segunda-feira, 8 de maio de 2023

Como naquele cofre no fundo do mar

 Como naquele cofre no fundo do mar

 

Faustino Teixeira

 

Eu que trabalho o tema do diálogo e do encontro, vejo-me às vezes diante de atitudes que me surpreendem e contradizem o meu discurso. Isso ocorre quando não conseguimos manter a tranquilidade e a delicadeza nas relações, e muitas vezes por nos depararmos com atitudes difíceis e incompreensíveis dos interlocutores e também nossas. 

 

Quantas vezes já tenho dito aqui que somos marcados por profunda ambiguidade, e que não conseguimos ser aquilo que almejamos. Por mais que místicos importantes nos ajudem a buscar metas de contemplação ou pistas para quebrar as "formações internas" que foram se acumulando ao longo dos anos, e que é tão difícil romper. 

 

Vejo, por exemplo, o aprendizado de Lula na cadeia buscando como grande meta a vitória sobe o rancor e a raiva. Vejo isso como uma ilusão. Esses sentimentos são nossos, e fazem parte do "vapor do mal" que também nos habita, e que vem contrabalançado pela "vozinha" do bem que nos previne e ajuda nas horas de precisão.

 

Tenho vivido isso de forma delicada nesse tempo de cortes de árvores aqui no Tiguera, onde relações foram balançadas por divergências de posições. E me vi, às vezes, tomado pelo "bicho subterrâneo que me habita" e que surge, sem mais nem menos, e faz estrago também no mundo interior.

 

Mas voltando ao tema das relações, tenho sempre comigo uma sábio frase de Lya Luft, que escreveu num livro seu que gosto muito: "Mar de dentro" (2002). 

 

Não sei quantas e quantas vezes já repeti essa frase em textos e palestras. A frase diz:

 

"Há um espaço de silêncio intransponível mesmo nos mais íntimos amores".

 

Preparando agora a minha fala da próxima quarta feira sobre o belo filme "Drive my Car", procuro entender mais a fundo o texto de Murakami que serviu de base para o diretor do filme. 

 

Murakami fala das dificuldades que existem nas relações. 

 

No conto que serviu de porta para o diretor,do mesmo nome do filme,Murakami fala da dor do personagem Kafuku depois da perda de sua esposa. 

 

Apesar de terem vivido juntos por um bom tempo, havia coisas ali na relação que escapavam à sua compreensão. E dizia das questões complexas que permanecem misteriosas numa relação: questões que são também ambíguas, obstinadas e dolorosas...

 

Em conversa com um amigo que tinha sido parceiro sexual de sua esposa,sem que tivesse declarado isso,  e os dois já estavam embalados pela bebida, Kafuku dizia que não conseguia entender de verdade a sua esposa; que não entendia uma "parte importante" dela, e perdeu a oportunidade de entender, pois nunca chegou a perguntar a ela o que a movia a viver uma relação extraconjugal, apesar de ser tão feliz no relacionamentode vinte anos.

 

E, num momento de desabafo exclamou: 

 

"Agora que ela está morta, nunca vou entendê-la. Como se fosse um pequeno e pesado cofre que está no fundo do mar".

 

É gente, esses são os mistérios das relações, dos diálogos, dos encontros e desencontros entre os humanos, demasiadamente humanos.

 

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