclusões. 2 ed. São Paulo: Loyola, 1992, p. 50 (n.3).

[7] É importante sublinhar que, em perspectiva distinta, teólogos da tradição indiana indicam que o processo de inculturação não pode ficar reduzido à mera expressão nova de uma mensagem tradicional, mas deve traduzir igualmente a pontuação e desenvolvimento de aspectos inéditos da verdade, favorecidos pela realidade da própria cultura ou tradição religiosa com as quais se entra em contato. Veja a respeito: Michael AMALADOSS. Théologie indienne. Etudes, n. 3783, 1993, p. 342.

[8] É aqui também nítido o influxo da Redemptoris missio n. 54: a idéia de uma inculturação “em seu correto desenvolvimento”, ou seja, guiada pelos princípios da “compatibilidade com o Evangelho e a comunhão com a Igreja universal”. Veja também a propósito: José Oscar BEOZZO. Inculturação, evangelização e libertação em Santo Domingo. REB, v. 53, n. 212, 1993, p. 817.

[9] Os bispos sublinham que “as ´sementes do Verbo`, presentes no profundo sentido religioso das culturas pré-colombianas, esperavam o orvalho fecundante do Espírito” (n.17). Como se o Espírito já não estivesse presente mesmo antes da chegada dos missionários. Como indica o documento “Diálogo e Anúncio”, o anúncio evangelizador “não se realiza no vácuo. Porque o Espírito Santo, o Espírito de Cristo, está presente e atua entre aqueles que escutam a Boa-Nova, ainda antes de a ação missionária da Igreja se iniciar” (DA 68).

[10] Como sublinha Clodovis Boff em sua penetrante análise de Santo Domingo, “mesmo a cristologia, que quis ser o núcleo forte e mais desenvolvido, tende para o cristomonismo e é destituída de uma pneumatologia de amplo respiro”: Clodovis BOFF. Um “ajuste pastoral”. Análise global do Documento da IV CELAM. In: ____. et al. Santo Domingo. Ensaios teológico-pastorais. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 31.

[11] Como indicado no documento Diálogo e Anúncio, do Pontifício Conselho para  Dialogo Inter-Religioso, em seu número 41. Aliás, esse documento só vem citado uma única vez na Conferência de Santo Domingo (n. 136).

[12] Em linha semelhante à proposta por Jozef Tomko, que exerceu por anos a função de prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos. Para o cardeal Tomko, o diálogo é visto como uma ocasião propícia para a proposta evangelizadora e de conversão à Igreja: cf. Jozef TOMKO. La missione verso il terzo millennio. Roma/Bologna: Urbaniana University Press/Dehoniane, 1998, p. 261. Em perspectiva bem distinta vai a reflexão da Comissão Consultiva Teológica da FABC em suas “teses sobre o diálogo inter-religioso”. Como indica esse documento, o diálogo “não visa a conversão, compreendida como uma mudança de religião” (tese 6.6). In: Sedoc, v. 33, n. 281, julho/agosto de 2000, p. 68. A conversão a que visa o diálogo inter-religioso, como mostra o documento “Dialogo e Anúncio” é a “conversão mais profunda de todos para Deus” (DA 41).

[13] CONSELHO Episcopal Latino-Americano. Rumo à V Conferencia do Episcopado da América Latina e do Caribe. 2 ed. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2006.

[14] Agenor BRIGHENTI. V Conferência do Episcopado da América Latina e Caribe:

http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=20380.

[15] Editorial. Rumo à Conferência de Aparecida. Perspectiva Teológica, v. 38, n. 105, maio/ago 2006, p. 185.

[16] Documento de Puebla ns. 1, 7 e 412.

[17] Assinala-se também que esse mesmo substrato católico tende a aflorar de uma forma desligada da Igreja, enquanto “busca de um sentido radical da existência”, o que é também motivo de preocupação dos bispos (144).

[18] É nítida aqui a perspectiva teológica do acabamento, presente em teólogos como Daniélou e Henri de Lubac, e que tem sua raiz na distinção Barthiana entre religião e revelação. No documento da Comissão Teológica Internacional sobre o cristianismo e as religiões (São Paulo: Loyola, 1997) a mesma idéia está presente: “As religiões falam ´do` Santo, ´de`Deus, ´sobre` ele, ´em seu lugar`ou ´em seu nome`. Apenas na religião cristã é Deus mesmo quem fala ao homem em sua Palavra” (n. 103).

[19] O Documento indica que “a proposta cristã deve se deter diante do fato mais decisivo da história. Em meio a tantas promessas, diante de nós emerge com força a importância única da revelação de Deus em Jesus Cristo (...)” (110).

[20] É grande a distancia que separa a lógica teológica do Documento de Participação de outros textos bem mais abertos, como o documento “Dialogo e Anúncio” (DA). Neste último documento, se reconhece que o mistério de salvação acontece também entre os fiéis de outras tradições religiosas, “por caminhos por Deus conhecidos”, e isto se dá “através da prática daquilo que é bom nas suas próprias tradições religiosas” (DA 29). Vale também assinalar uma passagem do Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre ecumenismo, que reconhece a legitimidade e valor de uma vida cristã fora da Igreja católica, igualmente inserida no mistério da Providência de Deus. E que deve ser motivo de alegria entre os católicos, por verificarem que a graça de Deus frutifica entre eles (Petrópolis: Vozes, 1994, n. 206).

[21] Agenor BRIGHENTI. V Conferência do Episcopado da América Latina e Caribe.

[22] Claude GEFFRÉ. A crise da identidade cristã na era do pluralismo religioso. Concilium, v. 311, n. 3, 2005, p. 21.

[23] Jacques DUPUIS. O cristianismo e as religiões. São Paulo: Loyola, 2004, p. 321.

[24] Como bem assinala o Documento Dialogo e Anúncio, o diálogo traduz “uma atitude de respeito e de amizade, que penetra ou deveria penetrar em todas as atividades que constituem a missão evangelizadora da Igreja”. E esta atitude o documento identifica como sendo o “espírito do diálogo” (DA 9).

[25] SECRETARIADO para os Não-Cristãos. A Igreja e as outras religiões. São Paulo: Paulinas, 2001, n. 44 (Documento Dialogo e Missão). E também Diálogo e Anúncio n. 84, quando se fala no “mistério” da paciência de Deus.

[26] COMISSÃO Consultiva Teológica da FABC. Teses sobre o diálogo inter-religioso. Sedoc, v. 33, n. 281, julho/agosto de 2000, p. 67 (6.5 – tomou-se aqui como base a versão brasileira, acrescentada de um parte do texto original ausente na tradução da revista).

[27] FEDERAÇÃO das Conferências Episcopais da Ásia. O que o Espírito diz às Igrejas. Sedoc, v. 33, n. 281, julho/agosto de 2000, p. 46.

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