sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

A centralidade do despojamento e da gratuidade

 A centralidade do despojamento e da gratuidade


Faustino Teixeira

PPCIR-UFJF / IHU / Paz e Bem

 
Esse pequeno texto insere-se num rico debate que se dá num grupo de ZAP criado para trabalhar o tema das Teias Místicas. Trata-se de um grupo de 6 pessoas envolvidas no debate da Mística e Filosofia. O que segue está na dinâmica de um debate do grupo:

Ainda sob o profundo impacto da parte final da fala do Drawin em torno de Heidegger. Esse amigo mineiro foi de uma clareza única ao abordar a reflexão de Heidegger sobre o fim da filosofia, e o começo do filosofar. Estamos diante de uma “nova filosofia”, não há dúvida, ou, como diz Drawin com pertinência, diante do “novo começo do pensamanto”. Um pensamento que agora se dá NA experiência, em profunda consonância com a experiência. E para essa linda abertura, Heidegger recorreu à poesia e mística. E aqui a referência ao clássico dístico de Silésius: “A rosa não tem porque: floresce porque floresce” (PQ, Livro I, 289). Shizuteru Ueda, filósofo da Escola de Kioto ainda vai mais além, tentando transcender o porque (no porque ainda tem muita filosofia). Ele diz: a rosa floresce “como” floresce. De certa forma ele aqui recupera esse elemento tratado por Heidegger e recuperado por Drawin, quando fala do “há” em vez do “é”.
 
Em seu livro, “O Zen e a Filosofia”, Shizuteru Ueda comenta a passagem do evangelho que fala dos pássaros no céu e dos lírios no campo. Ele contesta a tendência cristã de querer explicar as coisas (o “é” em vez do “há”). Não basta dizer, tem que explicar. É isso que o Zen contesta. Para o Zen, o fundamental é ser tocado pela experiência: a “experiência imediata” que decorre do ser tocado e golpeado pelas coisas, pelo "canto das coisas", como gosta de dizer Rilke. O mestre Zen, diante da passagem evangélica, diria apenas: “Olhai os lírios no campo e os pássaros no céu”... e basta! Sem ulteriores explicações. No mesmo livro, reagindo a Silesius, Ueda diz preferir o “como” ao “porque”: “As flores florescem como florescem”.
 
Ao final de sua fala, Drawin entra então no tema do cuidado, e de forma exemplar, respondendo também à Márcia. Gostei muito da ideia de cuidado como “acolhimento do dom do ser”. Como na reflexão de Ueda sobre a tradição Zen, que fala simplesmente em “olhar” o lírio no campo. Heidegger aqui fala em simplesmente viver a serenidade de quem acolhe o dom do ser, ou simplesmente deixa ser.
 
Aí entra a questão do Gelassenheit, que alguns traduziram no português por “livramento”, como também “desapego”. Veja Eckhart e também Suso. Trata-se daquele bonito silêncio que acompanha a interioridade desde sua profundidade. Merton fala sobre Gelassenheit no seu diário, em 13 de novembro de 1966. E ele o define assim: "deixar rolar e largar-se". E continua: "não ser estorvado por sistemas, palavras, projetos. E no entanto ser livre nos sistemas, projetos. Não tentar se afastar de toda ação, toda fala, mas manter-se solto, gelassen, se, se estorvar nessa ou naquela ação". Diz Merton, o erro dos contemplativos foi justamente querer buscar essa "consciência" de si mesmos, que no fundo ainda traduz aprisionamento. Há que largar-se, deixar-se tocar pelo estupor do dom de simplesmente estar aqui.

Trata-se daquela serenidade de que fala Heidegger no Caminho do campo, a serenidade que se recebe do caminho do campo. Trata-se de uma serenidade “que sabe” e que é “porta para o eterno”. Com essas explicações dadas pelo mestre Drawin, conseguimos alcançar a radicalidade do que significa pastorear o ser. O homem, diz Heidegger na Carta sobre o Humanismo, não é o “amo” e “senhor” do ente, mas o “pastor do Ser”.
 
Todo esse debate me remeteu ao diário íntimo de Merton, sobretudo o tempo em que ele esteve em seu eremitério, nos últimos anos de sua vida. Um tempo que coincide também com a sua descoberta do amor erótico.
 
Naquele período, por volta de 1964-1965, Merton se deu conta da importância essencial de auto-revisão e crescimento. É quando ele diz que suas ideias estão em contínuo movimento. Ele vive ali uma experiência de profunda alegria, agora livre dos apegos do convento. Ali ele se dá conta que o “universo é sua casa”, e que se isto não ocorre, ele não é nada. É o período onde descobre sua verdadeira vocação, “desde dentro”. No eremitério ele consegue, finalmente, viver uma vida de “baixa definição”, sem a rapidacción do dia-a-dia. Ele diz que ali em seu eremitério ele apenas vive. Ele diz: “O que eu faço é viver”. Indica que se casou “com o silêncio da floresta”, sempre atento agora ao “ponto virgem” que se desvela no início de cada manhã, aquele pontinho de nada que é a razão do próprio ser. 

Ele percebe claramente isto em seu “trabalho de cela”, que se realiza como dinâmica para deixar-se envolver pela plenitude do todo: uma forma de evitar que os “sons” do Mistério escapem por alguma brecha. Em seu eremitério ele capta o verdadeiro significado da contemplação que é, simplesmente, “estar presente”.
 
Curioso é que ele leva para sua vida eremítica os livros de Eckhart e as Elegias de Duíno. Para ele, Rilke significava a sua própria vida, seu ser e destino. E com Eckhart conseguir encontrar o que havia de melhor para “restaurar” sua continuidade.
 
E de forma magnífica, e aberta, Merton reconhece que seu ser vem animado por um nada magnífico: o mesmo nada que assolou Paulo depois da queda no caminho de Damasco. Paulo, depois que se levanta, não vê senão o nada. Merton se entendia como uma “colcha de retalhos”, um monge pontuado por perguntas, dúvida e obsessões; um monge que se redescobre gravitando em tono do silêncio da floresta.

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