A literatura e a arte de lidar com a raiva
Faustino Teixeira
UFJF / IHU
Sempre fiquei muito impressionado com a passagem do Grande Sertão: Veredas em que sublinha que o ódio não carece de razão (GSV, 284)[1]. Enquanto seres ambíguos, nós homens humanos podemos ser tanto tomados pela “vozinha” do bem como pelo “vapor do mal” (GSV, 338 ).
Como diz Riobaldo, “tudo sai é mesmo de escuros buracos, tirante o que vem do Céu” (GSV, 426). O cuidado maior, para evitar que “os avessos” nos dominem é não deixar o diabo pôr sela (GSV, 352) e deixar-se habitar pelo perfume da Virgem, que aponta sempre para “miúdes remansos” (GSV, 338).
Riobaldo fala em certo momento que a mão da gente pode "ser capaz de ato sem o pensamento ter tempo" (GSV, 368). É algo bem sério, que aguça o pensamento e a preocupação. A violência pode também surgir como reação legítima daqueles que nesse mundo não possuem nenhum dinheiro ou poder, e que se sentem ameaçados (GSV, 280).
O ser humano é um "bicho" estranho que pode ser tomado, sem mais, por uma raiva estranha que vem de recantos profundos e sombrios, que como um "bicho subterrâneo" emerge provocando estragos e mesmo crimes. Isso dá o que refletir.
Num dos contos morais de J.M. Coetzee ele aborda o tema do cachorro e do ódio que o acompanha[2]. Pobre da moça da bicicleta que tem que lidar com essa situação toda vez que passa em frente à garagem onde está o cão nervoso[3].
Como diz os escritor, "em seus olhos amarelos ela sente ódio do tipo mais puro brilhando para ela". Nas passagens regulares da moça pelo portão, o cachorro guarda na memória o momento certo para sua explosão, bem como a satisfação de domíná-la e ser temido.
A moça "exala o cheiro do medo" e não consegue disfarçar seu sentimento. Cansada dessa rotina, e imaginando a possibilidade de uma mudança, ela resolve um dia parar na casa do proprietário e buscar uma conversa harmoniosa com ele.
Propõe aos donos do cão uma oportunidade de contato mais próximo com o animal para tentar uma maior familiarização com ele, de forma a quebrar essa ideia dela parecer um inimigo para ele.
A moça argumenta que sua passagem corriqueira por ali podia ser mais calma, sem tais intempéries. Ela diz: "Tenho o direito de não ser amedrontada, de não ser humilhada em uma via pública".
O casal reage negativamente e propõe à moça de pegar uma outra rua, e que eles não devem satisfação a ela: "Não convidamos você a passar por aqui". E irritados a advertem que ela não tem o direito de pautar a forma como devem agir. Ela vem convidada a se retirar da casa.
Ela então se retira da casa e quando fecha o portão, o cão novamente retoma sua cantilena, atirando-se contra a cerca. E ainda "pensa": "Um dia, diz o cachorro, esta cerca vai ceder. Um dia, diz o cachorro, vou te despedaçar".
A moça sai da casa "com a calma que consegue ter", ainda que tremendo. Sente as "ondas de medo" transpassar o seu corpo, e olha para o cachorro e fala com palavras humanas: "Maldito, vá para o inferno". Aí monta em sua bicicleta e segue sua rota rotineira.
Lendo agora o livro de Olga Tokarczuc que trata da escrita[4], ela aborda esse tema da raiva que nos acomete, e isto me fez refletir. Pensar, por exemplo, no dia em que fui tomado pelo "bicho subterrâneo" e saí em correria para lidar com as emoções difíceis dos cortes de árvores que estavam ocorrendo aqui no meu condomínio. Posso dizer que fui tomado pela raiva.
O texto de Olga ajuda-me a entender o sentimento que vivi. Ela indica que o ódio é uma emoção que abordamos sempre de forma negativa e destruidora, uma emoção que pode provocar caos e violência. Não tenho dúvida.
Ela surge, porém, muitas vezes, como diz com pertinência a autora, "como reação à limitação da própria força da liberdade, uma réplica à impotência. Ela explode quando percebemos que nosso sentimento de dignidade e justiça foi maltratado"[5].
Fiquei aliviado ao ler essa argumentação de Olga, entendendo de forma mais precisa a razão daquela minha dor e iracúndia.
Ela assinala ainda que a raiva pode igualmente desvelar paradoxalmente uma outra de suas faces, que é a compaixão, ou seja, a de "posicionar-se ao lado dos fracos, excluídos, desamparados, silenciados"[6], como naquele caso concreto por mim vivido, que foi o da derrubada irracional das árvores, que não tinham como se defender.
E Olga complementa sua reflexão dizendo que a arte e a literatura são canais propícios para lidar artisticamente com esses sentimentos: "A literatura, como a arte em geral, serve precisamente para enfrentar aquilo que nunca nos deixaríamos fazer na vida real, permitindo que procuremos processar no mundo da ficção e imaginação os lados sombrios de nossa natureza"[7].
Perfeito!
[1]Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas. 22 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
[2]J.M. Coetzee. Contos morais. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
[3]Ibidem, p. 7-13.
[4]Olga Tokarczuk. Escrever é muito perigoso. São Paulo: Todavia, 2023.
[5]Ibidem, p. 201.
[6]Ibidem, p. 201.
[7]Ibidem, p. 202.
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