segunda-feira, 19 de junho de 2023

Tessituras da Memória: entre o afeto e a perda - Os caminhos de After Sun

 Tessituras da Memória: entre o afeto e a perda – Os caminhos de After Sun

 

Faustino Teixeira

UFJF / IHU

 

 

Dando sequência às apresentações dos Filmes em Perspectiva no Instituto Humanitas da Unisinos (IHU), tratamos no dia 14 de junho de 2023 do belíssimo filme da diretora escocesa, Charlotte Wells, After Sun, de 2022. Trata-se de uma diretora que estreou com esse filme no circuito dos longa metragens, depois de ter vindo de uma rica experiência de curtas. Dela também foi o roteiro do filme. Nasceu em junho de 1987, dando continuidade  à sua exitosa carreira com uma obra esplêndida, que tem o dom de lidar com extrema sensibilidade um tema delicado da relação de um pai com uma filha. 

 

No elenco contamos com dois artistas de talento inequívoco. Um jovem talentoso ator irlandês, Paul Mescau, nascido em 1996 (que interpreta o pai, Calum) e uma atriz escocesa ainda  mais jovem, Frankie Corio (que interpreta a filha, Sophie), nascida em 2010.  São dois jovens talentos que conseguem fazer um par extraordinário em interpretações que marcam a cinematografia contemporânea. Isso se deve também ao carisma da diretora, que conseguiu proporcionar aos dois uma criatividade interpretativa que emociona e inspira em cada momento da filmagem, num longa relativamente curto, com 96 minutos de duração. A beleza da interpretação dos jovens atores no filme veio destacada com acerto com a resenha feita por Isabela Boscov[1], que destaca o filme como um dos melhores de 2022.

 

O filme, que foi lançado em outubro de 2022, teve importantes premiações no Reino Unido e também nos Estados Unidos, tendo igualmente concorrido no Festival de Cannes no mesmo ano, ao prêmio de melhor ator, que acabou ficando com Brandon Fraser, intérprete no filme A Baleia (The Whale), dirigido por Darren Aronofsky. 

 

Merece também destaque a belíssima fotografia de Gregory Oke e a montagem de Blair McClendon, além da feliz e ousada trilha sonora de Oliver Coates, com grandes hits dos anos 90, que inclui passagens da banda britânica Blur e Catatonia, a melancolia do rock da banda R.E.M., além de clássicos como “Macarena” e “Under Pressure”, de David Bowie, em versão remixada com a vibrante presença de Freddie Mercury e o grupo Queen.

 

O filme vem marcado por delicadeza e complexidade, exigindo do expectador outras experiências para poder captar todos os detalhes que envolvem o drama que se revela e esconde nas filmagens. É só mesmo com uma desperta atenção que conseguimos penetrar em seus domínios enigmáticos. 

 

Em penetrante análise do filme, Maggie Silva relata o clima de tensão que acompanha todos os minutos da filmagem, que ocorreu todo o tempo na belíssima paisagem da costa turca.  Segundo Maggie, o roteiro distingue-se

 

“pela sua capacidade de, pela calada, nos destruir emocionalmente. A sua narrativa de combustão lenta deixa-nos em permanente sobressalto, à medida que umas aparentemente banais férias assumem um carácter de urgência e terebrância. Algo não bate certo, a ameaça paira no ar, mas nem nós nem os protagonistas se atrevem a dar-lhe nome ou forma.[2]

 

Estamos diante de um roteiro simples, cuja trama acontece nos anos 90, quando um pai separado (Calum), que vive um momento de dificuldades financeiras, consegue reunir recursos para passar um período de féria com sua filha (Sophie) num belíssimo local de luz e sol na costa turca. Aliás, esse é um traço bonito do filme, sempre envolvido por uma atmosfera mágica de céu vibrante, e de muito mar e sol irradiantes. E que não falta nas filmagens é água, muita água, de mar e piscina. Somos levados para um lugar paradisíaco, que cria um clima muito mágico e particular.

 

Esse é também um dos segredos da diretora, que nos coloca num lugar de beleza singular para abordar um tema marcado pela dialética de alegria e neblina, de vida e dor. Todos sabemos bem o que significa o drama de uma separação, e todas as dificuldades que envolvem o encontro de um pai separado, com suas dificuldades particulares, e a filha que mora em outra cidade, cujos momentos de encontro são raros e curtos: “breve tempo e rara hora”, dizia um místico conhecido.

 

Em outra análise brilhante, o psicanalista Christian Dunker tenta desvendar o lado psicológico que envolve a trama. Em sua visão, o tempo todo estamos imersos num clima de “asfixia” que levanta para o expectador questões profundas tocadas pela “demanda de sentido”[3]. Outro traço importante, realçado por Dunker é a sintonia que se estabelece entre o que se passa no telão e o expectador que assiste, com uma abertura interpretativa que convoca a várias possibilidades de desvelamento daquilo que ocorre em cena, ou está apenas aventado ou aludido nos sinais que podem ser percebidos no roteiro apresentado.

 

As filmagens reverberam com intensidade naqueles que vivem a experiência da paternidade, ou estão envolvidos de uma forma ou outra com situações de acompanhamento das relações afetivas que circundam a dinâmica da paternidade ou maternidade. Tudo vem corroborado pelo clima delicadamente pontuado pelo visual contemplativo e os planos sensoriais que estão sempre presentes no expectador no tempo da filmagem, que não é só cronológico, mas também kairológico, que nos remete ao mundo do imaginário. Diante das inúmeras cenas, mescladas de alegria e neblina, somos convidados à tarefa nunca acabada da interpretação, que não se esgota e se reduz a uma visada específica.

 

Outra analista, Luiza Rezende, retoma essa ideia de um visual contemplativo do filme, e sobretudo de sua particular atmosfera marcada por “recordações turvas” e fugidias, na medida em que a dinâmica da filmagem vem desenvolvida a partir da ocular da Sophia adulta, que busca captar através da recordação, com os recursos de filmagens antigas, o que aconteceu naquele mágico verão de tempos idos, quando viveu uma experiência única mas misteriosa com o seu pai. 

 

Luiza visa apontar em sua análise não só o traço de proximidade que une o pai à filha, mas também a distância (diriam os místicos sufis: tashbih e tanzih). Se há, por um lado, a beleza das cenas contemplativas, marcadas por silêncios sublimes, de proximidade e ternura, há, por outro, “a presença insistente de alguns sentimentos desses personagens ainda inacessíveis ao espectador”. E diria ainda mais, inacessíveis aos próprios protagonistas. Christian Dunker fala dessa tensão como uma “melancolia radiante”.

 

Como diz a autora, “pai e filha se dão bem, brincam juntos, mais parecem irmãos. Há, contudo, momentos nos diálogos em que o acesso à intimidade é restrito. Calum muitas vezes se desvia do assunto, se isola”[4]. Mesmo nova, a jovem Sophie, de 11 anos, percebe em certos momentos, que alguma coisa não vai bem com o seu pai, apesar dele evitar de vários modos que a menina perceba a sua situação emocional vivida naquele momento difícil de sua existência. Ele faz um grande esforço para dedicar-se a ela com dom, alegria e gratuidade, mas o vapor interior às vezes emerge provocando ressonâncias ao redor.

 

Um traço característico do filme é traduzir as filmagens num ritmo bem doméstico, com um câmera portátil, controlada por amadores, com a intenção explícita de indicar para os expectadores que as imagens que ocorrem são aquelas do pai e da filha filmando as experiências dos dias na Turquia, que serão depois recuperadas pela adulta Sophia em seus guardados, já em outra condição existencial. Os vídeos são trêmulos e desconectados, visando captar os fragmentos amorosos de um momento idílico. Sophie já adulta busca montar com sua sensibilidade aqueles fragmentos, como um quebra cabeça, visando enriquecer sua memória fugidia mas necessária para dar vasão ao sentido vital de sua busca.

 

Chamo aqui a atenção para as cenas maravilhosas marcadas pelo olhar observador da filha naquele momento especial com o pai. São instantes únicos, onde a jovem atriz coloca todo o seu talento para transmitir ao expectador a riqueza da demanda amorosa da garota Sophie. Junto com o olhar terno, temos também as passagens magníficas do contato corporal entre os dois, de aproximação carinhosa  de alguém que procura abrigo nos ombros do pai, que se deixa tocar em sua face com os gestos de generosidade, que explicita aos expectadores como o amor exige provas corporais, mas mais ainda de gratuidade e dom. O filme consegue transmitir isso de forma muito feliz.

 

Insisto em sublinhar essa busca de um resgate afetivo e emocional que percorre toda a filmagem, como nas cenas de passeio de barco, onde as mãos se encontram delicadamente; nas cenas onde pai e filha estão numa grande boia nas proximidades da praia, trocando revelações e demandas; na cena do balneário onde os dois se lambuzam de lama em gestos de carinho e alegria; ou no momento em que os dois estão deitados junto à piscina, unidos com o olhar voltado para o céu de um azul imenso, bem como numa das cenas mais incríveis, ao final do filme, quando os dois se abraçam durante uma dança que poderia, talvez, ser o último passo de encontro entre os dois.

 

Há também outra passagem terna, do pai acariciando um tapete turco, que desde o primeiro momento que o avistou engrandeceu o seu olhar, tomando-o de vontade de adquirir aquela peça de arte, tão cara e inacessível para os seus parcos recursos, mas que consegue num esforço peculiar adquirir para si, como recordação daqueles dias encantadores. São cenas tocantes dele acariciando com delicadeza o tapete com seus dedos compridos, partilhando com sua filha a beleza de sua textura e cores, deitando-se nele com uma alegria inaugural. E para os que assistem com atenção ao filme, somos envolvidos de sensibilidade, ao perceber que é o mesmo tapete que a já adulta Sophie pisa depois de ter um sonho angustiante ao lado de sua companheira, e ouvir simultaneamente o choro da criança que agora começava a crescer sob os seus cuidados maternos.

 

Naquele período curto de férias seria quase impossível uma comunhão reveladora das intimidades. Aliás, nenhuma intimidade pode ser captada por ser humano algum, uma vez que o outro é sempre um  mistério incógnito e inapreensível. Como mostra com razão o poeta Rainer Maria Rilke, há no amor, como traço intrínseco, uma solidão que jamais será preenchida e que permanece sempre como um enigma. Ele diz em suas Cartas a um jovem poeta, que o amor não completa nenhum isolamento, e se traduz, talvez, como “a tarefa mais difícil” experimentada por duas criaturas humanas[5].

 

O filme nos coloca, desde o início, na perspectiva da ocular de Sophie, da busca de resgate de suas memórias. Mais ainda, a tentativa vital de resgatar através das imagens colhidas naquela ocasião de encontro com o pai, do enigma e mistério que marcam a relação pai e filha. E algo fica sempre em suspenso para ela, ao perceber que o pai que tanto amava, apesar de distante, trazia consigo um lado misterioso e triste. Vivia assim com a dicotomia do pai que conheceu, ainda que por retalhos, do pai verdadeiro, que ela não podia fazer ideia do que de fato era.

 

Durante todo o filme somos embalados por uma trama onde esse enigma permanece e não se dissolve. Naquele momento em que se encontra com a filha, Calum vivia momentos muito difíceis, de crise financeira e emocional. Temos alguns indícios de que ele pudesse estar passando por uma grande depressão, e que buscava caminhos de equilíbrio através de práticas de meditação e de exercícios como o Tai Chi Chuan. Ele leva para a praia seus livros sobre o tema, que tornam-se objeto de curiosidade da filha, que ainda jovem não conseguia administrar seus sentimentos e encaixar as peças de um mosaico enigmático.

 

Sophia também passava por um momento decisivo em sua vida, de mudanças perceptíveis, de abertura e sedução para novos movimentos vitais. Estava em plena fase de descoberta, que a diretora consegue passar com muito jeito para o expectador. A jovem começa a sentir os primeiros apelos da sexualidade, ainda em forma de curiosidade. Chega a viver na viagem a experiência do primeiro e ingênuo beijo dos que se iniciam timidamente na arte do amor. Aos 11 anos de idade não era mais uma criança, mas também não tinha alcançado a adolescência. Vivia um tempo de transição. 

 

Em vários trechos do filme ela demonstra curiosidade pelas cenas do amores vividos pelos adolescentes que estavam no mesmo hotel ou que encontrou durante a viagem. Era também um tempo de busca de independência e autonomia. Dá para perceber em certos trechos do filme que em razão da sua vida tinha que exercitar urgentemente essa autonomia. Como mostrou Dunker em sua resenha, a idade em que estava Sophia é um tempo de quebra da imagem endeusada do pai, típica do mundo infantil, aquela do pai herói. Agora, distintamente, ela passa a dar-se conta de que o pai é uma pessoa normal e contingente, que supera a imagem ingênua do romance familiar.

 

No hotel onde estava hospedada, Sophie não pode partilhar, como outras garotas que também estavam ali, as regalias que são concedidas aos mais favorecidos. O pai conseguira com muito custo reservar um hotel simples para os dois. Os momentos de lazer mais sofisticados ocorriam em outro hotel, munido dos apetrechos de lazer mais aperfeiçoados. Numa das cenas, Sophie observa uma pulseira numa das garotas, que faculta o acesso livre às bebidas. Seu olhar é de reverência, expressando também um desejo de poder gozar de semelhante privilégio. A garota percebe, e no último dia de sua estadia, a menina deixa a pulseira com Sophia, que se regozija ao menos numa noite, podendo pedir com altivez a bebida escolhida por ela.

 

A viagem não foi marcada só por alegria e beleza. Há cenas de dor, solidão e mesmo de estremecimento momentâneo da relação entre o pai e a filha. É o caso de uma passagem do filme, onde ocorre uma apresentação de Karaokê, quando o pai e a filha são convidados para cantar para os presentes, e o pai recua, deixando a filha cantar sozinha, de seu jeito infantil ainda desafinado. Ela vai buscando ajeitar-se no canto, com olhares intensos e convidativos para o pai, visando sua presença ali ao seu lado, mas isso não ocorre. A música que estava sendo cantada, fazia parte do repertório afetivo do pai, e naquele momento ela bateu nele de forma estranha, provocando a sua reação imprevista. A música em questão era Losing my Religion, interpretada pelo grupo R.E.M, onde um dos versos dizia:

 

            Esse sou eu no canto

                  Esse sou eu no centro das atenções

                  Perdendo minha fé

                  Tentando acompanhar você

                  E eu não sei se posso fazer isso”.

 

Ele de fato não estava à vontade para uma exposição, mas existencialmente despreparado para cantar aquilo naquele momento. A filha retorna ao final, meio desencantada, e ainda ganha como compensação um toque do pai dizendo a ela que vai providenciar uma aula de canto para seu aperfeiçoamento de voz. A filha reage com dor, e expressa que outras tantas vontades que ela teve durante a vida não conseguiram guarida em razão dos apertos financeiros do pai, com ocupações sempre provisórias e de insucesso. 

 

Quando o pai a convida para fazer outra atividade, ela, aborrecida, recusa e passa a noite sozinha, e ele também. O mais grave é que ela tenta entrar no quarto sem sucesso e acaba tendo que dormir provisoriamente num sofá da portaria, sendo acordada mais tarde pelo responsável da portaria,  que então a encaminhou para o seu quarto com uma chave reserva. 

 

O clima de desencontro vai sendo aos poucos quebrado, com a retomada do passeio no dia seguinte. Eles estão indo para uma estação termal. Durante a viagem, no ônibus, ao acordar, o pai vem recebido pela filha com um olhar de afeto. Ela então achega-se a ele e o parabeniza pelo aniversário de 31 anos. 

 

Para ela o aniversário tinha um significado muito especial, pois ele a tinha revelado que na ocasião em que fez 11 anos, os próprios pais esqueceram da data, e quando foram lembrados por ele, a reação foi inusitada e agressiva. Por exigência da mãe, o pai então saiu com ele para comprar um presente: um telefone vermelho. 

 

Em outra cena do filme, quando estão visitando uma ruína antiga, o pai estava no alto de um anfiteatro abandonado, e era o dia de seu aniversário. Para fazer uma surpresa,  Sophie propõe em segredo aos que estavam ali no mesmo passeio uma saudação especial ao aniversariante. A cena é linda, com ele ao alto ouvindo a canção de parabéns, e a filha junto com os outros, com um olhar de grande ternura e delicadeza, celebrando aquela data tão especial. Tudo muito contagiante para os espectadores do filme.

 

Em outras cenas do filme, conseguimos flagrar Calum em momentos de grande tensão e desespero, como na cena em que chora convulsivamente no quarto, ou que direciona-se sozinho na noite escura para o mar, sob a pesada trilha de um barulho surdo das ondas. Ele avança para o mar e não vemos o seu retorno. Isso tudo durante o filme. Nada porém nos impossibilita de interpretar que possam ser cenas que se passam durante o passeio, mas igualmente cenas posteriores, já prenunciando uma morte decidida por ele, em razão de toda a dor que marca o seu momento presente. 

 

As passagens mais sombrias ganham sequência num jogo de luzes psicodélico, com flashes múltiplos e intermitentes, pontuados por luzes estrobocóticas, que expressam vivamente o momento confuso e doloroso por que está passando.   São, porém, questões de interpretação, que permanecem abertas para o expectador.

 

Há trechos do filme de grande beleza, quando, por exemplo, Sophie relata ao pai no quarto que em determinados momentos do recreio em sua escola ela olha para o céu, e quando consegue ver o astro – algo mais raro na Escócia – imagina que o pai também pode estar participando da mesma alegria. E acrescenta dizendo que mesmo estando os dois distantes um do outro, podem, de certa forma, pela magia do mesmo sol, viverem uma experiência de bonita e estranha proximidade. 

 

Chega a perguntar ao pai se ele tem vontade de retornar a Escócia, e ele responde negativamente, dizendo a ela que esse momento passou, que aconteceu com seu brilho na fase de seu crescimento, mas que agora o país não representava o mesmo para ele, e que aquele lugar não falava mais ao seu coração.

 

Sophie, em outro momento do filme, relata ao pai que ela também vive, às vezes, momentos de abafado sentimento. Os dois estão próximos do quarto, ela na cama e ele escovando os dentes, quando então relata para o pai que às vezes passa por sensações estranhas de baixo astral, quando vem tomada por um cansaço inexplicável depois de um dia feliz. E o sentimento é de vazio, como se estivesse afundando. O pai, de seu canto, ouve o lamento da filha, sem conseguir reagir ou animá-la. Tomado por angústia, ele cospe no espelho, numa atitude de dor, que expressa o seu momento e não consegue encontrar uma palavra de incentivo para a filha. Sua atitude foi de chamar a filha para sair do quarto.

 

Numa das últimas cenas do filme, os dois participam de uma festa de despedida, e ele, animado, vem tomado pela força da música e começa a dançar freneticamente. Por sua vez, a filha está à margem, meio deslocada no seu canto e ele então a convida para partilhar a dança. 

 

A trilha que embala o momento é significativa e forte, de autoria de David Bowie, e interpretada pelo grupo Queen. É uma canção que se chama Under Pressure, que um hit bem conhecido, mas cuja letra fala de uma situação de pressão, que é semelhante a que está vivendo Calum. A letra expressa bem o sentimento forte, onde a dor explode, misturada com uma estranha alegria, onde a presença da filha se revela ali fundamental. 

 

A letra da canção fala de uma pressão que incendeia e divide, de uma pressão que quebra qualquer harmonia. Fala igualmente de um terror que revela o estado do mundo, e que solicita uma reza que possa, quem sabe, traduzir um outro momento, regado agora por alegria. 

 

Calum se dava conta que talvez aquela seria a sua última dança, daí a expressão viva de seus gestos e o carinho imenso dedicado a filha. Talvez numa das mais lindas imagens do filme, os dois se abraçam num envolvimento de ternura dos mais fortes da projeção.

 

No dia seguinte, a filha retorna ao seu país, e o pai a leva ao aeroporto. Numa cena que vem repetida duas vezes no filme, no início e final, ela vai adentrando a zona reservada do aeroporto, onde somente os passageiros têm acesso, e a cada passo volta-se para o pai, que está filmando, e com seu sorriso lindo, vai dando o  seu adeus, talvez derradeiro. É tudo muito sublime. Quando ela desaparece de cena, ela então desliga a câmera e percorre um longo corredor, que ao final tem uma cortina que liga o corredor a uma zona de escuridão. Tudo muito revelador de um momento de dor que marca qualquer despedida. 

 

Há alguns indícios, como vimos, de que o que ocorre com Calum na sequência não seja algo tão irradiante, como no momento festivo daquele idílico período de férias em comum. A vida não é feita só de momentos festivos, mas também de momentos feriais, que são aqueles comuns e cotidianos. Em cena enigmática, a câmera focaliza um postal na mesa do hotel, onde Calum deixa registrada para a filha uma mensagem carinhosa, mas que é enigmática, onde diz: “Sophie eu a amo muito. Nunca esqueça disso. Pai”. 

 

Talvez esteja ali naquele bilhete a senha para entender o final do filme. Fica conosco uma mensagem que é difícil, quando percebemos que o amor nem sempre consegue segurar a dor e impedir as consequências de um desespero. Daí a pergunta que fica para o expectador: O que será que vem depois do sol ? Um título que pode ganhar também outros significados, como também “No entardecer”, ou ainda: “O que será que vem depois do filho?”, depois daquilo que estava tão próximo ?

 

Tentando expressar de forma poética o que fica conosco depois de ver o filme, e o que ele nos provoca como desafio, Pedro Siqueira sublinha em sua resenha:

 

“O que nos resta é aproveitar ao máximo as gotas de felicidade que a vida nos proporciona mesmo em um mundo extraordinariamente competente para nos entristecer”[6].

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[5]Rainer Maria Rilke. Cartas a um jovem poeta.  4 ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 54-55.

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