Leonardo Boff e sua Eclesiogênese
Faustino Teixeira
Um dos mais preciosos livros da teologia da libertação e que está na base da fundamentação teológica das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) no Brasil é o livro de Leonardo Boff: Eclesiogênese (Vozes, 1977). A primeira ideia do livro nasceu junto com os dois primeiros encontros Intereclesiais de CEBs, ocorridos na cidade de Vitória, em 1975 e 1976. Foram nesses Intereclesiais que a expressão “eclesiogênese” ganhou cidadania.
Como afirmei em meu livro sobre Os encontros intereclesiais de CEBs no Brasil (Paulinas, 1996), a ideia de uma “Igreja que nasce do povo” nasceu no primeiro intereclesial. Era algo que significava uma verdadeira eclesiogênese. A expressão ganhou cidadania e correu o mundo, marcando a vitalidade e potencialidade das CEBs. Não ocorreu, porém, sem suscitar dificuldades e controvérsias, recebendo inclusive uma advertência do papa João Paulo II por ocasião do Encontro de Puebla, em 1979.
O livro de Leonardo Boff nasceu como uma iniciativa do Instituto Nacional de Pastoral (INP). Foi um fruto de reflexão apresentada a um grupo de teólogos do INP, ligados à Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB).
No sumário apresentado vislumbramos cinco capítulos: A CEB como nova experiência de Igreja; Que futuro possui a comunidade?; A Comunidade Eclesial de Base é Igreja, ou só possui elementos eclesiais?; As Comunidades Eclesiais de Base e a reinvenção da Igreja; Em que as CEBs poderão contribuir na superação da atual estrutura da Igreja. Por fim, são levantadas algumas Quaestiones Disputatae.
No capítulo primeiro, temos o tema das CEBs como nova experiência da Igreja. Para início de conversa, Leonardo sublinha que o surgimento das CEBs ocorrem “na conjuntura da sociedade moderna”, visando quebrar a atomização da existência nessa sociedade do anonimato.
A experiência provoca um novo encontro entre as pessoas, que podem agora se conhecer e reconhecer como sujeitos da palavra. Na contramão de uma Igreja hierarquizada, as CEBs nascem com o rosto de uma nova experiência, marcada pela fraternidade e comunhão. Elas surgem igualmente respondendo a um desafio premente de crise da instituição Igreja, buscando uma nova presença eclesial centrada no leigo. E nascem gestando uma nova eclesiologia.
O capítulo segundolança um desafio sobre o futuro da comunidade. Leonardo narra rapidamente o processo de gênese das CEBs no Brasil, com ênfase também no influxo da Conferência de Medellín (1968), da Exortação apostólica Evangelii nuntiandi, de Paulo VI (1975) e o Sínodo dos Bispos, de 1974. Indica que as comunidades nascem pela força do Espírito e não como alternativa à instituição em crise. Nascem respondendo ao imperativo comunitário, buscando um fermento renovador. A comunidade, diz Leonardo, é “utopia da sociedade”. Um jeito novo de “criar e manter a envolvência comunitária, como um ideal, um espírito a ser sempre recriado, vencendo a rotina e o ambiente institucionalizante e nivelador”.
Como sublinha Leonardo, as Cebs nascem como Igreja que brota do chão do povo e reconstitui a mesma Igreja que nasceu dos apóstolos. Seu futuro está garantido na medida em que lança um contraponto profético à Igreja que está aí, movida por sua mesmidade. Ela interage profeticamente com a Igreja instituição, em tensão dialética, sem se deixar por ela envolver ou naufragar.
No capítulo terceiro, Leonardo aborda a eclesialidade das CEBs. Elas são de fato Igreja ou apenas contêm elementos de Igreja? Essa é a interrogação lançada. O elemento que confere pertinência às CEBs é sua eclesialidade. Como diz Boff, “a consciência e a explicitação cristã constitui, portanto, a característica da comunidade e o elemento de discernimento face a outros tipos de comunidade”.
É o que na ocasião distinguia as CEBs brasileira de outras no exterior, como na Itália. O que faz as CEBs se constituírem como Igreja é o fato de homens e mulheres responderem de forma singular ao apelo comunitário e salvífico de Deus em Jesus Cristo. São plenamente cristãos, que “se reúnem em comunidade, professam a mesma fé, celebram a mesma libertação escatológica e tentam viver o seguimento de Jesus Cristo”. São, portanto, verdadeira Igreja e não apenas comunidades com elementos eclesiais.
Leonardo procede toda uma argumentação teológica centrada na Constituição Lumen Gentium, do Vaticano II, para mostrar o valor das CEBs como experiência viva de Igreja particular, que confere visibilidade à Igreja Universal na base dos pobres. Leonardo tem consciência de que as CEBs não esgotam a eclesialidade da Igreja, mas traduzem um jeito digno e nobre de ser Igreja. As CEBs constituem verdadeira Igreja-sacramento, que “historiza, torna sinal e instrumento da salvação, a Igreja universal no lugar e na situação cultural em que ser enraíza”.
As CEBs como “reinvenção” da Igreja é tema do capítulo quarto. Ao falar de “reinvenção”, Leonardo busca ser claro. Quer dizer, uma Igreja que “começa a nascer das bases, do coração do Povo de Deus”. Uma experiência que provoca toda a Igreja a ser na perspectiva do seguimento de Jesus, sempre inspirada e renovada pelo Espírito.
As CEBs tem algo bem concreto a oferecer à Igreja: “Ajudam a Igreja toda a se considerar a partir da realidade mais fundamental, sem a qual não existe Igreja: a fé na presença ativa do Ressuscitado e do seu Espírito no seio de toda a comunidade humana, fazendo que ela viva os valores sem os quais não há humanidade”. Nelas, os leigos ocupam um lugar de protagonismo, enquanto “criador de valores eclesiológicos”. Trata-se igualmente de uma Igreja toda ministerial, onde vigora uma igualdade fundamental de todos.
A real contribuição das CEBs para um modelo alternativo de Igreja é tema do quinto capítulo. Segundo Leonardo, “a forma como se organizam as CEBs e a praxe que nelas se articula corroboram para superar um obstáculo fundamental da vida comunitária: a estrutura de participação na Igreja”. Superando o tradicional modelo triangular da Igreja dividida hierarquicamente em três termos, Bispo-Padre-Fiel, as CEBs buscam um caminho tecido por nova rede de relações, onde o leigo passa a assumir um lugar mais decisivo na gestão da Igreja, “como um dos termos participantes da estrutura”.
Ao final, aparecem as Quaestiones Disputatae. O primeiro tema abordado tem um toque eclesiológico: Quis o Jesus histórico uma única forma institucional de Igreja? Leonardo Boff reconhece no livro que quando se entende a Igreja como experiência de graça, é correto dizer que Jesus Cristo fundou a Igreja. Mas enquanto instituição não. Aqui se entende a instituição visível, sua organização sacramental e instituição ministerial hierárquica.
A Igreja institucional nasce na base de elementos colocados por Jesus em seu ministério, o que não significa, entretanto que ele tenha criado a instituição do modo específico como se firmou na história. Pode-se falar concretamente na Igreja só após a fé na ressurreição.
É o que diz Leonardo com razão. Citando o grande exegeta do Segundo Testamento, Schnackenburg, “podemos falar de Igreja no sentido próprio, como comunidade de Cristo, somente após a elevação de Cristo e da vinda do Espírito Santo”. Como o Reino anunciado por Jesus não encontrou realização histórica, a Igreja surge como propulsora desse sonho de Jesus na história. Ela nasce, assim, de certo modo, relacionada ao “fracasso” de Cristo em sua labuta pelo Reino.
De fato, a intenção original de Jesus não foi a de fundar uma instituição hierárquica, mas de propor o Reino de Deus. E Reino de Deus para Jesus tinha um significado bem preciso, como indica Bultmann, citado por Boff: “o governo de Deus que põe termo ao mundo atual, que aniquila tudo o que é antidivino, satânico e sob o qual geme atualmente o mundo, e que assim, acabando com toda a miséria e com todo o sofrimento, traz a salvação ao povo de Deus, que aguarda o cumprimento das promessas proféticas”. Esse Reino anunciado por Jesus é, por um lado, uma grandeza presente, mas por outro, uma grande que guarda uma dimensão importante de futuro.
A ideia de Pedro como fundamento da fé eclesial também vem trabalhada por Boff, com ênfase em seu caráter de explicação etiológica. Ele é fundamento na medida em que foi assim concebido pela comunidade dos cristãos, que entenderam que “sobre sua confissão e sua fé na ressurreição” a Igreja veio concebida. Toda a passagem evangélica de Mateus que fala em Pedro como pedra e fundamento é uma “reflexão feita pela comunidade”, como um passo nitidamente pós-pascal e não propriamente jesuânico.
Também o tema da última ceia vem abordado por Boff, que o identifica como um “derradeiro sinal escatológico”. Ela, a ceia, seria, em verdade, no seu sentido primordial, “um símbolo da ceia celestial dos homens no Reino de Deus”, como claramente transparece na passagem de Lucas.
A Igreja que nasce sob a inspiração de Jesus Cristo, é profundamente modelado pelo Espírito renovador. Ela tem sua origem, como diz Hans Kung, e vem lembrado por Boff, “não simplesmente nos discípulos, nos desígnios e na missão de Jesus pré-pascal, mas sim no conjunto do acontecimento cristológico”. Ela foi, sim, “pré-formada pelo Jesus histórico”, mas em sua forma concreta “se apoia na decisão dos apóstolos, iluminados pelo Espírito Santo”.
A Igreja é, sim, portadora do sonho de Jesus, e sacramento do Reino na história. Ela nasce do “conjunto do evento cristológico” e dá sequência na história ao projeto inacabado do Reino de Deus.
O segundo tema tratado nas Quaestiones Disputataefoi a questão do leigo e o seu direito em celebrar a Ceia do Senhor. Em linha semelhante de reflexão de outros teólogos como Edward Schilebbeckx, Boff aborda corajosamente o tema desse direito do leigo.
Para ele, “as CEBs mostram que o leigo pode fazer tudo o que, pastoralmente, um sacerdote faz. Apenas não pode consagrar e perdoar os pecados”. Leonardo busca apresentar ao final do livro, como um theologumenon, a hipótese do direito do leigo celebrar a Ceia do Senhor. E o faz em nome da fé e do batismo “pelos quais os fiéis são inseridos em Cristo e Cristo, com todos os seus poderes, se faz presente e atuante na comunidade”.
Leonardo aventa também a possibilidade do sacerdócio da mulher, a partir do reconhecimento sensível de seu lugar protagonista nas pequenas comunidades espalhadas pelo interior do Brasil. Argumenta que não há “argumentos teológicos decisivos contra a ordenação da mulher”, mas apenas argumentos “disciplinares”, que podem ser debatidos.
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