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terça-feira, 13 de abril de 2010

A imitação de Cristo

Apresentação

 

Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF

 

 

A Imitação de Cristo é uma das obras mais difundidas da espiritualidade cristã, e sua popularidade é impressionante, só sendo ultrapassada pela Bíblia. É o livro que vem alimentando o mundo cristão desde muitos séculos, enquanto expressão da devoção moderna. Embora seja motivo de discussão, a autoria da obra vem atribuída a Tomás de Kempis (1380-1471), cuja formação aconteceu no âmbito da tradição agostiniana.

É importante ressaltar o contexto histórico-cultural que antecedeu a gestação dessa obra de piedade. Como sinalizam os grandes historiadores que se debruçam sobre a Idade Média, grandes medos povoaram os povos medievais, como o medo da miséria, do além, do outro, da violência e das catástrofes[1]. Georges Duby sublinha o exemplo da peste negra, que dizimou entre junho e setembro de 1348, um terço da população européia, com gigantescas conseqüências sociais e psicológicas. Vale também lembrar outras catástrofes como a queda de Constantinopla (1453) e o grande cisma do Ocidente (1378-1417). As repercussões foram grandes no campo cultural-religioso. A questão da morte dominava as consciências, e junto a ela a consciência da impotência da condição humana. Como desembaraçar-se de sua terrível situação sem a ajuda de Deus?

A resposta a muitos desses traumas e desafios veio com a busca da interioridade. A Imitação de Cristo expressa um desses caminhos trilhados. A obra veio gestada no âmbito da devotio moderna e sua poderosa exigência em favor da interioridade[2]. O movimento da devoção moderna tem seu início no século XIV, com base nos Paises Baixos, tendo seu apogeu no século XV. Entre seus traços fundamentais estavam a purificação da alma e a exaltação das virtudes. Em contraste com as formas penitenciais tradicionais, o movimento ressaltava a tônica afetiva da espiritualidade, com forte toque anti-intelectual e anti-escolástico.

Tomás de Kempis era um dos autores decisivos dessa nova espiritualidade, apontando com sua reflexão o caminho da interioridade. É por meio da Imitação de Cristo que a espiritualidade moderna ganha seu florescimento, com decisivos traços psicológicos, preocupada sobretudo em discernir os movimentos da alma que busca seguir a Jesus Cristo. Há que sublinhar a herança agostiniana desse movimento em direção à interioridade, pois foi Agostinho quem lança as bases de uma tradição ocidental específica da interioridade ou da subjetividade[3], do cultivo de um espaço interior resguardado para se buscar a Deus: “Em seguida aconselhado a voltar a mim mesmo, recolhi-me ao coração, conduzido por Vós” (Confissões VII, 10,16).

Segundo Johan Huizinga, a Imitação de Cristo é a obra que traduz duradouramente a “mais frutuosa expressão” da alma da Idade Média[4], alicerçando também todas as formas de vida consagrada desenvolvidas no Renascimento. A obra traduz uma específica pedagogia religiosa, sinalizada pelo caminho da vida interior. Como Tomás de Kempis sublinha em passagem do livro 3: “Bem aventurados os olhos que estão fechados para as coisas exteriores e abertos para as interiores” (IC III, 1,1). Trata-se de uma pedagogia que privilegia a “pietas pessoal”, com acentuado traço cristocêntrico. Há um predomínio da intenção mística sobre a perspectiva ascética ou moral. O que a obra revela é um convite ao diálogo interior com Jesus, que é percebido como a fonte secreta de onde brota a vida divina[5]. O tema do seguimento de Jesus é um dado característico da espiritualidade medieval, particularmente presente na obra de Tomás de Kempis.

A obra vem dividida em quatro livros. Nos primeiros três livros aborda-se o projeto espiritual da conformação da alma a Jesus Cristo, seguindo a linha das três vias tradicionais da caminhada espiritual: a via purgativa, iluminativa e unitiva[6]. O estilo da obra é bem característico: são “coletâneas de sentenças facilmente memorizáveis por seu ritmo”, e isso explica também a sedução que a acompanha. No Livro Primeiro acentua-se a centralidade da “imitação de Cristo” e a exemplaridade da vida virtuosa. Destaca-se, em particular, os valores da humildade, da paciência, do recolhimento em si mesmo e da vida de oração. Já se prenuncia uma certa exaltação da fuga do mundo, que é traço característico da piedade apresentada na obra: “Considera-te hóspede e peregrino neste mundo, como se nada tivesses com os negócios da terra” (IC I, 23,9). No Livro Segundo vem reforçada a piedade cristocêntrica, com os desdobramentos de suas virtudes essenciais, como a simplicidade, a pureza e a retidão do coração. A perspectiva bíblica cobre toda a obra, com mais de 1.500 citações, muitas delas implícitas. O Livro Terceiro, desenvolvido em forma de colóquio íntimo da alma com Deus, trata especificamente dos temas relacionados à via unitiva. A união com Deus é a porta de entrada para o consolo, o sossego, a paz e a alegria: “Só em Deus há que se buscar a verdadeira consolação” (IC III, 16,1); “Quando estais presente, tudo é aprazível, mas, se vos ausentais, tudo enfastia” (IC III, 34, 1). O Livro Quarto trata da devoção à eucaristia e da dignidade do estado sacerdotal.

A espiritualidade presente na obra Imitação de Cristo é a expressão de uma época, tendo iluminado a dinâmica litúrgica de um tempo que sofreu inúmeras modificações[7]. Causa certa perturbação ao olhar contemporâneo certos traços presentes nesta espiritualidade, como a oposição entre natureza e graça, a exaltação da fuga do mundo, a superioridade da vida monástica e certa perspectiva pietista intimista, que corroborou para problemático divórcio entre teologia e espiritualidade[8].  Isto deve ser compreendido no seu contexto, e não contraria outros valores presentes na obra como o incentivo dado à vida virtuosa e a centralidade do amor e da caridade na dinâmica da vida cristã.

 

(Apresentação do livro: Tomás de Kempis. A imitação de Cristo. Petrópolis: Vozes, 2009)



[1] Georges DUBY. Ano 1000 ano 2000. Na pista de nossos medos. São Paulo: Unesp, 1998.

[2] E.G. FARUGIA. Devotio moderna. In: L. BORRIELLO et al. Dizionario de mistica. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 1998, pp. 406-407.

[3] Philip CARRY. Intériorité. In: Allan D. Fitzgerald (Ed.). Encyclopédie Saint Augustin. Paris: Cerf, 2005, pp. 782-783.

[4] Johan HUIZINGA. O declínio da Idade Média. Braga: Ulisseia, 1996, p. 233.

[5] John BRECK. Imitação de Jesus Cristo. In: Jean-Yves LACOSTE (Ed.). Dicionário critico de teologia. São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004, p. 878.

[6] Marco VANNINI. Il volto del Dio nascosto. Milano: Mondadori, 1999, pp. 219-220.

[7] Há que sublinhar que nesta edição brasileira buscou-se conservar ao final de cada capítulo uma série de reflexões e orações, bem como orações diversas, salmos e devocionário, ao final da obra, constantes na edição francesa. Isso foi realizado no intuito de conservar uma memória, ainda que o seu conteúdo devocional seja próprio de uma época anterior ao Vaticano II.

[8] G.DUMEIGE. História da espiritualidade. In. Stefano de FIORES & Tullo GOFFI (Eds). Dicionário de espiritualidade. São Paulo: Paulinas, 1989, p. 502.

Santo Antônio Fujão

Apresentação

 

Faustino Teixeira

PPCIR/UFJF

 

Os dados sobre as religiões no Brasil, registrados no último Censo do IBGE, em 2000, mostram uma clara diminuição do catolicismo, que em termos percentuais cai de 83,8%, registrado no Censo de 1991, para 73,8% da população (Censo 2000). Vale, porém, registrar que em determinadas regiões onde predomina o “catolicismo santorial”[1], a presença do catolicismo permanece vigorosa, como nos estados do Piauí (91,3%), Ceará (84,9%), Paraíba (84,2%) e Maranhão (83%). O estado de Minas Gerais também mantém um índice maior do que o nacional, com 78,9% de católicos declarados[2]. O Censo dá a entender que, curiosamente, onde “a teia de símbolos e valores católicos tradicionais”, enraizados na cultura local, revela-se mais forte e determinante, fica mais difícil a penetração de outras expressões religiosas[3].

 

O “catolicismo santorial” é um catolicismo que vem pontuado pelas festas e devoções populares. Trata-se de uma das formas mais tradicionais do catolicismo presente no Brasil desde o período da colonização. Tem como eixo aglutinador o culto aos santos. Foi esse culto que marcou a peculiar dinâmica religiosa brasileira, de caráter predominantemente leigo, seja nas confrarias e irmandades, seja nos santuários, capelas de estrada e oratórios domésticos. O catolicismo brasileiro foi durante muito tempo um catolicismo de “muita reza e pouca missa, muito santo e pouco padre”. Nessa malha específica de catolicismo alguns elementos se destacam, como a crença no protetor, a força das promessas e o toque da emoção. De forma muito especial, os santos ocupam aí um lugar de destaque, manifestando a presença de um “poder” especial e sobre-humano, que penetra os diversos espaços da vida cotidiana e favorece a proteção diante das incertezas da vida.

 

No cenário devocional católico brasileiro destaca-se a presença de Santo Antônio (1195-1231), que é invocado seja como “Santo Antônio de Pádua” ou “Santo Antônio de Lisboa”. A devoção ao santo foi introduzida no Brasil no período colonial, e o seu culto assumiu uma importância crescente, sendo hoje um dos mais populares e difundidos no Brasil. A reputação de Santo Antônio deve-se, sobretudo, às narrativas de seus milagres. É muito conhecido o responso de Santo Antônio, atribuído a São Boaventura:

 

“Se milagres desejais, recorrei a Santo Antônio

Vereis fugir o demônio e suas tentações infernais.

Recupera-se o  perdido, rompe-se a dura prisão,

E no auge do furacão, cede o mar embravecido.

Pela sua intercessão, foge a peste, o erro, a morte,

O fraco se torna forte, e torna-se o enfermo são.

Todos os males humanos se moderam, se retiram,

Digam-nos aqueles que o viram, e digam-nos os paduanos”[4].

 

No Brasil, o santo vem conhecido apenas como Santo Antônio e assume entre nós uma faceta peculiar de “alegre”, “bonachão” e “festeiro”. Daí ser um santo que penetra a intimidade das casas, e possibilita a criação de laços de grande intimidade e ternura com seus fiéis. Possui ainda a fama de santo casamenteiro, estando os pedidos de namoro e casamento os mais comuns entre os conteúdos das promessas a ele realizadas. É tal a familiaridade que se estabelece no Brasil entre os devotos e o santo, que sua imagem é objeto de certas punições ou “castigos”, quando a promessa não vem realizada:  a retirada do menino Jesus dos braços do santo, a imersão da imagem na panela de feijão fervendo, a colocação do santo de cabeça para baixo ou o seu arremesso no fundo de um poço[5].

 

A devoção a Santo Antônio na cidade de Juiz de Fora acompanha a fundação da cidade. A presença da imagem dedicada ao santo, na região do Vale do Paraibuna, a devoção que se firma ao seu redor e sua institucionalização, são elementos agregadores importantes no processo de afirmação da cidade mineira. Foi o primeiro santo cultuado na região, e os raios de sua presença e capilaridade são duradouros: é nome de uma das principais ruas da cidade, da catedral metropolitana, da casa de formação do clero diocesano e de um tradicional bairro da região.

 

O livro de Antônio Carlos Ferreira busca responder a esse importante desafio: investigar a introdução da devoção a Santo Antônio na cidade de Juiz de Fora. O objetivo do trabalho vem assinalado logo na introdução: “demonstrar como a devoção a Santo Antônio chega à região de Juiz de Fora e como ela vai paulatinamente galgando espaços, institucionalizados ou não, a ponto de se tornar a devoção mais importante do catolicismo local, participando, inclusive, como elemento agregador do processo de fundação da cidade”.

 

Partindo de uma reflexão sobre o catolicismo popular tradicional, o autor busca desenvolver o processo de introdução da devoção a Santo Antônio na região de Juiz de Fora e sua consolidação na cidade. O toque singular da pesquisa encontra-se no terceiro capítulo, quando vem abordado o tema da institucionalização da devoção ao santo. Nesse momento, aborda-se a questão do “santo fujão”, que traduz um traço característico de narrativas comuns na sociedade colonial: de imagens que “fogem” dos lugares institucionalizados e retornam aos espaços do culto original. O autor busca trabalhar os relatos existentes sobre a procissão que levou a imagem de madeira do santo para a matriz, do outro lado do rio, e o seu retorno imprevisto – na calada da noite -, para o seu antigo e popular abrigo. Para o autor, essa saga do santo fujão traduz uma “resistência no âmbito religioso” contra a dinâmica institucionalizadora e romanizadora. Identifica-se no episódio uma “senha” que, detidamente analizada, “demonstra um processo de expropriação do mais forte contra o mais desprotegido, que só contava, dentro de um modelo do catolicismo popular tradicional, com o seu Santo Padroeiro, que de resto, pouco pôde operar para socorre-lo, numa sociedade originariamente secularizante”. O desfecho do caso, como sublinha o autor, foi diferente de outros lugares do Brasil. Em nova procissão, a imagem é novamente levada para a matriz, e o santo acaba conformando-se em seu estabelecimento no centro do arraial: “depois de muito vigiado, custodiado, dia e noite (...), o Santo Antônio não teve alternativa, senão conformar-se com a nova situação de culto oferecida. Aceitou a condição que as autoridades da época, gentilmente falando, lhe ´propuseram`”.

 

A presente obra foi originalmente apresentada como dissertação de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. Trata-se de um trabalho sério e importante, que exigiu um cuidadoso trabalho de investigação histórica e bibliográfica, cujo resultado revela-se muito positivo. O seu autor é uma presença conhecida e querida no bairro Santo Antônio, onde atua como professor. Estabeleceu laços duradouros com o bairro, antes conhecido como “Morro da Boiada”, lugar singular onde para ele “pulsa a alegria de ter sido o primeiro sorriso da cidade e a dor de uma imagem perdida”. O leitor tem muito a ganhar e a aprender com esse livro.



[1] Cândido Procópio F. de CAMARGO. Católicos, protestantes, espíritas. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 32.

[2] Antônio Flávio PIERUCCI. “Bye bye, Brasil. O declínio das religiões tradicionais no Censo 2000. Estudos Avançados, v. 18, n. 52, setembro/dezembro 2004, p. 20.

[3] Carlos Rodrigues BRANDÃO. Crença e identidade. Campo religioso e mudança cultural. In: Pierre SANCHIS (Org.). Catolicismo: unidade religiosa e pluralismo cultural. São Paulo: Loyola, 1992, p. 51; Marcelo Ayres CAMURÇA. A realidade das religiões no Brasil no Censo do IBGE-2000. In: Faustino TEIXEIRA & Renata MENEZES (Orgs). As religiões no Brasil. Continuidades e rupturas. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 41.

[4] Apud Monique AUGRAS. Todos os santos são bem-vindos. Rio de Janeiro: Pallas, 2005, pp. 86-87.

[5] Renata de Castro MENEZES. A dinâmica do sagrado. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004, pp. 160-161.