O enigma Vandré
Faustino Teixeira
UFJF / IHU / Paz e Bem
Depois que terminei de escrever meu artigo sobre as canções de Geraldo Vandré consegui adquirir um livro sobre ele, publicado no Brasil em 2011, numa editora de Belo Horizonte (Editora Fino Traço). Sua autora é Dalva Silveira, e o título do livro: “Geraldo Vandré: a vida não se resume a festivais”.
O livro tem quatro capítulos: Vandré caminhando rumo ao sucesso; Vandré e “caminhando”; Vandré: perseguição e exílio; Vandré: exilado em sua pátria.
Não vou me ater aqui a todo o livro, mas a uma parte que mais me intrigou, que se relaciona ao período de seu retorno ao Brasil, em 1973.
Em seu período de exílio no Chile há registro de uma gravação, em 1969. Trata-se de um compacto de capa branca com os dizeres: Vandré no Chile. Foi editado pelo Banco Benvirá, e tinha apenas duas músicas, cantadas em espanhol: Desacordonar e Camiñando. Trata-se de um disco enigmático, como Vandré, e quem teve acesso a uma das cópias é privilegiado.
No disco, Vandré canta acompanhado do violão. É impressionante ouvir a versão de Camiñando, que vem cantada por Vandré, com ele no violão e também uma viola bonita e percussão. Nessa versão há momentos emocionantes, onde Vandré não consegue segurar o choro.
Há também a gravação na França do belo LP, Das Terras de Benvirá, gravado em 1970, depois relançado no Brasil em 1973.
Sobre esse LP há controvérsias. Há quem não goste, como o jornalista Mauricio Kubrusly; e quem veja no LP uma obra prima, como o jornalista e escritor Celso Lungareti e o jornalista Mauro Dias, do Estadão.
Na França Vandré ficou 18 meses. Antes de voltar para o Brasil, em suas andanças pelo exílio, Vandré passou por muitas dificuldades, também psicológicas. Justamente no ano em que veio para o Brasil, em 1973, foi quando ocorreu uma crise bem séria, chegando a ficar internado numa clínica de repouso chilena por mais de 40 dias.
Dalva Silveira, em sua dissertação, cita um artigo da psicanalista Maria Rita Kehl, onde ela relata o papel da Rede Globo de Televisão nos anos 1970, depois do AI-5 (1968).
É uma análise que ajuda a compreender o período histórico nacional que coincide com a chegada ao Brasil de Vandré. Nesse momento, a Globo buscava “camuflar a realidade desigual” vivida no país. O canto representativo na ocasião era: “Hoje é um novo dia de um novo tempo que começou...”.
O clima era totalmente avesso à recepção de Vandré, e de sua fama no país. Segundo Dalva, essa presença da mídia televisiva, somada com o aumento da censura restringiam ou desqualificavam o espaço para as canções de protesto”.
Depois do AI-5 Vandré ficou afastado do Brasil por quase cinco anos, um período em que “o governo militar tentou apagar Vandré e sua obra da memória coletiva nacional”.
Foi um tempo de silêncio compulsivo sobre ele, um castigo que o puniu “de forma cruel, fazendo com que sua imagem fosse praticamente apagada”.
A autora da dissertação lembra, porém, que de forma curiosa, o fascículo 34 da coleção Música Popular Brasileira, da Editora Abril, dedicado a Vandré teve uma venda impressionante, só perdendo para Roberto Carlos.
Não há muito o que falar sobre o que aconteceu com o Vandré depois que ele chegou no Brasil, em 1973. As notícias a respeito são muito controvertidas. Estamos ainda em busca de uma explicação, que, quem sabe, ainda vai surgir para nós.
Um dos complexos enigmas que envolvem o seu retorno é seu duplo desembarque no país. Para alguns, ele retornou em 17 de julho de 1973; para outros, em 18 de agosto do mesmo ano.
Acredito, com o apoio de outros autores, incluindo a posição de Dalva, que seu real retorno tenha se dado em julho.
Ocorre que seu depoimento na Globo com sua “retratação”, aconteceu na data de agosto, ou seja mais de 30 dias depois da primeira data aventada. Isso significa que Vandré, antes de conceder o depoimento, já estava no Brasil sob a custodia do Exército há mais de 30 dias.
O que ocorreu com ele nesse período ? Tudo é uma incógnita. A retratação de Vandré, em horário nobre do Jornal Nacional, foi depois do “falso desembarque”.
E ele disse na ocasião:
“Olha, em primeiro lugar, eu acho que as minhas canções de hoje são mais anunciativas do que denunciativas. E eu espero integrá-las à realidade nova do Brasil, que espero encontrar em um clima de paz e tranquilidade. Mesmo porque a vinculação de meu trabalho, até hoje, com a utilização por qualquer grupo político, ocorreu sempre contra a minha vontade”.
Outro detalhe interessante, relatado por Dalva em sua tese. Depois de sua “retratação” no Jornal Nacional, houve uma tentativa de Vandré reintegrar-se no meio artístico. Chegou a gravar duas aparições, uma no Fantástico e outra no programa de Flávio Cavalcanti. As duas aparições foram censuradas, e não foram ao ar.
Em depoimento dado por sua ex-esposa, Nilce Tranjan, recuperado no livro de Dalva, ela diz que Vandré chega ao país em meio a uma “ditadura desgraçada”, numa situação totalmente desfavorável para qualquer continuidade de sua carreira.
Foi nesse contexto que ele foi “obrigado a se retratar”, com um “personagem” que não era mais “a antiga figura”.
Curiosamente, depois de seu retorno ao Brasil, o próprio compositor e cantor dizia que o Vandré tinha morrido, e que o que estava de volta era o advogado Geraldo Pedrosa de Araújo Dias...
Em matéria publicada na Folha de São Paulo, em 12/09/85, afirmava-se que Vandré “passou a vagar pela cidade de São Paulo. Fazia aparições esporádicas, às vezes entrava numa redação de jornal, sentava-se numa máquina e escrevia laudas e laudas, em silêncio. Ninguém tinha coragem de perguntar o que ele estava fazendo”.
Em outro relato destacado em seu trabalho, Vanda diz que certo dia o cantor Benito de Paula encontrou Vandré recitando um poema para um poste. Impactado com o que viu, compôs um samba, com o título: “O que foi que fizeram com ele”.
Num dos versos se dizia:
"O que foi que fizeram com ele?
Não sei
Só sei que esse trapo,
esse homemfoi um rei".
Em trabalho de Paulo César de Araújo, “Eu não sou cachorro não: música popular cafona e ditadura militar” (Record, 2005), o autor fala desse mistério que ronda o intervalo que ocorreu entre o primeiro embarque e o falso embarque, quando se deu a famosa “retratação” de Vandré.
Segundo o autor, Vandré esteve nesse período incomunicável num unidade do I Exército, no Rio de Janeiro.
Entre as diversas pessoas consultadas por Vanda em sua dissertação, grande parte delas acredita que Vandré não sofreu tortura física, mas sim psicológica, nos dias em que esteve recolhido.
É o que pensam, por exemplo o pastor Jaime Wright e a ex-esposa Nilce Trajan. Para Nilce, o que aconteceu com Vandré foi uma forte pressão psicológica: “torturas psicológicas” que “acabaram com ele”.
Vandré era alguém frágil, e isso verificamos mesmo antes de sua saída do Brasil; alguém tomado pelo medo da prisão. Era, assim, alguém “sem estrutura para suportar pressões”.
Toda essa história um dia, certamente, poderá vir à tona com maior transparência, o que é o desejo de todos.
Depois que escrevi o meu artigo sobre Vandré, que deve sair proximamente na revista Numen do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, recebi uma mensagem de Frei Betto, emocionado com a leitura do meu texto que tinha enviado para ele. Betto dizia ao final de seu texto que ao fazer uma conferência em Teresópolis há cinco ou seis anos, recebeu ao final, um abraço carinhoso de Vandré, que estava morando nas redondezas, num sítio. Os dois conviveram em São Paulo nos anos de 1966-1968. Betto comentou que Vandré estava muito diferente: "Parecia ter 300 anos! Carcomido pela dor e pelo tempo".
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