segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Revendo a Teologia Pé-No-Chao de Clodovis Boff

Revendo a Teologia Pé-No-Chão de Clodovis Boff

 

Faustino Teixeira

PPCIR/UFJF / IHU / Paz e Bem

 

 

Há dias falei aqui de um livro que me marcou muito, de Frei Carlos Mesters: Seis dias nos porões da humanidade. Hoje queria lembrar de outro livro muito presente em minha formação teológica, de um amigo querido, que retornou ao Acre e vive lá como pároco junto ao povo que sempre o encantou.

 

Trata-se do livro de Clodovis Boff: Teologia Pé-No-Chão, publicado pela Vozes, em 1984. Quando saiu publicado o livro eu estava em Roma, no doutorado, e foi uma alegria imensa quando recebi o livro de meu irmão querido, Pulika, que mandou a obra de Brasília para mim, e dizia na dedicatória que era para me acompanhar nos “momentos sofridos junto aos rios da Babilônia”.

 

A apresentação do livro é do cardeal Aloísio Lorscheider, grande profeta dos anos 1970-1980. Ele diz no seu texto: “Parece-me que este livro inaugura na literatura teológica, algo de novo. É um novo modo de fazer teologia e colocar problemas cotidianos da vida nem sempre de fácil solução. É também um novo modo de viver a vida cristã, considerando tudo à luz da Palavra iluminadora e orientadora da vida”.

 

Clodovis tinha voltado de seu doutorado em Louvain, na Bélgica, e era meu professor na PUC-RJ. Ele fazia algo de extremamente bonito e ousado na época. Dividia a sua caminhada entre o Acre e o Rio de Janeiro (numa paróquia do Rio Comprido). Foi um grande privilégio na minha vida ter sido aluno de Clodovis Boff, logo depois de seu doutorado, com uma brilhante tese sobre o Método da Teologia da Libertação.

 

Foi sempre um pensador brilhante, além de um homem de fé exemplar. E continua sendo. Junto a ele tive aprendizados únicos, não só com respeito à teologia, mas sobre o modo nobre de ser na vida, sempre pontuado pela alegria, gratuidade e compromisso com os pequenos. 

 

No prefácio de seu livro, diz: “Saiba que nunca me vi mais provocado à teologia que no meio do povo. Muito mais que nas salas de aula e nos congressos teológicos”. 

 

Aliás, algo que recordo com muito emoção é a presença de Clodovis nos Intereclesiais de CEBs, sentado nas arquibancadas de cimento armado, vibrando com cada fala, oração, ritual e expressão viva do povo naqueles ambientes de festa, luta e oração. Era encantador ver a sua expressão de alegria ao estar ali, onde reconhecia ser o seu lugar ideal.

 

Ainda na sua apresentação, Clodovis sublinha a importância da atenção ao que “existe e lateja no coração da vida”. Isso também aprendi com ele. Conclui seu texto inaugural dizendo que o que busca no livro é mostrar o que são as CEBs no seu cotidiano, uma verdadeira Igreja de base. E complementa dizendo que essa “Igreja ´nova` ou ´popular` de que se fala é muito mais tradicional do que se pensa”.

 

E as páginas do livro correm apresentando-nos o cotidiano das pequenas comunidades “perdidas” no mais extremos rincão do país, no interior do Acre, com sua vida e generosidade. 

 

No primeiro capítulo, trata de muitos temas. Um deles, a fé na transfiguração do mundo. Sinaliza que a fé, decididamente, “não é propriamente uma força de transformação das estruturas do mundo. A fé é antes uma luz que transfigura o sentido do mundo”. Indica que o mais importante para o cristão não são os grandes gestos em sua publicidade, mas “a humildade, a fidelidade ao Senhor do Reino na prática cotidiana”. E a política, acrescenta, só tem sua razão de ser, na medida em que é capaz de promover a “conservação da vida”.

 

Fala também da beleza e coragem dos agentes de pastoral, que saem de longe, às vezes de países ricos da Europa ou Estados Unidos, para dedicar-se a uma vida juntos aos pobres nos “porões da humanidade”. Fala da opção deles por uma vida sacrificada, trabalhando com gratuidade em regiões “tão difíceis” e áridas, como no Acre. Não o fazem por mero prazer ou interesse, mas por algo mais nobre, que habita “a ordem do Mistério”. O mesmo Mistério que fascina o monge é aquele que faz caminhar o missionário.

 

Em seu aprendizado descobriu algo fundamental: a importância da pastoral levar muito a sério “os recursos religiosos próprios do povo”, pois “quem ignora o povo é ignorado por ele”.

 

Já sublinhava naquele tempo a importância essencial de “estender a Igreja para a mata”, de “descentralizar a vida pastoral” e “´popularizar` as responsabilidades religiosas na forma de ministérios”. Um jeito de ser que pudesse de fato “envolver mais a base”, e respeitar inclusive suas formas simples e inéditas de celebração.

 

No ambiente popular, Clodovis descobriu tanta beleza: a humildade profunda, o senso de honestidade, a coragem imorredoura, e também a hospitalidade. Ele diz: “Aqui a vida é mais vida, o homem mais homem e Deus mais Deus”.

 

Em rico momento de sua reflexão lança uma interrogação que é capital: qual o capital político de um trabalho feito em lugares assim tão distantes e longe da apreciação pública ? E responde: “É só mesmo sub specie aeternitatise não sub specie historiae, que esta realidade se torna compreensível. Ou seja, aqui não é questão de marxismo, mas de cristianismo puro e duro”.  Para tanto, diz, é preciso “ter fé e fé nua, como a dos místicos. Passar por estas florestas é como atravessar a ´noite escura da política`.”

 

No segundo capítuloadentra-se no coração da mata. Vem tocado pela força e profundidade da fé do povo, de sua oração colada no chão da vida. Fala sobretudo da riqueza do olhar dos pobres que se voltam com ternura para as imagens dos santos: “Parecem conversar com uma pessoa viva”. Lembra como que para o povo simples “a religião não é o mundo dos mistérios, mas das evidências”. Daí se escandalizarem quando esbarram em alguém que se diz ateu confesso. E a fé que professam é radicalmente “da ordem visível”. 

 

Pontuando a importância do trabalho dos agentes de pastoral, Clodovis sublinha que “a fé e comunidade não são cogumelos que cresçam de modo mágico. Necessitam de semeação e depois cultivo. O espontaneísmo é a teoria da ignorância”. Trabalhou nesse capítulo o processo lento e fontal de formação das comunidades eclesiais populares.

 

No terceiro capítulo, retoma o tema do trabalho diuturno junto às comunidades no coração da mata. Fala aqui da importância dos momentos de oração, que constituem alimentos essenciais para lidar nesse trabalho difícil. A missão, diz Clodovis, nunca vai “sem oração”. A prática só se revela grande quando informada pela alma interior. É o Espírito, diz, que explica a razão desse compromisso. E ele “que faz a gente andar por essa matas”. Ele “é um vento, um chamado, um interesse, um espírito”.

 

Tudo também vem envolvido pelo calor da Palavra e vigor dessa Presença de Deus. E acrescenta que boa mesma é a Escritura “que produz uma palavra viva e criativa”. A verdadeira leitura da Escritura deve ser espiritual, ou seja, “do espírito ou do sentido anterior, que está na legra, como o coração no corpo”.

 

O novo povo de Deus, diz Clodovis, está simplesmente aí, “nesses analfabetos e desconhecidos, que dão de si pela causa do Evangelho e de seus irmãos, pobres como eles”. O método é simples, e está tatuado no corpo: o confronto iluminador e natural de Evangelho e vida. Porém, para entender isso, tem que ir lá onde o povo está, “pois é lá o lugar privilegiado, o mirante para se entender a vida do povo”.

 

No quarto capítulo, Clodovis trata do tema das CEBs, como a do povo do Apocalipse. Ele vê esse livro como essencial para entender o mundo das CEBs: “É o único livro do Novo Testamento que faz uma leitura política sistemática da história. Por isso mesmo, é um livro excelente para abrir as comunidades às dimensões políticas da fé e da Igreja no mundo”.

 

No trabalho feito pelas CEBs, a conscientização é um eixo modelador. É ela que favorece “o primeiro acesso crítico à realidade social”. A atividade pastoral desabrocha numa vida comprometida com a causa popular.

 

No quinto capítulo, o tema é a comunidade que caminha com suas próprias pernas. Clodovis fala aqui sobre os eixos das comunidades e sua nova forma de ser Igreja, uma Igreja de escuta e participação. Sublinha que ali, no meio dos pobres do Acre, descobriu uma forma nova de fazer eclesiologia, não mais a partir de algo abstrato, mas “com o fenômeno eclesial se processando debaixo dos olhos”.

 

A vida eclesial nasce ali não de cima para baixo, mas a partir da própria perna desse povo simples. É por aí, diz Clodovis, “que o trabalho pode começar, e sempre com eles e a partir deles”. E todo cuidado é pouco para estar atento à sensibilidade popular. Não exigir demais, como no caso das regras para os sacramentos. Não há porque “começar com exigências além das tantas que eles já têm”. O compromisso maior é o de mostrar a eles “que Deus está do lado deles e nós também”.

 

No sexto capítulo, uma reflexão bonita sobre a fidelidade dos longos caminhos. A fidelidade vem aquecida por um fogo singular, que brota do coração. Diz Clodovis: “Não basta esclarecer, é preciso inflamar. Como Deus, que nos dá sua Revelação, mas sobretudo sua Graça”. 

 

Nem sempre isso ocorre na vida das comunidades. Há também momentos de “baixa definição”, de desânimo e mesmo depressão. Tudo isso pertence ao ritmo da vida: “Não precisa que a comunidade seja sempre empolgada, entusiástica, mas que seja sempre fiel. Isso é que é preciso”. A força de uma CEB não está no medo, mas na dinâmica de sua fé e na coragem de lidar com os obstáculos.

 

No sétimo capítulo, vem tratado o tema da diaconia da libertação. São abordados os temas dos ministros dos enfermos ou agentes da saúde, dos ministérios e outros temas. Um tema candente que se descortina na reflexão de Clodovis: a dor de uma comunidade adulta que não pode celebrar por carência de ministros. 

 

Ele insiste: “Como acompanhar as comunidades que estão se tornando adultas sem lhes abrir a possibilidade de terem seus ministros adequados, tal o ´ministro da Ceia`”. Esse é um tema que vem sendo tratado aqui no Brasil cada vez com mais veemência.

 

Clodovis trata também nesse capítulo da qualificação necessária aos agentes de pastoral. E um trabalho que exige que os agentes sejam não apenas “quadros de ação pastoral”, mas também “quadros da vida eclesial”. Daí o cuidado necessário com a formação espiritual dos agentes. A fé, diz Clodovis, “é uma força que impede a própria política de se alienar”. Há que criar condições para uma “educação de fé específica”: de formação e nutrição da mística cristã.

 

O trabalho pastoral no campo social tem que ser inteligente e munir-se de artimanhas bem específicas. Saber trabalhar “na barriga do monstro”. É necessário ter uma teoria correta e uma visão correta. Sublinha Clodovis: “Importa entender que o espaço oficial não é monolítico. Está cheio de contradições e brechas”. É nelas que se deve atuar, com jeito, paciência e eficiência. No espaço oficial “existem fendas que podem ser ocupadas pelos oprimidos e que podem se alargar”. Essa é a sabedoria.

 

No oitavo capítulo, entra-se em cheio no tema da espiritualidade encarnada. Essa espiritualidade visada é uma espiritualidade comunitária, e também encarnada, incardinada no povo. Essa espiritualidade vem inspirada e atuada pela utopia de Jesus, que e a utopia do Reino de Deus. Mais do que nunca, diz Clodovis, se faz necessário retomar o kerygma originário. 

 

Sem o recurso do Reino, e sua envergadura teológica, “fica sempre o perigo de se reduzir a fé a uma de suas dimensões”. Não se trata de uma espiritualidade qualquer, mas sim de uma espiritualidade “aberta ao povo”, comprometida, mas envolvida numa “relação pessoal profunda com o Mistério, que é também pessoal”. O desafio esta em “liberar mais humanidade”. Se não houver cuidado com essa fonte, o risco é da própria pastoral ir “secando até desaparecer”.

 

No nono capítulo, Clodovis avança na reflexão da Ceia do Senhor. Começa falando da força das mulheres animadoras das comunidades: de sua raça e espiritualidade funda. Nada mais do que “mulheres fortes de um povo forte”. O autor busca resgatar a imagem da Ceia vivida nos primeiros tempos da comunidade cristã, e que serve de modelo para as CEBs. 

 

Diz ao final que as CEBs poderiam exercer “várias modalidades de celebração da “Ceia do Senhor, desde a missa com o povo de Deus, que é a fórmula tradicional e hoje praticamente única, até à ´fração do pão` tal como se celebrava nas primeiras comunidades cristãs”. Sugere um caminho novo, ousado e bonito: de uma “Eucaristia popular” numa “Igreja popular”.

 

No décimo capítulo, o tema da luta em favor da justiça vivida nas comunidades. Trata-se de uma luta empenhativa, tomada por um clamor evangélico primordial. Há todo um desafio em aberto, no sentido de um trabalho humilde de “semeação”. Um trabalho que busca vencer obstáculos difíceis como o da distância entre as comunidades, das precárias condições materiais e sociais, bem como a dispersão. 

 

No décimo primeiro capítulo, o objeto é a Igreja em construção. Clodovis relata aqui alguns dos trabalhos em que ele se viu envolvido ao longo de sua atuação no Acre. Fala da vitalidade que encontrou em tantas comunidades dispersas pela floresta, da alegria do povo em poder se dedicar com alma a “algo maior do que a vida”. E nos lembra que “o sentido da vida é a vida do sentido”. Fala ainda no capítulo da beleza em ver que esse povo simples começa a narrar sua história. Os pobres começam “a falar e escrever por própria conta, com sua boca e mão próprias, sem intermediários, representantes ou defensores”. Aparecem, finalmente como “criadores de uma Palavra que se impõe por sua força intrínseca”.

 

Descreve também no capítulo a linda trajetórias de animadores populares, como seu Raimundinho, místico popular e de tantos outros ministros leigos. E conclui o livro dizendo que sempre considerou exemplar a pastoral popular, movido por uma “qualidade excepcional”, na linha de um caminho libertador singular e criativo. Suas últimas palavras: “Já sinto pena em ter que deixar toda essa gente em cujo coração se enraizou essa afeição tão bonita. Não se ama para ser feliz; ama-se, então se é feliz. A felicidade não é de justiça; é de graça”.

 

 

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