Celebrar cada passo da vida, nas alegrias e nas dores
Faustino Teixeira
UFJF / IHU
“Chegou o instante de aceitar em cheio
a misteriosa vida dos que um dia vão morrer”
Clarice Lispector
No mês de maio de 2023 andei lendo e refletindo sobre o movimento do morrer ou do enfrentar as dores que precedem a travessia. Tínhamos vivido aqui no Brasil experiências de perdas difíceis em tempos recentes, como Erasmo Carlos, Gal Costa, e agora a Rita Lee. As travessias de personagens queridos evocam essa reflexão. É verdade que muitos preferem evitar refletir sobre esses acontecimentos, pois são experiências que trazem dor e desconforto, além de nos colocarem diante desse fato inevitável para todos que é a morte. Seguindo, porém, uma indicação do poeta Rilke, devemos viver com coragem diante daquilo que nos é estranho, mas ao mesmo tempo enigmático e maravilhoso.
Sobre a experiência vivenciada por Rita Lee no período de sua doença, e sua capacidade bonita de resiliência frente aos acontecimentos por que passou, escrevi num breve artigo publicado no meu blog. Agora, retomo o tema focando-me em alguns outros livros envolvendo a temática, como o livro de Irvin D. Yalom e Marilyn Yalom: Uma questão de vida e morte[1]. Amor, perda e o que realmente importa no final. Esse é um livro que relata a história de um casal que partilhou com alegria sessenta e cinco anos de comunhão. No livro, os dois descrevem a experiência do enfrentamento de uma doença que acometeu Marylyn, e a forma singular como os dois lidaram com a proximidade da morte e ele com a experiência subsequente do luto.
Como sublinhou Alexandre Coimbra Amaral, no prefácio à edição brasileira do livro, “com a morte não há acordos, somente a possibilidade de entender o que ela faz conosco todas as vezes em que testemunhamos sua passagem, levando alguém amado e deixando aquele rastro amargo de saudade”[2]. Nesse caso particular, assim que a doença ganhou um grau de irreversibilidade, os dois optaram pela morte assistida, que é uma prerrogativa aceita na Califórnia (EUA), desde que esteja ocorrendo muito sofrimento numa doença fatal intratável. Na visão de Dr. Irvin, professor de psiquiatria na Universidade de Stanford e autor de diversos livros, a morte não passa de uma “reintegração aos cosmos”, e o corpo se integra como um composto ao solo. É o que também pensam autores sérios e que tenho lido com atenção, como Donna Haraway e Emanuele Coccia.
Na morte assistida, não é o médico que intervém junto ao paciente para ingerir os comprimidos letais, mas é o próprio paciente que, acompanhado, procede a decisão responsável. Em determinado momento da sua doença, Marylin expressou ao marido o seu desejo de partir, através da morte assistida. E o fez com muita naturalidade, mesmo sabendo de toda a dor que envolvia a família. Chamou seu marido em sua direção e disse:
“Irv, não se esqueça que estou vivendo com dor e sofrimento há dez meses. Eu já disse várias vezes que não posso mais suportar a ideia de viver assim. Dou as boas-vindas à morte, dou boas-vindas a estar livre da dor e da náusea e deste cérebro de quimio e desta fadiga contínua e desta sensação terrível. Por favor, me entenda: confie em mim, tenho certeza de que se você tivesse vivido todos esses meses na minha condição, você se sentiria da mesma maneira. Só estou viva por sua causa. Estou arrasada com a ideia de deixá-lo. Mas, Irv, está na hora. Por favor, você tem que me deixar partir”[3].
E assim se deu a Cerimônia de Adeus. Os dois escreveram juntos o livro, e os capítulos foram redigidos alternadamente, até que as condições de saúde de Marylin não mais permitiram a sua participação. O último capítulo foi escrito por Irvin, e dedicado à sua esposa. Não foi fácil para ele concluir o livro. Foram quatro meses envolvidos na redação e corroídos pela memória dolorosa da companheira de décadas. Ele relata que os últimos quatro meses sem sua esposa foram os mais difíceis de sua vida. Apesar de todo o apoio recebido dos filhos e amigos, reconhece que ainda estava entorpecido e deprimido com a falta de uma presença física de seus queridos, sentindo-se muito sozinho[4]. A dor ainda era maior em razão de seu ceticismo, não tendo nenhum dossel religioso para o consolar. Apesar disso, reconhece a presença da esperança em poder um dia se juntar à companheira querida nas veredas do cosmos. Conclui o livro com uma passagem clássica do livro do romancista russo Nabokov, Fala memória:
“O berço que balança acima de um abismo, e o bom senso nos diz que nossa existência é apenas uma breve fenda de luz entre duas eternidades de escuridão”[5].
Um outro livro de leitura emocionante foi de parceria entre Gilberto Dimenstein e Anna Penido[6]. Na trajetória que envolveu a passagem de Gilberto Dimenstein, a decisão foi um pouco diferente. Na etapa final de sua vida, Gilberto e sua esposa optaram pelos cuidados paliativos, sob a supervisão de uma competente doutora, especialista nessa área, Ana Claudia Quintana Arantes, autora do clássico livroA morte é um dia que vale a pena viver. Ela diz em certo momento de seu livro que “todos nós vamos morrer um dia. Mas, durante a nossa existência, nos preparamos para as possibilidades que a vida pode proporcionar. Sonhamos com nosso futuro e vamos à luta”[7].
Tendo passado por uma experiência difícil de transplante de medula, pude entender com uma luz nova toda a reflexão que Gilberto foi fazendo de sua doença e do processo gradual e difícil de seu tratamento. E aqui insiro todas as tentativas que ele realizou de lidar com o seu câncer. De início a aceitação do tratamento clínico tradicional, sob os cuidados de Dr. Paulo Hoff, grande especialista no tema. O tumor inicial era na cauda do pâncreas, mas depois irradiou-se para o fígado. Foram inúmeras experimentações com medicações e quimioterapia. O tratamento não surtiu efeito, a não ser no modo de ver o mundo por parte de Gilberto.
Mesmo não sendo religioso, o jornalista foi descobrindo novos caminhos de viver, sobretudo uma atitude distinta: ser capaz de surpreender-se, largar-se em entrega livre ao incondicional. Foi quando teve a oportunidade de encontrar aquele lado melhor de si que estava oculto na correria de sua vida. Foi um tempo de metamorfose radical para ele, com o amparo bonito de sua companheira de vintes anos de jornada, Anna Penido.
Juntos puderam então fazer muitas coisas bonitas, como viajar, caminhar sem destino, apreciar as comidas mais curtidas e conviver com os queridos da família. Como ele mesmo disse, a doença abriu portas para que ele adentrasse "num mundo encantado de sensibilidade". Como sublinhou Ana Claudia Quintana Arantes, “no tempo de morrer parece que a capacidade individual de compreender e tomar atitudes sobre o uso do próprio tempo se acelera”[8].
Nos dias em que se encontrava melhor, entregava-se a prazeres até então desconhecidos ou obstruídos em sua vida. Vale a pena reproduzir alguns relatos:
"O câncer me transformou em uma borboleta em pleno voo. Após a doença, a minha existência se tornou um campo de descobertas e foi incorporando sons, cores, sensações e emoções que ressignificaram a minha relação comigo mesmo e com todos à minha volta. Descobri uma rede de afetos e o amor incondicional. Comecei a viver o presente e os pequenos prazeres que me trazia. (...)
Descobri que o jardim da nossa casa é o mais bonito do mundo, porque é o jardim da nossa casa. Passei a olhar para ele de um jeito diferente. Nunca tinha notado que a mangueira dava tantos frutos e de cores tão variadas. Percebi que as orquídeas enxertadas nas árvores floresciam na época do meu aniversário. Passei a sentir o cheiro do jasmim. Ficava encantado com o colorido das helicônias, aquelas plantas vermelhas trançadas, que parecem esculturas. Apreciava cada sutileza e me refestelava quando a chuva caía, exalando um festival de fragrâncias (...).
Na rua, pedalava a minha bicicleta e sentia o vento beijar o meu rosto. Às vezes, estava deitado de frente para a janela do meu quarto e a brisa vinha brincar com os meus pés. Muitas dessas sensações me fizeram lembrar da minha infância, quando ainda não tinha sido corrompido. Foi como ganhasse um upgradno meu softwaremocional. Passei a celebrar a vida. Tão importante quanto a minha metamorfose de taturana para borboleta foi a minha migração do território do ódio para o das gentilezas"[9].
Foi aos poucos descobrindo e entendendo o espaço da fruição que tinha eliminado de seu cotidiano, e isto fez lembrar as reflexões feitas pelo amigo Rubem Alves a respeito[10]. Revela no livro que pôde adentrar-se num “mundo encantado da sensibilidade” que o possibilitou “enxergar a doença como uma parada estratégica e não necessariamente como o fim da vida”[11].
Em certo momento, ele afirmou: "Câncer é algo que não desejo a ninguém, mas desejo para todos a profundidade que você ganha ao se deparar com o limite da vida"[12]. Eu que também passei por uma experiência-limite, pude compreender essa transformação do olhar a partir de leituras que fiz, por exemplo, de Abraham Maslow, que associa certas vivências ao que chamou de “experiência cume”[13].
Trata-se de uma experiência que possibilita “perceber o universo como uma totalidade integrada e unificada”[14]. Quando o mundo vem contemplado a partir de uma “experiência cume”, ele ganha uma nova visada, sendo envolvido agora por beleza singular e reveladora, que nem a todos é permitido captar e compreender[15].
Assim como não escolhemos como chegamos ao mundo, não há como também escolher como se vai embora. Para Gilberto, foi uma ocasião bonita de fazer um balanço de vida, apoiado em pessoas queridas como o rabino Nilton Bonder.
Gilberto também aproveitou seu tempo, sobretudo no início do tratamento, em companhia de Anna, para dedicar-se às causas de interesse público. Pôde agradecer essa linda oportunidade de realizar iniciativas que lhe proporcionaram imensa satisfação. Podia também, na contramão da correria de sua vida anterior, viver dias onde simplesmente não fazia nada: apenas curtia o visual de sua casa na Vila Madalena, em São Paulo. E também a alegria de seus dias de avô.
Um dos fatos que ele se lembrou e que registra no livro, como algo negativo em sua vida passada, foi a loucura com que se dedicava ao trabalho, o excesso de dedicação à profissão, em prejuízo do convívio com a família. Ele recorda que quando seu filho Marcos ainda era pequeno, ao responder a um pedido de sua professora, desenhou sua família. No desenho, o filho Marcos estava de frente, de mãos dadas com a mãe e o irmão Gabriel. O pai, ao contrário, estava de costas concentrado no seu computador[16].
Foram várias experiências com quimioterapias, mas sem sucesso. Ele chamava sua doença de caranguejo que o comia por dentro[17]. E, de fato, foi se enfraquecendo cada vez mais. Sob o impulso e incentivo de Anna tirava do fundo da alma a vontade de continuar ali presente: "não podia desistir antes de tentar".
Os dias se revezavam entre dor e prazer: o cansaço aumentava com o decorrer do tratamento. Tudo agora era mais difícil, como a masculinidade afetada e a dificuldade de alimentação. Ele relata que “quando o amor e o sexo se descolaram”, em razão do efeito dos medicamentos, pôde descobrir horizontes novos, e sua “capacidade de amar se expandiu”[18].
Algumas coisas bonitas ocorriam como o retorno dos gostos da infância, da memória de passos importantes do passado. Quando podia caminhar com tranquilidade, adorava flanar e desbravar os cantinhos mais recônditos, e descobria por acaso o canto das coisas (serendipity).
Chegou um momento onde a medicina tradicional não fazia mais efeito, e teve então que buscar apoio na medicina paliativa. O caso estava agora fechado, como terminal. O jornalista já tinha passado por oito diagnósticos de imagem, e não havia mais esperança de cura. Para o apoio, nesse momento, contou com a preciosa ajuda da Dra. Ana Claudia Arantes, uma especialista nessa área. Com a presença da nova médica, ele ficou mais tranquilo ao saber que não iria sofrer, pois a medicina poderia garantir-lhe o alívio que necessitava.
No livro de Ana Cláudia, ela nos adverte que nos hospitais brasileiros a assistência aos doentes terminais é ainda muito insuficiente. Os médicos se acham bem despreparados para lidar com os casos. Sublinha que a grande luta “dos profissionais de Cuidados Paliativos é indicar a sedação paliativa exclusivamente para condições nas quais o sofrimento seja refratário ao tratamento recomendado”[19].
O tempo que se seguiu, no caso de Gilberto Dimenstein, foi de despedidas. Na ocasião, foi a primeira vez que ele se rendeu ao choro. Foi também a primeira vez que manifestou o desejo de ir embora[20]. Gilberto tinha a clara consciência de que o câncer propiciou-lhe momentos bonitos de amor e de reaprendizado: "Reaprender a ver a vida a partir da perspectiva da morte". Um tempo denso, carregado de possibilidade novas, que talvez nunca pudesse ter experimentado de outra forma.
Ele fez sua travessia no dia 29 de maio de 2020. Na última parte do livro, é Ana que escreve para ele. Num momento de intimidade, pôde então dizer a ele que podia ir em paz. Na mensagem final, ela diz, amorosamente, que unir sua vida à dele não foi uma escolha, mas um destino[21].
Anna descreve os momentos finais junto a Gilberto; a dura tomada de posição quanto ao momento de interromper a quimioterapia; a partilha das alegrias derradeiras mas também dos pesadelos. Como disse, "à noite, os pesadelos revelavam a sua insegurança diante daquela que seria a sua mais desafiadora caminhada rumo ao desconhecido. Não havia guias, placas ou pontos de referência que pudessem orientá-lo"[22]. E ela não poderia mais acompanhá-lo nessa última viagem.
Com a Dra. Ana Claudia, Anna aprendeu "que empatia é sentir a dor do outro e, muitas vezes, adoecer junto com ele. Já a compaixão é querer transformar a dor do outro, mesmo que para isso se tenha que aprofundar a própria dor"[23]. E enfim, ele partiu sozinho no seu "barquinho colorido". E partiu levando consigo a calça jeans e a camiseta de malha cinza, que tanto amava.
Outros livros abordam esse tema da morte, como Oscar e a Senhora Rosa, do filósofo Eric-Emmanuel Schmitt[24]. A obra aborda os últimos dias de um garoto que tinha passado por um transplante de medula, sem sucesso. Seus dias finais foram iluminados pela presença de uma voluntária, senhora Rosa, que conseguiu com ideias e histórias fantásticas redimensionar aquele momento vital. Ela entra com todo o seu coração para acariciar os últimos dias do menino recorrendo ao mundo da fantasia. Ela também convenceu o menino a escrever cartas para Deus, e ele o fez até seu último dia de vida.
Depois que passa por fracasso em seu transplante, Oscar relata em sua primeira carta a Deus a mudança de clima no hospital onde estava internado, depois que seu transplante não deu certo. Narra que foi acolhido ali com muito carinho, tendo à sua disposição muitos brinquedos, que partilhava com outras crianças também em tratamento. Ali fez muitas amizades. Reconhece o hospital como um lugar “supersimpático, cheio de adultos de bom humor e voz forte”[25], sobretudo quando os procedimentos clínicos dão certo. Diz ainda que “os médicos são inesgotáveis, cheios de ideias de operações para fazer nas pessoas”[26].
Narra que depois do “fracasso” de seu transplante, deixou de agradar, ou melhor, sente que passou a não mais agradar. Deixava de ser um sujeito para as promessas alvissareiras dos profissionais de saúde. Quando examinado pelo seu médico, não percebe mais aquele entusiasmo anterior, pois sente-se como "uma decepção para ele". Diz, que a partir de então o médico passou a olhá-lo de forma silenciosa, “como se tivesse feito alguma coisa errada”. E Oscar reage dizendo que sempre foi bem comportado, cumprindo todas as determinações prescritas[27].
Narra ainda que "o pensamento de um médico é contagioso". Lembra que depois do sucedido as enfermeiras, residentes e faxineiras "forçam o riso" diante dele[28]. Não há mais diversão como antes... Até que apareceu, por sorte, Dona Rosa, que reencantou o seu mundo naquele momento final. Foi uma pessoa que o ajudou a fazer a travessia. Mostrou para ele que a vida é mesmo frágil e efêmera e que todos fingem que a vida é uma viagem imortal[29]. Mas com sua didática e magia, conseguiu dar significado aos seus últimos dez dias de vida. E a última carta para Deus não foi feita por Oscar, que tinha falecido, mas por senhora Rosa que sinalizou a importância exercida pelo menino em seu coração. Ela diz:
“Obrigada por ter posto Oscar no meu caminho. Graças a ele, fui engraçada, inventei lendas, até parecia entender de luta livre. Graças a ele, ri, descobri a alegria. Oscar ajudou-me a acreditar em Você. Estou lotada de amor: Oscar foi generoso, tenho um estoque para o resto dos anos”.
A morte pode também acontecer criança, quando toca com seus lábios, antes do tempo, os pequenos indefesos. Isso ocorreu na experiência abissal de Bianca Dias, e foi descrito por ela num livro que é único, Névoa e Assobio.[30]Estamos diante do mesmo mistério incognoscível. Participei escrevendo a introdução do livro, que defini como “A canção de Caetano”.
Bianca relata com emoção sua experiência de acolhida de uma criança, com dedicação, carinho e reverência. Ela tinha nascido franzina, com muito pouca chance de sobrevivência, mas a mãe guerreira, contra todas as previsões médicas, ousou acreditar na vida. Relato na minha introdução, que
“todo o processo foi marcado pelo ritmo do milagre: a ´gota improvável`, a fertilização surpreendente, a quebra dos prognósticos. O parto também foi um dom, respondendo positivamente a um silêncio denso que percorreu os meses de solidão e expectativa. O nascimento, com impacto de clarão, foi precedido por um mantra suscitado pelas forças mais íntimas do coração: ´nasce filho, nasce filho, nasce filho”. E ele atendeu à prece, sobrevivendo e resgatando um sentido novo para a existência daqueles que o aguardavam. Estava ali, de forma frágil mas desperta, reagindo a tantas indagações e demandas. A vida, em verdade, ´respondeu com sua presença viva`”.
E aquele fio de gente ainda pôde sorver da alegria de enlaçar sua mãozinha na da mãe, guiando-a para um novo lado da existência, marcado por pura gratuidade. Mesmo vivendo apenas cinco dias, pôde fazer brotar em Bianca a mágica experiência da maternidade. Naquele gesto de sopro e assovio, das mãos enlaçadas, um novo sentido se anunciava, de reinvenção do espiritual.
Caetano nasceu como um “poema breve”, como um haikai fugidio, mas que deixou uma luz imperiosa, um legado de amor que transformou existências. Como expressou Bianca, ela pôde viver com Caetano pistas bonitas para novas conexões com a vida, numa experiência abissal que deu razão a uma maneira única e milagrosa de ser mãe.
A morte é uma experiência que só conhecemos por enigma, e que chega provocando trovões mas também brisas, quando consegue ser acolhida com a sensibilidade de quem pode entender o ritmo imprevisível da vida. Devemos reconhecer, porém, que ainda há muitas pessoas que temem a morte, mas curiosamente vivem sem saber que o modo como procedem adianta a sua vinda: “bebem além da conta, fumam além da conta, sofrem além da conta. E vivem de um jeito insuficiente”. São, na verdade, pessoas corajosas, pois “têm medo da morte e se apressam loucamente em encontrá-la”[31].
É tão bonito ver que pessoas especiais são capazes de lidar com essa neblina de forma serena e madura, captando que “todo o tempo que existe” pode estar concentrado numa porção indefinida de permanência.
No livro da poeta Adriana Lisboa[32], ela relata o encontro derradeiro com seu pai, que foi ceifado pela Covid 19. A cena do encontro dos dois, no espaço blindado do CTI, é de uma delicadeza que encanta o coração. Adriana perdeu seus pais num curto período de tempo, e teve que viver um luto ainda mais difícil. O seu encontro emocionante com o pai, já em estado terminal, num 16 de agosto, foi descrito com emoção.
Com sua mão, revestida de uma luva de látex, Adriana pôde sentir a presença bonita de seu pai, e ainda dizer para ele: “E que bobagem isso de literatura”. Naquele derradeiro momento, ela não valia de nada. Junto ao ouvido de seu pai balbuciou a importância nodal das “palavras simples”, daquelas que brotam “de dentro”, das “palavras cicatrizes”. O que ocorreu ali entre os dois é mistério de amantes. Pôde então agradecer a ele por tudo que fez na vida e expressar o seu grande amor. Com palavras doces, pediu a ele para que sorrisse, tomasse sua mão e acenasse numa despedida de doçura e alegria[33].
O importante filósofo italiano, Norberto Bobbio, em seu livro que trata da velhice, O tempo da memória (De Senectude), fala dos mistérios que envolvem o pós-morte na reflexão daqueles que ainda estão vivos. Relata que é um tema que ainda merece pouca atenção na reflexão. O que se sabe com clareza é que os homens são mortais, e isso é algo que se constata a todo tempo, e com muita dor e saudade. Porém, a passagem para a outra vida é motivo de muita interrogação, seja nas religiões ou nas filosofias. O que é patente é
“que nossa experiência não nos permite saber absolutamente nada, cada religião, cada vivente ou visionário, cada sábio que crê ou finge saber, cada homem, mesmo o mais simples que se assusta diante da perspectiva de sua própria morte ou não se conforma com a morte da pessoa amada, dá a sua própria resposta”[34].
Bobbio sublinha em certo momento que com a morte adentramos “no mundo do não ser”. Em sua visão agnóstica acredita que o ser humano em sua passagem retorna “ao mesmo mundo em que estava antes de nascer”. E pontua que se acaso morresse antes de sua mulher, com quem dividiu a vida por mais de meio século, igualmente nada poderia saber sobre sua morte. Relata que ela não só morrerá sem ele, como ele nada poderá saber sobre o mistério que envolve esse acontecimento[35].
Num dos títulos de um dos inúmeros livros escritos pelo nobre mestre zen do Vietnã, Thich Nhat Hanh, ele diz que “sem lama não há lótus”, ou seja não há possibilidade de luz sem a experiência do sofrimento e da dor. É algo que faz parte da vida finita, da vida contingente e impermantente.
Diz ser possível trabalhar interiormente com as experiências da dor e da impermanência, incluindo aí a enigmática questão da morte. Como indica Milton Nascimento, a vida é tecida por encontros e despedidas. O que ocorre a cada dia são chegadas e partidas. Tudo faz parte do mutirão da existência. E há que saber louvar cada passo, curtindo cada dia. É o que também canta José Miguel Wisnik:
“Louvar quem vai nascer
Quem vai permanecer
Também quem vai passar”
Na visão de Thich Nhat Hanh, que também partilho, estamos todos interligados com os elementos do cosmos. Nós mesmos somos terra e o nosso corpo vem composto por elementos do planeta. Nesse sentido, a morte é reintegração nesse horizonte planetário. O que se dá, em verdade, é uma metamorfose, uma continuação. Não há fecho para o ciclo do tempo. Ele se perpetua. Estamos em contínuo movimento. Como mostra o sábio vietnamita, “a impermanência também deve ser entendida à luz da existência interligada”[36].
Para Thich Nhat Hanh, o ser humano é como a nuvem, que se revela a cada momento em novas e surpreendentes formas. A nuvem não se extingue, ela muda de forma. Assim também nós humanos. Não há como justificar que a existência tenha como horizonte o nada: “´Algo` não pode se transformar em ´nada` e ´nada` não pode se transformar em ´algo`”[37]. O que é certo, é que todos os seres, sejam animados ou ditos inanimados, estão “muito vivos”.
Animados com a visão profunda da interligação nos damos conta de que não somos excepcionais, mas que estamos profundamente vinculados com os elementos não humanos, e que eles estão vibrando em nós. Não compreender isso é causar um profundo prejuízo à Terra[38]. Os humanos, na verdade, “estão constituídos de todos os nossos ancestrais. As montanhas, o rio, a rosa, o planeta, todos são constituídos de elementos que não são montanhas, não são rios, não são rosas e não são planetas”[39].
O fundamental na vida é saber curtir cada dia, cada instante, como se ele fosse um instante de plenitude, como diz o mestre Dôgen. E a cada dia louvar e agradecer o dom da vida, no momento em que se doa a nós, e estar sempre atento para deixar-se habitar pelas maravilhas do nosso lugar e do nosso ser. Esse é um sábio conselho que o suave mestre do Vietnã sempre nos ensinou: interromper de vez em quando a grande correria da vida, a rapidación, e poder estar atento, sentido com vigor o sentimento de “estar presente”, poder olhar o céu, respirar e sorrir”[40].
[1]Irvin D. Yalom & Marilyn Yalom. Uma questão de vida e morte. Amor, perda e o que realmente importa no final. São Paulo: Planeta, 2021.
[2]Ibidem, p. 9.
[3]Ibidem, p. 107.
[4]Ibidem, p. 199.
[5]Ibidem, p. 202.
[6]Gilberto Dimenstein & Anna Penido. Os últimos melhores dias da minha vida. Rio de Janeiro / São Paulo: 2020.
[7]Ana Claudia Quintana Arantes. A morte é um dia que vale a pena viver. Rio de Janeiro: Sextante, 2019, p. 70.
[8]Ibidem, p. 76.
[9]Gilberto Dimenstein & Anna Penido. Os últimos melhores dias da minha vida, p. 23-25.
[10]Ibidem, p. 27-28.
[11]Ibidem, p. 27
[12]Ibidem, p. 31.
[13]Abraham Maslow. Religiones, valores y experiências cumbre. Barcelona: Ediciones La Llave, 2013.
[14]Ibidem, p. 99.
[15]Ibidem, p. 104.
[16]Gilberto Dimenstein & Anna Penido. Os últimos melhores dias da minha vida, p. 93.
[17]Ibidem, p. 64.
[18]Ibidem, p. 52.
[19]Ana Claudia Quintana Arantes. A morte é um dia que vale a pena viver, p. 188.
[20]Gilberto Dimenstein & Anna Penido. Os últimos melhores dias da minha vida, p. 110.
[21]Ibidem, p. 119.
[22]Ibidem, p. 126.
[23]Ibidem, p. 127.
[24]Eric-Emmanuel Schmitt. Oscar e a Senhora Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.
[25]Ibidem, p. 8.
[26]Ibidem, p. 15.
[27]Ibidem, p.9.
[28]Ibidem, p. 10.
[29]Ibidem, p. 16.
[30]Bianca Dias. Névoa e assobio. Belo Horizonte: Relicário, 2015 (com desenhos de Julia Panadés)
[31]Ana Claudia Quintana Arantes. A morte é um dia que vale a pena viver, 68.
[32]Adriana Lisboa. Todo o tempo que existe. Belo Horizonte: Relicário, 2022.
[33]Ibidem, p. 113.
[34]Norberto Bobbio. O tempo da memória. De senectute. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 39.
[35]Ibidem, p. 43.
[36]Thich Nhat Hanh. Sem morrer, sem temer. Sabedoria confortante para a vida. Petrópolis: Vozes, 2020, p. 48.
[37]Ibidem, p. 68.
[38]Thich Nhat Hanh. Zen e a arte de salvar o planeta. Petrópolis: Vozes, 2023, p. 43.
[39]Ibidem, p. 44.
[40]Ibidem, p. 129-130.
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