Os Humanos e os animais
Faustino Teixeira
UFJF / IHU
Há um momento precioso no livro de Maria Esther Maciel – Animalidades[1]- quando ela fala das biografias caninas. Ela chama a atenção para o precioso livro de Virginia Woolf, “Flush, uma biografia[2]. Fala também, em outro momento do livro sobre “o matar por compaixão”, e os dois exemplos que dá são da cachorra Karenin (A insustentável leveza do ser) e da Baleia (Vidas secas)[3].
Fui então rever “A insustentável leveza do ser”, no capítulo que aborda a doença e sacrifício de Karenin. De fato, no livro de Kundera, o carinho que une Tereza a Karenin é único. Foi o mais lindo presente que ele ganhou de Tomás[4], e entre os dois se criou um bonito laço de amizade.
Karenin era a companheira no cotidiano de Tereza quando foi para o campo. As duas estavam sempre junta. Como diz Kundera, Karenin “aprendera a latir para as vaquinhas quando elas ficavam mais agitadas e começavam a se distanciar do rebanho; sentia como isso grande prazer”[5].
Na tribulada vida com Tomás, movida por um ciúme doloroso, Tereza vem tomada por uma “ideia blasfematória da qual ela não consegue se desvencilhar: o amor que a liga a Karenin é melhor que o amor entre ela e Tomás. Melhor, mas não maior”[6].
E por que isso? Pelo fato do amor que liga o cão à mulher é um amor desinteressado, que não exige nada. Trata-se “de um amor espontâneo, não é forçado por ninguém”[7]. O amor que existe entre Karenin e Tereza é um amor idílico, sem conflitos ou cenas dramáticas. Tereza não precisa fazer a Karenin as tradicionais perguntas que uma mulher faz a um homem, e que provocam tensões: “será que ele me ama? Será que gosta mais de mim do eu dele? terá gostado de alguém mais do que de mim?”[8]. São perguntas que interrogam o amor, o avaliam e investigam. Isso não se dá na relação com os cães.
No momento decisivo da eutanásia de Karenin, ela se aconchegou no colo de Tereza, com o carinho de sempre, segurando com as mãos a sua cabeça, delicadamente. Messe nesse momento final, Karenin anda lambeu o rosto de Tereza duas ou três vezes, enquanto Tereza sussurrava para ela: “Não tenha medo, lá você não sofrerá, lá você verá esquilos e lebres, lá haverá vacas, e Mefisto também, não tenha medo”[9].
No caso da morte da Baleia, em Vidas Secas, o drama foi igualmente difícil. Ela era a companheira dos retirantes, como uma pessoa da família, e Fabiano teve que tomar a atitude de colocar fim à sua vida, depois que ela adoeceu. Sinha Vitória e os meninos não quiseram ver a cena, e só se atormentaram com o rumor do tiro[10]. No desespero da dor, a cadela “pôs-se a latir e desejou morder Fabiano”[11]. Isso, porém, não ocorreu. O amor era mais forte, ainda que ela não conseguisse entender aquele desfecho. Foi quando ela foi se recolhendo, procurando um lugar seguro para se esconder. Ainda conseguia sentir o cheiro bom das preás, sem mais conseguir correr ao seu encalço. Agora, ela apenas queria dormir, e poder acordar feliz “num mundo cheio de preás”[12].
[1]Maria Esther Maciel. Animalidades. Zooliteratura e os limites do humano. São Paulo: Instante, 2023.
[2]Ibidem, p. 85-87.
[3]Ibidem, p. 51 e 76-81.
[4]Milan Kundera. A insustentável leveza do ser. Rio de Janeiro: Rio Gráfica, 1986, p. 29.
[5]Ibidem, p. 286.
[6]Ibidem, p. 298.
[7]Ibidem, p. 299.
[8]Ibidem, p. 298
[9]Ibidem, p. 303.
[10]Graciliano Ramos. Vidas Secas. Rio de Janeiro / São Paulo: Record, 2018, p. 164-165.
[11]Ibidem, p. 173.
[12]Ibidem, p. 173 e 181.
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