segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Mesters e seus seis dias nos porões da humanidade

 Mesters e os seus seis dias nos porões da humanidade

 

Faustino Teixeira

UFJF / IHU / Paz e Bem

 

Ontem, 12/02/2023, refleti aqui, de memória, sobre o estupendo livro de frei Carlos Mesters: Seis dias nos porões da humanidade. Não tinha achado o livro na minha biblioteca e hoje, felizmente, encontrei-o. Estava num lugar meio escondido. Foi  uma alegria no coração. Interrompo então minha leitura de Graciliano Ramos para voltar a comentar sobre o livro de Mesters. O livro foi publicado pela editora Vozes, em 1977. A edição que tenho é a primeira, com a assinatura de meu pai, Mozart Teixeira. 

 

Já na entrada da obra, Mesters relata que ele é como um violão. Mesmo não sabendo tocar o instrumento, reconhece que é o outro que toca o instrumento. Sua função é a de ouvir e aprender. Uma tarefa bonita de buscar reproduzir a música que se enraíza no seu interior.

 

Esse é o Mesters que conheço, com quem aprendo tantas coisas. Talvez o maior profeta e poeta da Bíblia em nosso país. 

 

O relato de Mesters começa no Ceará, em 16 de novembro de 1975. É quando visita a comunidade de Areia Seca, que fica na serra entre Ceará e Piauí. Partia para um trabalho novo, ousado e corajoso. Passar “seis dias nos porões da humanidade”, conhecendo a vida pobre e rica do sertanejo.

 

Ele confessa que nos seis dias que passou no sertão muita coisa aconteceu em sua cabeça... muita coisa se transformou.

 

Ao mesmo tempo que relatava os dias em que passou em Areia Seca, complementava o seu diário com comentários e reflexões de alto nível, como só Mesters é capaz de fazer.

 

Não foi fácil para ele, holandês radicado no Brasil, enfrentar todos os perrengues do sertão. O que ele repete várias vezes no seu diário é a dificuldade que encontrou para ter uma noite tranquila de sono. Nas casas simples do povo, não havia espaço para vida privada. Tudo estava envolvido pela presença e atividade das crianças, muitas crianças... Como dizia um velho da região, “criança e pedra é que não faltam aqui”.

 

Mesters comenta a dificuldade para dormir na rede, sempre “sob os olhares dos outros. Sempre gente perto, sempre!”. Em vários momentos, comentando os dias em que ali passou, relata as noites mal dormidas: “choro de criança, grito de gente lá fora, barulho de gente passando por baixo da rede para poder sair pela porta da frente; barulho de galo, de galinha, galinha choca, de pintinhos andando pela sala, debaixo da rede”. Esse é apenas um entre tantos outros comentários!

 

Mesters relata que o corpo fica mesmo “desmantelado”. Até para fazer as necessidades mais elementares era algo difícil, pois inexistia privada. Tudo tinha que ser feito mesmo no mato, buscando um esconderijo. E o fato de ser padre, provocava um interesse ainda maior: todo mundo queria ver o padre, estar com o padre, conversar com o padre. O banho era feito sempre à noite, ao luar, como Diadorim no Grande Sertão: Veredas. E para se banhar tinha que se caminhar cerca de um quilômetro e meio. 

 

Para um escritor como Mesters, tudo era muito difícil, não havia lugar ou oportunidade para o empenho. Mesmo assim, tentava fazer suas anotações, ao menos a sequência dos fatos. 

 

Mesters diz no livro que viu gente de todo tipo: “cegos, surdos, mudos, paralíticos, gente com bala de carabina no corpo, mulheres de 36 anos com 11 filhos (o mais velho de 14 anos), totalmente acabadas, sem ânimo; velhos, doentes sem nada para viver; moças bem jovens, bonitas até – verdadeiro capricho da mãe natureza – que, quando abrem a boca, parecem drácula, com dois dentes grandes saindo pelos cantos dos lábios”.

 

Um curiosidade dita por Mesters. Na parede das casas, nada de fotografias pobres, como os ricos gostam de inserir, mas, sim, de gente rica! E diz: Quando eles abrem a revista “Veja” (tínhamos trazidos dois números), eles só estão interessados em ver as páginas de propaganda”.

 

Dentre as histórias das famílias, muitas perdas, como no caso de Genésio e Totonha: eles tiveram onze filhos e sete morreram. E muitos... de fome!

 

Muito bonita a história relatada por Mesters do casamento de Elias e Rosa, dois viúvos que viviam juntos há tempos, e queriam formalizar a união. A celebração foi realizada em noite bonita, presidida pelo carmelita: Os dois velhos se acomodaram num banquinho sempre com os olhares voltados para Mesters, que presidia a cerimônia. Na mesa da celebração, duas lamparinas que iluminavam os rostos dos dois. Ali acontecia naquele momento, uma alegria única, uma “felicidade” que se irradiava dos olhos. E lá no alto, o belo luar, quebrando “o resto da escuridão”.

 

Em certa noite, deitado na rede, esgotado pelo dia estafante, Mesters reflete: “Como fazer que a riqueza escondida atrás desta casca secular rebente e chegue a exterminar a pobreza de nossa cultura rica e ressequida? É possível um de nós chegar a penetrar lá dentro? Um de nós que lá dentro não nasceu?”

 

A dúvida de Mesters era a mesma de tantos agentes de pastoral que buscavam e buscam, com seus parcos recursos, uma identificação cada vez maior com os pobres, sem sucesso... é claro! Como dizia Lévi-Strauss, nunca conseguiremos ser Bororos, por mais que nos esforcemos.

 

E ali naquelas casas simples, tudo vinha misturado: “A criança nasce e cresce. Os meninos, quase todos, andam nus. As meninas não. Misturam-se com bezerro, porco, galinha e gato. Cresce tudo junto, homem e animal, numa grande unidade”.

 

Impressionou a Mesters a fertilidade do povo na região: um fertilidade de pobres que indicava “um grito de esperança! Um ato de fé na vida! Uma declaração de amor a quem dele precisa! É a grande força dos fracos. É nos filhos que os pobres transmitem a sua esperança de uma vida melhor, a sua vontade imensa de ser gente”. 

 

Em inúmeros momentos que tive o privilégio de conviver e ouvir Carlos Mesters, algo ficou gravado em mim. Uma passagem bíblica que ele gostava de repetir: “Quando sou fraco, então é que sou forte” (2 Cor 12,10). Em minhas leituras do Grande Sertão, há uma passagem tremenda, quando os jagunços atravessam a região dos mais miseráveis, do povoado de Pubo e Riobaldo diz: “De homem que não possui nenhum poder nenhum, dinheiro nenhum, o senhor tenha todo medo” (GSV, 280). Ou então na letra de Wilson das Neves: “No dia em que o morro descer e não for carnaval, não vai nem dar tempo de ter o ensaio geral”.

 

Retomando o diário de Mesters, ele relata também a beleza das rodas de conversa no meio do povo. Sinaliza que o povo tem um respeito sagrado pelas conversas. São nessas rodas de bate papo que o povo transmite tudo o que ele “sabe sobre a vida; toda a sua experiência aí é trocada em miúdo, todos os seus problemas aí são discutidos e resolvidos”. Nós que acompanhamos de perto a vida das CEBs, sabemos muito bem disto: a força dos círculos bíblicos, do clube de mães e das rodas informais de conversa.

 

Em determinados momentos da viagem, Mesters viveu passos difíceis: dias pesados, com calor, seca e a visão de tantas injustiças. Ele disse em certo momento de seu relato: “Cheguei a sentir-me como quem está querendo passar uma cerca: passou a cabeça e passa o ombro, e pronto! Fiquei entalado! Não dava mais para ir em frente”.

 

Ao refletir sobre a espiritualidade do pobre em Areia Seca, Mesters relata que a vida daquela gente é sofrida: não contemplam “a beleza da macambira, do xique-xique, do sertão ou do por do sol.” Tudo aqui está simplesmente ali: “Aquilo é o que é, do jeito que é”. Não há, entre os pobres, em sua vida espiritual, o vade-mécum tradicional das etapas místicas: via purgativa, iluminativa e unitiva. Nada disso. Eles já estão diante do Deus vivo, concreto e palpável no seu dia a dia.

 

Ao final da viagem, Mesters sublinha que o tempo foi curto, mas que “deu  para ver a folha da árvore, do jeito que ela se apresenta pra fora, visível aos olhos”. Permaneceu, porém, indecifrável, “os nervos invisíveis da folha, que mantém tudo unido”. Mesters se dá conta que ele, como outros intelectuais, gostam mesmo de escrever muito. O povo de lá, não... “Não gasta palavras à toa”.

 

Já no término de sua reflexão vem algo de maravilhoso no relato de Mesters, que sempre guardei no fundo do coração. É quando ele fala sobre o que o evangelho tem a oferecer para nós, depois de tudo o que passou em Areia Seca. 

 

Ele fala daquele parte do evangelho “que tem a ver com festas, novenas, romarias, rezas e celebrações”. Aquela parte do evangelho que poderia parecer ao militante como algo “inútil”, e ineficaz. Daquilo que não pode ser utilizado para nada. Vem então uma profunda crítica de Mesters à busca desenfreada pela eficácia na vida pastoral. Diria eu, na vida em geral.

 

Essa cegueira da eficácia provoca o ocultamento de algo que é essencial: a gratuidade do evangelho, a experiência e vivencia do amor gratuito de Deus por nós. E conclui: 

 

“É desta parte que eu sinto uma imensa necessidade: ficar sem fazer nada, à toa, quase preguiçoso diante de Deus, sentir a gratuidade da vida e alegrar-se com isso, sem nenhum outro objetivo, a não ser o de sentir a alegria do viver no convívio com Deus e com os irmãos”.

 

Muito interessante e fundamental tudo isso que diz Mesters. Lembrei-me ao retomar essa leitura de um texto lindo de Eliane Brum, publicado recentemente no jornal Samaúma, e reproduzido no IHU-Notícias (11/11/2022). 

 

A repórter chama a atenção para algo que é fundamental para todos nós, nesses tempos difíceis, ou seja, buscar estabelecer uma nova relação com os brasileiros: uma relação profunda com a sua vida. Ela diz:

 

“Precisamos nos mover não mais em relação a eles, sim em uma relação profunda com a vida. Precisamos ser. Não ser em contraposição a eles, como fomos até agora, mas sendo na costura do presente que só é possível na imaginação do presente. Nem falo mais do futuro, mas do presente, mesmo. Do aqui e agora. Fazendo o que faz bem. Retomando a arte, a dança, a poesia, a educação emancipadora, a espiritualidade, seja religiosa ou não, a alegria de conviver falando do que nos dá alegria. Retomando o debate que nos amplia porque o outro não nos ameaça, ao contrário: nos alarga”. 

 

 

 

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