Passos da Mística de Gregório de Nissa (sec IV)
Faustino Teixeira
UFJF / IHU
Ontem, 09/03/2023, celebramos no catolicismo a festa litúrgica que homenageia o grande místico capadócio, Gregório de Nissa, um dos luminares do século IV. Como estudioso da mística tive ele sempre por perto, em razão de todas as inspirações que ele provocou na minha reflexão pessoal. Pontuo aqui em particular dois tópicos fundamentais de sua reflexão mística:
1. A Presença de Deus. Para Gregório, Deus se faz presente na criação através de seu aroma, de seu perfume. Numa de suas homilias sobre o Cântico dos Cânticos, o místico capadócio sublinha que a potência de Deus é inacessível. Dele temos apenas vislumbre de seu “perfume difuso”, que se expande em toda a criação. De Deus acessamos somente esse “mísero”, seu precioso perfume.
A nós cabe sensibilidade para seguir seus rastros através de nossa percepção aromática das coisas do mundo. Deus, em verdade, está acima de todos os nomes e narrativas. É o nosso tato, que capta sua maravilha no tempo, que fornece a base para a nossa incursão teológica.
Acessamos, assim, Deus mediante suas “operações” que se deixam captar no tempo. Sublinha o capadócio que nosso conhecimento do Mistério é exíguo e remoto, mas precioso. Em síntese, não podemos falar de Deus a partir de sua essência, mas a partir dos traços enigmáticos de seu agir na criação. Daí a essencial distinção que o Capadócio opera entre ousia-energeia. Como diz Pseudo-Dionísio Areopagita em sua Teologia Mística, o Moisés contempla não é Deus, mas o lugar onde Ele está.
Mesmo quando falamos que Deus é Misericordioso, não é dele que falamos, no sentido de captar algo de sua essência, mas o que dele se irradia para nós em seu aroma presente na criação. Foi o que falou também Mestre Eckhart no Sermão Alemão de número 83, em torno de uma reflexão sobre Efésios (Ef 4,23). Diz Eckhart: “Ninguém pode dizer nem compreender nada de Deus”.
O mesmo o ocorre quando falamos que ele é “bom” ou “melhor”. Não é dele que falamos. Tudo isso é expressão dos nomes que conferimos em nossa limitação a ele. É também incorreto dizer que Deus é “um ser”, pois o que o adorna é uma “nadidade sobreessencial”. Por isso Eckhart serve-se de Agostinho para nos advertir quanto ao risco de “tagarelar” sobre Deus. Diante dele, o que me melhor ocorre é o silêncio reverencial.
O que captamos de Deus são simplesmente traços contingentes de sua “atividade” no mundo. Para Gregório, mesmo o Filho participa da contingência, ou como diz Rahner, ele participa da “bem aventurada ignorância de Deus”. O Filho, segundo o capadócio, é “absolutamente contingente com respeito à vontade do Pai”. O grande exegeta jesuíta, Xavier Leon-Dufour, que tanto influenciou o meu orientador, Jacques Dupuis, sublinha que no evangelho de João Jesus jamais diz explicitamente que é Deus, nem diz também diretamente que era Filho de Deus, ou o Messias. Jesus preserva Deus num grande mistério, não querendo em hipótese alguma encerrar o Mistério de Deus numa fórmula.
2. A sede de Deus. Para Gregório de Nissa, o ser humano está sempre em busca do Mistério e nunca esgota a sua realidade. Ele pode até se aproximar, em momentos de grande êxtase, mas o Mistério permanece sempre resguardado. A bonita expressão que o capadócio expressar para falar sobre essa sede é epektasis. Em sua homilia 10, Gregório de Nissa diz que todos nós somos “ébrios” do Mistério.
Moisés gozou da experiência de proximidade de Deus, chegou “próximo” de sua luz, mas ainda esteve aprisionado pela névoa e penumbra do Mistério. Na homilia 2, o capadócio fala da epektasis, da sede que não tem fim. Ele diz ali:
“Quando mais abundantemente somos tomados pela beleza de Deus, tanto mais forte a ardência do desejo”.
É o que também dizia João da Cruz num de seus mais lindos poemas, "Entrei onde não sabia". João da Cruz sublinha que todo buscador que chega na proximidade do Mistério, desfalece; quando mais ousa avançar em sua direção, mais recua em seu entendimento. E igualmente Dionísio Areopagita em sua Teologia Mística: “Quanto mais olhamos para cima, mais os discursos se contraem”.
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