quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Mesters e a flor sem defesa

 Mesters e a Flor sem Defesa

 

Faustino Teixeira

 

 

Provocado pelo amigo José Oscar Beozzo, fui visitar novamente um livro que marcou minha primeira formação teológica: a obra fundacional de frei Carlos Mesters: Por trás das palavras: um estudo sobre a porta de entrada no mundo da Bíblia (Editora Vozes, 1974). É outro livro que tem a assinatura de meu pai, Mozart Teixeira, em sua primeira edição.

 

Quando o livro saiu, estava no início do meu curso de filosofia e ciências da religião, que fiz simultaneamente. Mesters já era na ocasião um exemplo de vida para mim. O meu carinho por ele era tamanho, que quando tive o privilégio de assistir uma celebração sua em Angra dos Reis, onde morava, nasceu a ideia de meu casamento com Teita. Suas celebrações são de uma beleza e simplicidade únicas.

 

Esse livro de Mesters foi inaugural na experiência das CEBs no Brasil e, em particular no impulso para a leitura popular da Bíblia, que deu origem ao Centro de Estudos Bíblicos (CEBI).

 

Já somos tomados de fascínio na abertura do livro, quando faz uma citação de João Guimarães Rosa, no Grande Sertão: Veredas:

 

“Sou só um sertanejo, nessas altas ideias navego mal. Sou muito pobre coitado.... Eu quase que nada sei. Mas desconfio de muita coisa. O Senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre. – o senhor solte em minha frente uma ideia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém”.

 

Sim, Carlos Mesters é o nosso Riobaldo na familiaridade com a Bíblia. Como poucos no Brasil, sabe farejar a Palavra de Deus de uma forma inédita e simples, e transmitir sua mensagem com uma sabedoria que encanta. É o nosso grande mestre nesse trabalho singelo de levar a Palavra para os mais simples, com um dom de alegria, simplicidade e gratuidade que a todos encanta.

 

Para ele, vale uma expressão que ouvi um dia nas CEBs: “Para entender a Bíblia, nem precisei sair do Ceará”. Uma forma linda de dizer que a leitura da Bíblia ocorre no chão da vida e sua interpretação está em profunda sintonia com a vida sofrida e corajosa do povo, de suas várias Marias.

 

A proximidade com o povo é o ponto fulcral da compreensão da Bíblia segundo Mesters. Ele já diz no prefácio de seu livro: “A distância que vai entre a janela e os meus olhos determina o que vejo lá fora na rua. Se fico mais perto, a visão se alarga; se fico de longe, a visão se estreita”. 

 

O sábio carmelita sabe muito bem das dificuldades que acompanham a leitura e interpretação da Bíblia; das limitações que envolvem o nosso olhar que interpreta. Mas sabe também que a leitura comunitária traduz um caminho rico para a compreensão dessa Palavra-Mistério: “É trocando as experiências, numa conversa franca e humilde, que nos ajudamos mutuamente a enxergar melhor as coisas que vemos, e romper as barreiras que nos separam sem razão”.

 

Esse jeito bonito de ler a Bíblia em comunidade, é um traço característico de nossa América Latina. Temos também o bonito exemplo de Ernesto Cardenal, numa das ilhas do Arquipélago de Solentiname, na Nicarágua, onde gestou uma encantadora experiência espiritual comunitária. Ali, numa ponta de ilha, Cardenal criou a pequena comunidade de Nossa Senhora de Solentiname. 

 

O livro recolhe os diversos comentários dos camponeses sobre a leitura bíblica realizada nas celebrações de domingo. Para Cardenal, o seu livro mais importante é o que recolhe esses comentários: El Evangelio en Solentiname (1976). 

 

O livro veio publicado em diversos países, e ganhou em tempos recentes uma nova edição, pela Editora Trotta (2006). Trata-se de outro livro que está na gênese da leitura popular da Bíblia. Num de seus diários, Cardenal sublinha que essa obra traz como contribuição os ricos comentários bíblicos de camponeses, que captam a Palavra com ainda maior profundidade que muitos teólogos: são depoimentos de Marcelino, Olivia, Rebeca, Laureano, Felipe, Tomás, Alexandro, Pancho, Oscar e Júlio. Essa comunidade foi arrasada pela repressão de Somoza, e muitos desses personagens morreram ou foram torturados. 

 

O livro de Carlos Mesters vem dividido em quatro partes e dez capítulos, sendo os títulos: Abrindo a porta; A atitude do povo frente à Bíblia; A Bíblia vista e interpretada pela Bíblia; A porta de entrada no mundo da Bíblia.

 

Um dos passos mais preciosos do livro está na parábola da porta, incluída na primeira partedo livro. A parábola fala de um povoado que tinha uma casa do povo, antiga e bem construída. A casa “fazia parte da vida do povo”. Com o tempo chegaram dois estudiosos vindos de fora. Eram doutores especialistas em coisas antigas e pediram permissão para ficar na casa.

 

 A presença dos estudiosos ali favoreceu a compreensão de muitas riquezas presentes naquela casa. A presença deles, porém, foi aos poucos inibindo a presença do povo simples, que ficava constrangido de adentrar na casa pela porta da frente. Aos poucos, a casa foi deixando de ser do povo, que quando ali entrava, ficava agora silencioso e acanhado. Com o tempo, a porta da frente ficou esquecida, e o interior da casa ficou mais escuro, por falta de luz. Todos entravam pela porta do lado.

 

O povo continuava com “o livrinho na mão”, estudando-o em pequenos grupos,  mas agora era diferente: “Já nem mais se lembrava dos tempos de outrora, quando juntos brincavam e dançavam no lugar onde agora estudavam, olhando sério, imitando os doutores, livrinho na mão, repetindo a lição”.

 

A libertação finalmente ocorreu quando um velho mendigo, sem casa, adentrou-se por entre a mata que impedia o acesso à porta da frente da casa e conseguiu acessar a porta por uma fresta existente. E assim foi retornando à casa, convidando seus amigos de pobreza a partilharem com ele o novo abrigo. O recado do mendigo foi sendo divulgado entre os pobres, e o ritmo das presenças acabou por abater o mato e abrir o acesso à casa. Guardavam no coração um segredo: “Aquela casa é nossa”. O fato chegou aos ouvidos dos estudiosos, que reagiram de forma diferente: um manifestou seu desgosto, e o outro ficou calado. 

 

O estudioso mais sensível, “escondeu-se, de noite, num canto da casa. Viu o povo entrar, sem pedir licença, para dançar e brincar, falar e cantar, para sentir-se à vontade e encontrar-se com os outros”. Ele gostou de ver essa alegria popular, e acabou também entrando na dança. Ao entrar agora pela porta da frente, pôde então perceber “a beleza da casa de um ângulo novo que ainda não conhecia”.

 

Teve acesso a uma nova luz, vinda agora “da rua e da alegria do povo”. Foi quando então começou a estudar a Bíblia a partir desse novo olhar, descobrindo coisas novidadeiras. E assim Merton, a partir de uma parábola maravilhosa, narra como nasceu “a história da explicação da Bíblia ao povo”.

 

Ainda na primeira parte do livro, Mesters trata o tema da intenção que está atrás dos olhos de quem lê e estuda a Bíblia. Aborda dois critérios fundamentais que devem orientar o estudo popular da Palavra: “Levar em consideração as exigências da realidade que hoje vivemos” e “as exigências da revelação, expressas na própria Bíblia e na fé da Igreja”. 

 

Revela que seu interesse em escrever o livro foi justamente o de poder mostrar esse lado semente da Palavra de Deus: “A sua flor, o seu sentido, só aparece, quando a palavra for plantada no chão da vida e lá tiver condições de germinar e produzir seu fruto”.

 

Indica os defeitos que os estudiosos devem evitar nesse trabalho de leitura popular da Bíblia: atender pacientemente o tempo de germinação da compreensão, sobretudo o cultivo do silêncio. Há também que reconhecer que tudo deve ser dito “aos poucos” e com carinho e cuidado. Estar atendo ao contexto mais amplo, não se fixando numa única página ou afirmação. Importante também estar atento, à escuta da percepção que vai brotando da comunidade.

 

Na parte dois, o tema abordado é o da atitude do povo frente à Bíblia. Quando confrontado com a Bíblia, o povo “faz perguntas, apresenta dificuldades e toma atitudes”. Há importantes exigências subjetivas que devem ser levadas a sério por quem busca uma correta interpretação da Palavra e o desejo de irradiar o conhecimento aos outros. Há que ter muita humildade, rompendo com toda e qualquer hybris, ou vontade de poder: “Aquele que explica a Bíblia ao povo não é o depositário exclusivo da revelação e da verdade”. É o que sublinha com ênfase Merton.

 

É necessário também reconhecer o ritmo do povo e entender que ele também fala pelo seu silêncio, um silêncio que é eloquente e deve ser objeto de muita atenção. Por mais estranho que possa parecer, diz Mesters, “ao povo nada se ensina, mas a ele se devolve, explicitado e purificado”. Há que se estar atento também para conjugar com criatividade o sentido que o texto tem em si com o significado que ele tem para nós. 

 

A atenção deve voltar-se, primeiramente, para os caminhos de superação das dificuldades que o povo tem com a leitura e interpretação da Bíblia: lidar com as limitações de leitura, de acesso ao conteúdo da Palavra; de perceber conjuntamente as dúvidas que o livro gera, e o desvelo de suas complicações. Há também que superar os preconceitos que estão ainda enraizados para uma compreensão mais aberta e ecumênica. 

 

A dificuldade de percepção de alguns problemas deve-se ao distanciamento do povo: “Se nós não percebermos o problema real, escondido nas perguntas e problemas que o povo levanta em torno da Bíblia, é porque sendo do povo, não convivemos com ele nem participamos da sua luta e vida”. Há em verdade um problema de sintonia de nosso sistema hermenêutico e a vida concreta daqueles que ouvem a explicação.

 

Carlos Mesters faz um breve histórico do mal-estar envolvido nas dificuldades encontradas pelo povo para o acesso ao Livro. Enfatiza muito a importância de buscar um novo foco interpretativo, para além dos resquícios do passado. 

 

Relata em breves passadas os caminhos abertos por importantes exegetas como Bultmann, bem como os avanços ocorridos no campo da catequese. Pôde-se então perceber com clareza as razões do curto-circuito entre exegese e vida. E daí partiu-se para um novo caminho. E uma pergunta importante serviu de leme: “A exegese existe para o povo, ou o povo para a exegese?”.

 

Os primeiros passos da reflexão de Merton serviram para um diagnóstico preciso: há que levar a sério as perguntas do povo e reconhecer em seu âmbito as verdadeiras questões envolvidas, e que na verdade estão relacionadas com a sua vida concreta: “A preocupação absorvente com a vida presente e com o seu crescimento, que se traduz, muitas vezes, em sofrimento e medo diante da realidade que arrasa e oprime; abertura e preocupação com o futuro que atrai e que necessita de esperança”.

 

Na terceira partedo livro, a questão que se apresenta é a da Bíblia vista e interpretada pela Bíblia. O caminho escolhido por Mesters foi de enveredar-se pela memória da Igreja, que é uma “memória perigosa”. Propõe-se a fazer num primeiro momento, uma releitura da Bíblia. Com seu instrumental teórico, o carmelita ajuda o leitor a entender as várias “histórias da salvação” que acompanham a ocular da exegese moderna. 

 

E expõe com clareza as diversas releituras feitas ao longo do tempo: Javista, Eloísta, Deuteronomista, Sacerdotal e outras. Essa releitura não cobre apenas o Primeira Testamento, mas também o Segundo, com todas as interpretações que foram sendo favorecidas. 

 

É todo um exercício de ler o passado através do prisma do presente. Dentre tantas descobertas bonitas, a percepção de que por trás do fenômeno literário da releitura bíblica revela-se uma determinada visão da vida e da história. E também o reconhecimento de que a história do passado favorece um sentido sempre renovador, que nunca se esgota numa interpretação específica.

 

Uma das conclusões tomadas por Mesters nesse capítulo é fundamental: “Não basta transmitir a verdade certa, sem se comprometer com ela. É necessário ser a verdade, ´encarná-la` na vida e na história. Não é a verdade que fala por si, mas é a vida, informada e transformada pela verdade, que fala e se constitui revelação e apelo de Deus”. 

 

A fé e a vida formam uma unidade inseparável: “A expressão da fé é a vida do povo de Deus”. Quando se perde esse vínculo, dificulta-se qualquer acesso ao sentido da fé para a vida. O desafio está em apresentar de tal forma o passado bíblico que ele possa ser luz autêntica para o caminho presente. Com isso, podemos acessar um horizonte novo e enriquecedor, que é a “certeza de fé que Deus está conosco na nossa caminhada”.

 

Na quarta partedo livro, Mesters dedica-se ao tema da porta de entrada no mundo da Bíblia. Dedica-se, em primeiro lugar, a buscar superar o caminho tradicional com que se tratou o sentido literal da Palavra. Mudanças importantes foram ocorrendo ao longo da história nos processos de interpretação da Bíblia. E agora, a partir da América Latina e do mundo dos pobres, capta-se uma ocular distinta que nos ajuda a situar diante do modo vivo e familiar com que o povo simples se coloca diante da Bíblia. 

 

Trata-se do desafio novo de redescobrir a porta de entrada no mundo da Bíblia a partir da sensibilidade dos pequenos. Há que compreender que o mundo da Bíblia é um mundo familiar a nós mesmos, mesmo sabendo da história antiga que propiciou sua tessitura. 

 

Como diz Mesters, quem não encontrar na Bíblia um mundo familiar “que lhe lembre a sua terra e os seus problemas, esse dificilmente criará dentro de si a abertura e a simpatia de que se precisa, para poder apreciar no seu justo valor as coisas boas e más que existem por lá”. Daí ser a tarefa daquele que irradia essa luz saber indicar para os ouvintes “o caminho que leva até à praça, apontar o banco e permitir um encontro com muitos amigos que moram por lá”.

 

Ao final do livro, Mesters retoma a história de Riobaldo em suas artimanhas para acessar o real, e reconhece uma identificação particular com ele. Assim como Riobaldo, Mesters também farejou o tempo em busca de uma “flor sem defesa. Sublinha que foi assim, como o jagunço de Rosa, tentou rastrear o caminho até encontrar a flor que soltou um perfume singular: 

 

“Na medida em que eu ia rastreando o perfume da ideia ligeira pelo fundo dos matos do sertão e da Bíblia, fui me sentindo como o sertanejo, cada vez mais pobre, muito pobre, ´muito pobre coitado`. E quando cheguei no lugar onde mora a flor, tive que dizer a mim mesmo: ´Eu quase que nada sei` , e comecei a ´desconfiar de muita coisa` que sempre me ensinaram”. Foi quando então descobriu o “outro lado” de suas ideias, facultado pela auxílio popular.

 

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