sexta-feira, 12 de maio de 2023

Sobre Aros, Iras e Eros

 Sobre Aros, Iras e Eros

 

Faustino Teixeira

UFJF / IHU

 

Houve um tempo em que me dediquei à leitura de Lya Luft. Tinha ficado impactado com o seu livro, O lado fatal (1988). Nessa obra ela abordava a dor da perda de seu companheiro querido, Hélio Pellegrino, conhecido psicanalista, militante e místico. Sua morte tinha ocorrido em 23 de março de 1988. 

 

Como Lya disse, ele teve “a morte de um guerreiro”. Para lidar com a “perda” profunda, a escritora escreveu seu livro de poemas, que é precioso. Ela escreveu pensando nele, visando “reviver um grande amor entre dois pássaros ´varados em pleno voo`”. 

Inicia o livro com uma expressão de dor: “Quando meu amado morreu, não pude acreditar”. Dois anos tinha recebido uma carta dele em que ele falava do amor como coisa curiosa: “por nos aproximar da vida dá-nos uma experiência de eternidade, e por isso mesmo nos mergulha na finitude, para aceitá-la e salvá-la. Morte e amor andam embolados. O amor nos faz famintos de eternidade e a morte é a porta desse indizível barato”.

 

Com sua partida, Lya mergulhou num tempo de sombras e dor que custou a primaverar. O momento de luto exigia silêncio: “Façam silêncio a meu redor. Não me interessa nada o cotidiano nem o místico”. 

 

Era uma ocasião diferente, onde nem mesmo os “grandes mistérios da eternidade” suscitavam interesse. Era o tempo de levar o amado no peito. Num poema, dizia:

“Não digam que isso passa,não digam que a vida continua,que o tempo ajuda,que afinal tenho filhos e amigose um trabalho a fazer (...).Não digam nada (...)da minha dor sei eu.”

Começo aqui falando de dor e de perda, mas a razão de minha mensagem é outra, está fundada na alegria, que aliás foi o tema da mensagem do evangelho de ontem, 11/05/2023: “Eu vos disse isto, para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja plena” (Jo15,11). 

 

Em seu livro Rio do meio (1996), Lya Luft fala das meninas que “olham a vida com olhos grandes de admiração”. São vidas tocadas por uma graça especial, concedida pelo tempo, que lhes possibilita a retirada de uma película que impede a explosão e a pureza da alma. 

 

São meninas ensolaradas, cuja “luminosidade se espalha por toda parte”. Elas podem passar por adversidades, como todos nós, mas são movidas por beleza singular, muito além daquela manifestada no corpo, porque vem de dentro, daquele “braseiro” interior de que fala Teresa de Ávila. São meninas habitadas por uma “espécie de obstinado sol que se desprende delas como um perfume”.

 

Falo aqui de uma amiga querida, de uma menina que conheci no Nordeste durante uma assessoria pastoral. Dirigia na Universidade um trabalho maravilhoso, que deixou marcas bonitas naquela cidade. 

 

Ela se chama Tatiana Passos Zylberberg, e veio da Educação Física. Passou por momentos difíceis na caminhada, duros mesmo, mas que venceu com sua resiliência, obstinação e vontade de viver.

 

Hoje, dia 11 de maio de 2023, ela vai falar sobre sua experiência poética para um grupo muito especial, criado há tempos, que trata o tema da literatura e mística. Trata-se de um grupo reduzido, onde cada mês alguém fala de um personagem da literatura, mas com o olhar voltada para a mística. Esse é o desafio proposto. Na sequência, as pessoas partilham suas impressões da leitura escolhida para a ocasião.

 

O texto de hoje, maravilhoso, é da própria Tatiana e fala das Tessituras da vida, ou para ser mais exato, das experiências concretas vividas por Tatiana em sua linda trajetória, feita de três (des) encontros: Aros, Iras e Eros. Foram as singulares expressões que encontrou para relatar a dinâmica de sua vida. 

 

Quando fala de Aros, quer expressar a sua alegria das pedaladas que a ajudaram a redescobrir o seu corpo nublado. Apesar da agitação da vida, encontrava espaços para dedicar-se à exposição ao tempo, deixando o vento invadir seu templo interior. 

Quando fala de Iras, quer apontar os passos difíceis que enfrentou na vida, de tristeza, dor e violência; experiências que a fizeram se isolar de seu ambiente. Ao mesmo tempo, possibilitaram novos caminhos de reverberação, de modo a poder expressar e gritar sua ira num movimento libertador. 

 

Quando fala de Eros, quer revelar aquilo que ficou sufocado na neblina da vida, e que a fez afastar-se daquilo que mais gosta, que são os versos e os palcos. 

Aos poucos, com a ajuda de pessoas queridas, foi encontrando brechas para redescobrir a alegria da vida e os caminhos alternativos para curtir a beleza do mar e o carinho das partilhas. 

 

Tudo começou bem devagarinho, através das correspondências. Foi quando descobriu que os afetos “cabiam em envelopes e viajavam quilômetros”. E, aos poucos, o esplendor da vida rebrotava com ousadia, num desafio bonito de “levantar a cabeça, abrir o peito e soltar a voz”. 

 

Foi seu momento de primavera, a estação da alegria, como tão bem expressa José Miguel Wisnik:

 

"A primavera é quando ninguém mais espera

E desespera tudo em flor

A primavera é quando ninguém acredita

E ressuscita por amor".

 

Nasceram assim momentos novos de quebras de barreiras e resgate de silêncios. Situações difíceis foram superadas com bocados de exercícios interiores, bem ao modo de Etty Hillesum, a grande mística holandesa que morreu em Auschwitz aos 29 anos. 

Como ela diz em seu texto, passou a dedicar rigorosamente 20 minutos diários para se aproximar de si mesma. Era o caminho aberto para poder, de novo, aprender a se amar, e amar os outros ao redor.

 

A poesia estava ali com ela, sempre junto, na cabeceira da vida, a inspirar novos caminhos e horizontes. 

 

E o bonito nisso tudo é que ela não deixava a poesia aprisionada nela mesma, mas busca sua ressonância nos outros. Como muito bem expressou, tomou consciência de que devemos deixar a poesia voar e chegar livre ao outro: o desafio de “fazer-se ler”. 

Compreendeu ao final, e relata lindamente em seu texto, que não se pode privar do sagrado direito de “escolher a vida, o tempo todo, em toda parte”. Ou como diz o personagem do maravilhoso filme, Drive my Car, “temos que continuar vivendo”. 

É maravilhosa a poesia que ela nos brinda ao final de seu texto, quando nos adverte sobre a importância de “desacelerar”, bem como a de “surfar uma onda por vez. Soltar mais a voz e a poesia”. 

 

E também, “sorrir para toda gente”, como aquele menino singular, Momô, do livro de Eric-Emmanuel Schmitt – Seu Ibrahim e as flores do Corão (2001), que aprendeu como o sorriso é capaz de abrir as portas mais importantes para a nossa felicidade. Nas longas conversas com seu Ibrahim, descobriu “que sorrir é que nos faz felizes”.

 

Parabéns, Tatiana, pelo seu lindo texto.

 

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