sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

O outro lado da montanha

 O outro lado da Montanha

 

Faustino Teixeira

UFJF / IHU / Paz e Bem

 

Para mudar a paisagem,

Basta mudar o que sentes”

 

(Rûmî)

 

Lendo hoje cedo um pequeno trecho de Davi Kopenawa extraído de seu livro, A queda do Céu, veio-me a inspiração para falar um pouco do Movimento das Montanhas, da vida que habita nas Montanhas. Elas não são simplesmente objetos geográficos, mas vida pulsante, que transforma vidas, como no caso da famosa montanha de Arunachula, que abrigou tantos gurus. Essa montanha mesma foi o guru de Henri le Saux, em sua experiência asiática. 

 

Thomas Merton dizia em seu Diário da Ásia (livro póstumo) que se tivesse que ser um eremita na Índia, gostaria de viver algo semelhante ao que viveu Le Saux (Swami Abhishiktananda). A vida contemplativa para Merton era essa “atenção” voltada para o Aberto, um radical “espaço de liberdade”. A contemplação é a experiência de um “temps vierge”, entendido não “como um vazio a preencher ou um espaço intocado a conquistar e violar, mas um espaço onde se possa usufruir das próprias potencialidades e anseios e da presença de si-mesmo. O tempo da pessoa”.

 

Na Ásia Merton encontrou a medula de si mesmo. Ele mesmo reconhece, quando esteve em Polonnaruwa, diante daquele enorme Buda reclinado, todo de pedra, que ali experimentou algo de novo, que nunca tinha sentido antes em sua vida: “tal senso de beleza e de força espiritual fluindo juntas em uma iluminação estética”. Reconheceu que ali, diante de Buda, conseguiu ver “aquilo que obscuramente procurava”.

 

Isso me faz lembrar Lévi-Strauss em Tristes Trópicos, quando diz já ao final do livro que aquilo que ele mais aprendeu com os mestres que escutou ao longo da vida não são senão “fragmentos de lições que, unidos uns aos outros, reconstituem a meditação do Sábio a pé da árvore”. É uma experiência única, a “única presença durável”, que faz ruir “a distinção entre o sentido e a ausência de sentido”.

 

Nos estudos que venho fazendo com antropólogos queridos, como Anna Tsing, Philippe Descola e Tim Ingold, capto uma bela retomada do animismo, compreendido em seu mais alto significado. Como diz tão bem Tim Ingold, para quem a retomada do animismo indígena significa a “reanimação” da chamada “tradição ocidental do pensamento”, “onde quer que haja vida há movimento”. Tudo está vivo ao nosso redor: o sol, as árvores, o vento. Diria que também as montanhas. Num de seus livros fantásticos do Shôbôgenzô, Dôgen sublinha que aqueles que não são capazes de ver o movimento das montanhas, são igualmente incapazes de compreender o movimento de si mesmo (Sansuikyô – Montanhas e Rios como Sutras – no Shôbôgenzô).

 

Daí Merton ter se encantado com as Montanhas em sua “despedida” da vida na Índia, que foi, na verdade, a última etapa de seu itinerário espiritual, e talvez a decisiva. Ao se ver diante da linda Montanha de Kanchenjunga, reconheceu que existe ali um “outro lado” que escapa à ocular dos turistas e fotógrafos. Existe, diz ele, “o outro lado que nunca foi fotografado e transformado em cartão postal. É o único que vale a pena ver”. Diz Merton que uma câmera “não pode reconciliar uma pessoa com coisa alguma. Nem pode ver uma verdadeira montanha”.

 

E finalizo com a maravilhosa frase de Davi Kopenawa, que inspirou esse meu post:

 

“Gostaria que os brancos parassem de pensar que nossa floresta é morta e que ela foi posta lá à toa”.

 

O grande Rûmî, dizia em poema, que há um mundo para além das palavras, um mundo impermeável às palavras. Um mundo onde "nem a vida teme a morte, nem a primavera dá lugar ao outono". Um mundo que é transfigurado. O caminho místico é aquele em que o buscador lava suas mãos e rosto nas águas deste lugar.

 

 

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