sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

A apófase do desejo

 A apófase do desejo

 

Faustino Teixeira

PPCIR / IHU / Paz e Bem

 

 

Criamos no ZAP um pequeno grupo de seis pessoas para tratar temas ligados à Filosofia e Mística. O grupo se chama: Teias Místicas. Dele fazem parte amigas e amigos queridos: Eduardo Losso, Marcus Reis, Marcia Rivas, Maria José Caldeira do Amaral, Carlos Drawin e eu. Os debates são sempre muito ricos e diversificados. Partilho com vocês a postagem que fiz hoje, 17/02/2023, nesse início de amanhecer:

 

Em primeiro lugar, queridas e queridos, adorei todas as últimas reflexões postadas, tanto do Eduardo Losso – que elogiou minha experiência-cume rs rs – como as distintas postagens do Marcus Reis, inclusive aquelas comentando a defesa que ele participou. Adorei mesmo.

 

Na última postagem do Marcos, ali pelo minuto 2:07, ele fala que nunca viu um texto monástico que falasse contra o desejo, ou seja, um movimento contra o desejo. Eu cheguei a trabalhar essa questão não propriamente entre os textos de monges, mas de místicos como Porete e Eckhart. 

 

Porete, antes de Eckhart – e certamente ela exerceu influxo sobre ele – falava sobre a “apófase do desejo”. Vou partilhar aqui com vocês um trecho do meu prefácio à tradução brasileira do livro de Porete, sobre as almas aniquiladas, traduzido por minha ex-orientanda, Silvia Swartz. Eu digo:

 

“No caminho gradual de sua libertação, a Alma deve passar por três mortes: a morte do pecado, da natureza e do espírito. 

 

Nesse itinerarium, a Alma deve percorrer sete estados fundamentais. 

 

No primeiro, que corresponde à morte do pecado, a Alma vem tocada pela graça de Deus e busca observar seus mandamentos, sobretudo o amor a Deus e ao próximo. Mas ainda vive segundo o imperativo da Razão (M118:10-16). 

 

No segundo, que corresponde à morte da natureza, a Alma vive na dinâmica de imitação de Cristo e na observância dos conselhos evangélicos e das virtudes, visando uma vida espiritual de despojamento (M118:30-40). 

 

No terceiro estado, a Alma vem aquecida no seu desejo de puro amor. Para tanto, faz-se necessário romper com a centralidade da vontade e radicalizar o despojamento do eu: “É necessário pulverizar-se, rompendo-se e suprimindo-se, para alargar o lugar onde Amor gostaria de estar, e aprisionar-se em vários estados, para liberar-se de si mesmo e alcançar o seu estado” (M118;65-68). 

 

No quarto estado, a Alma vive um momento de delicadeza especial, atenta aos toques do Amor dileto. Concentra-se agora no exercício da meditação e contemplação. É um momento de embriaguez espiritual, quando a visão vem embaralhada pela claridade do Amor (M118:70-90). 

 

No  quinto estado se dá a mudança mais essencial, que corresponde à terceira morte. É sobre ele que mais fala o Miroir.  A Alma vem agora “raptada” pela luz divina e toma consciência de que Deus é e que ela não é. Trata-se de uma experiência de “centelha” divina, que se abre e fecha, acenando para a Alma os mistérios do sexto estado. 

 

A obra da centelha “não é senão a demonstração da glória da Alma. Isso não permanece por muito tempo em nenhuma criatura, exceto somente no espaço de seu movimento” (M58:32-34). 

 

A Alma alcança o mistério da profundidade e da humildade: “Agora essa Alma é nada, pois vê seu nada por meio da compreensão divina, que a faz nada e a coloca no nada” (M118:136-138). 

 

É o momento em que a Alma “descansa nas profundezas, onde não há mais fundo, e por isso é profundo. Essa profundeza lhe faz ver muito claramente o verdadeiro Sol da altíssima bondade, pois ela não tem nada que lhe impeça essa visão” (M118:153-156). 

 

O sexto estado marca um momento de perfeição espiritual, quando a Alma deixa de ver a si mesma, mas é Deus mesmo “que se vê nela por sua majestade divina” (M118:184-185). 

 

Tudo o que existe passa a ser percebido como diafania de Deus.

 

A Alma está agora “liberada de todas as coisas”, não consegue ver nada que não seja Deus mesmo: “Aquele que é, no qual todas as coisas são” (M118:186-187). Mas essa alma “liberada” não é ainda a alma ´glorificada`. A alma só vive sua glorificação no sétimo estado, que acontece na glória eterna.”

 

Lembro-me bem que tratei com calma todo esse movimento da alma num curso aqui no nosso programa de pós-graduação (PPCIR) em que o livro de Porete foi o objeto central. Um curso de um semestre. Fomos debatendo parte por parte a tradução feita com Sílvia da única obra escrita por Porete, que foi objeto de sua condenação à fogueira.

 

Numa passagem clássica do livro de Porete, ela diz os rios perdem o nome quando chegam no mar: Como "um corpo de água que flui para o mar (...). Quando essa água ou rio retorna ao mar, perde seu curso e o nome com o qual flui em muitos países realizando sua tarefa. Agora ele está no mar onde repousa".

 

Em outro curso sobre Eckhart, abordei os sermões alemães, que são simplesmente magníficos para entender esse processo. 

 

Cito aqui dois sermões que me marcaram muito. O primeiro é super conhecido, e aborda a questão da pobreza (Sermão Alemão 52 – SA 52). O outro é o Sermão 83. Eckhart está tratando aqui no Sermão 52 da bem-aventurança dos pobres. Ele diz que o homem pobre é aquele “que nada quer, que nada sabe e que nada tem”. Assinala que se o humano quer de fato alcançar a pobreza verdadeira deve “estar vazio de sua vontade criada como ele era quando ainda não era”. 

 

Eckhart diz que a bem aventurança não está no conhecer, nem mesmo no amar, mas situa-se em algo que já ocorre antes: “Algo na alma do qual efluem conhecer e amar”. Complementa dizendo que “quem aprende a conhecer esse ´algo` sabe onde está a bem-aventurança”.

 

Quando Eckhart fala do pobre que nada tem, tocamos, finalmente a questão da vontade e do desejo, ou melhor, da apófase do desejo. O homem pobre é aquele que nada tem (nem mesmo mais o desejo). Ele é assim tão pobre que não quer mais sequer “a vontade de Deus”. Essa é a “pobreza mais extrema”. Diz Eckhart no sermão 52, e convoca os leitores a prestarem bem atenção,  que “o homem deve ser tão vazio de todas as coisas e todas as obras, tanto interiores como exteriores, a ponto de ser um lugar próprio onde Deus possa atuar (...). Se Deus ainda encontrar no homem vazio de todas as criaturas, de Deus e de si mesmo, um lugar para atuar, enquanto isso ainda acontecer, o homem ainda não é pobre na extrema pobreza”. 

 

Sempre achei magnífica essa passagem e super exigente... quase impossível de ser vivida: seria a expressão máxima do despojamento: livrar-se do lugar mesmo de presença de Deus dentro de si. Se você ainda tem um lugar de Deus dentro de si, você ainda não encontrou a libertação. E vamos dormir com um barulho desses. São coisas assim fantásticas da mística. 

 

Digo a vocês, amigas e amigos queridos, que foi Merton o que primeiro me ajudou a entender essa passagem magnífica de Eckhart. Isto no seu livro precioso: Zen e as aves de rapina. Na edição que tenho, da editora Civilização Brasileira (1972), está na página 14. Ele está tratando ali da questão do “esvaziamento”. Cita também Cassiano, quando fala em “pureza de coração”, ou “virgindade espiritual”. 


Quando destaca em sua reflexão a presença de Eckhart, reconhece que a verdadeira pobreza requer a superação mesma de um “lugar” para Deus dentro de si, onde ele pudesse atuar. O verdadeiro despojamento, nos liberta de Deus: “Deus, livra-me de Deus”. Para Eckhart, “onde o homem ainda contém em si lugar, ali ainda conserva diferenciação. Por isso peço a Deus que me esvazie de Deus; pois meu ser essencial é acima de Deus”.

 

Nessa perspectiva, amigas e amigos, de todos nós desse grupo o mais místico é o Eduardo, que sempre esteve despojado desse “lugar” para Deus dentro de si. Por isso Eckhart foi questionado como o grande provocador do ateísmo mais puro. Diz ainda Eckhart, que também me faz lembrar Rilke: “Se eu, porém não fosse, também ´Deus` não seria” (quem sabe uma defesa mística do antropocentrismo rs rs).

 

Mas quero ainda dizer duas coisas: uma sobre Angelus Silesius, sobre o qual também escrevi a pedido de Marco Lucchesi, e depois mais um trecho de outro sermão de Eckhart. Primeiro Silésius, tomado de meu texto:

 

“Entre os passos essenciais sublinhados por Silesius no caminho da busca espiritual está o desapego e o despojamento. 

 

É um tema recorrente no Peregrino Querubínico. A noção de Abegescheidenheit, entendida como desprendimento, vem também indicada por Silesius como condição para a liberdade e a fruição do mistério. 

 

Trata-se de um “recolhimento” de si para lidar com as coisas de forma mais livre e serena. O acento nesta perspectiva indica como Silesius foi dentre os místicos modernos aquele que melhor compreendeu as intuições eckhartianas.

 

            “Os santos tanto mais se embriagam pela divindade de Deus

            Quanto mais neles se perdem e se afundam” (PQ I, 210)

 

Para esse mergulho em Deus é necessário vencer a barreira do eu. 

 

Quando se rompe o egocentrismo o mundo pode ser admirado com os olhos de Deus. Mas há que lutar contra esse inimigo mais duro, e “que mais lentamente se vence” (PQ III,233). Mas quando se supera essa barreira, o coração “recebe Deus” e diante dele “se abre como a rosa” (PQ III, 87).

 

Outro obstáculo no caminho espiritual é o apego e a fixação nas mediações. São tais vínculos que dificultam o acesso ao “trono de Deus” (PQ I, 143). O místico silesiano ousa mais alto: 

 

            “Fora com as mediações! Se devo olhar a minha luz,

            Nenhum muro deve se levantar diante do meu olhar” (PQ II, 43)

 

O desapego é também para Silesius o modo de ´capturar` Deus (PQ II, 92), mas isso requer uma dinâmica espiritual de ´alargamento do coração (PQ II, 106). 

 

Mediante esse destacamento de si, o sujeito pode operar passivamente em Deus, ou como indica Silesius, com uma expressão típica da sua mística, “sofrer Deus” (Gott Leiden) e “nele repousar” (PQ V, 207; PQ IV, 197). 

 

O destino do humano, sublinha Silesius, é naufragar no Mar da Divindade (PQ IV, 139). Para ele, um bem-aventurado naufrágio. 

 

Para os que trabalham o tema da mística nas distintas tradições religiosas, o Mar ganha uma simbolização peculiar, enquanto sinal fundamental da Divindade. O tema da união da alma com Deus, como a gota no Mar, vem retomado com frequência na obra de Silesius. Ele fala em “submergir” o eu na Divindade (PQ I,6) , em morrer “antes de morrer” (PQ IV, 77), em “morte mais ditosa” (PQ 1, 28). 

 

Tudo para expressar esse desapego essencial. Enquanto o anjo contempla a Deus “com olhos serenos”, aquele que vive o despojamento pode ainda mais, abandonando-se inteiramente a Ele (PQ I, 164). Esse abandono em Deus faz parte do anseio mais sagrado do humano, pois traduz o encontro com sua razão de ser: 

 

            “Deus é meu espírito, meu sangue, carne e ossos:

            Como então posso não ser todo nele transformado?” (PQ I, 216).

 

Para finalizar, retomo aqui outro sermão alemão de Eckhart, o de número 83, que aborda uma passagem da carta aos Efésios (Ef 4,23). Comentando um clássico, mestre pagão, Eckhart sublinha que tudo o que dizemos sobre as causas primeiras traduzem não o que elas são, mas o que somos nós mesmos. Por isso, tudo aquilo que dizemos sobre Deus, não revela o que Deus é. Daí ser problemático dizer: “Deus é bom” ou que “Deus é um ser”. Tudo isso é equivocado segundo Eckhart. O que Deus é na verdade, diz ele, é uma “nadidade sobreessencial”. E se remete a Agostinho para confirmar sua tese. Agostinho diz que “o mais belo que o homem pode dizer sobre Deus consiste em poder calar-se em virtude da sabedoria da riqueza interior”. Na verdade, quanto “tagarelamos” sobre Deus estamos mentindo e pecando.

 

 



[1]Reiner SCHÜRMANN. Maître Eckhart ou la joie errante. Paris: Payot & Rivages, 1972, p. 139-40 (nota 1).

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