quarta-feira, 24 de maio de 2023

A ortotanásia em questão

 A Ortotanásia em questão

 

Faustino Teixeira

UFJF/IHU

 

 

Em matéria da UOL de hoje, 24/05/2023, relata-se a passagem do livro em que Rita Lee considerou depois do diagnóstico de seu câncer a possibilidade da Eutanásia. A matéria diz:

 

“Crises de pânico após descobrir câncer. No livro, a rainha do rock conta o câncer descoberto em 2021 lembrou a morte da sua mãe, também vítima de câncer. Rita teria enfrentado o impacto entre crises de pânico. 

 

´Contei [ao chefe da área de oncologia do hospital] do trauma que ficou em mim por ter visto sofrimento da minha mãe fazendo esses dois procedimentos quando teve câncer`. 

 

Terror pela mesma situação que a sua mãe viveu anos atrás. ´Eu disse a ele [ao médico] que minha vida tinha sido maravilhosa e, que por mim tomava o 'chazinho da meia-noite' para ir desta para melhor. Que me deixassem fazer uma passagem digna, sem dor, rápida e consciente; queria estar atenta para logo recomeçar meu caminho em outra dimensão. Sou totalmente favorável à eutanásia. Morrer com dignidade é preciso.`”

 

Fiquei impressionado com a tranquilidade e a maturidade de Rita Lee diante desta hipótese ainda sem nenhuma cidadania no Brasil. É duro perceber que ela passou por momentos muito difíceis em seu tratamento, com crises tremendas de pânico, insônias e outra situações. Não tenho ainda outros dados precisos pois não Lee sua “tanatografia” que acaba de sair. Impressiono-me com sua coragem ao descrever com serenidade tudo o que passou.

 

Digo a vocês, que a cada dia que passa venho refletindo com seriedade sobre esta questão da ortotanásia, que é a forma que eu prefiro dizer quando abordo o tema da morte com dignidade. São vários os argumentos que vêm a meu favor, sobretudo no caso de pessoas mais idosas, que são forçadas a viverem situações de muito dor e solidão nos momentos derradeiros de sua vida, sobretudo diante de casos que são comprovadamente terminais. E numa sociedade onde talvez sejamos os últimos casos em que os filhos ainda cuidam dos pais nesses momentos duros de passagem.

 

Há também outro agravante, com a mudanças em planos de saúde, que acabam não cobrindo gastos pesados com o tratamento oncológico, por exemplo. De médicos que aceitam a cuidar dos pacientes durante os procedimentos clínicos com a cobertura de planos de saúde, mas que nas cirurgias fazem procedimentos sem a cobertura do plano vinculado. Além da luta dos pacientes para conseguirem cobertura para os medicamentos de altíssimo custo para o tratamento. São situações concretas que quebram financeiramente qualquer família. É claro que ainda temos o SUS que é a salvação de muito gente nesse país do descaso.

 

Acho que o tema mereceria um debate mais digno por parte dos profissionais de saúde, e de outros segmentos do saber como filósofos, teólogos, antropólogos, literatos e outros estudiosos de temas relacionados às doenças terminais, aos tratamentos paliativos em curso e a preparação da morte. 

 

No minha visão pessoal, não tenho dificuldade alguma com a ortanásia. Temos, sim, que oferecer condições mais dignas para o morrer e superar preconceitos ou teses de fundo teológico ou religioso que obstaculizam uma reflexão mais ousada e séria sobre a questão. 

 

O teólogo que mais me ajudou a refletir sobre o tema foi o suíço Hans Küng em seu brilhante livro: “Uma batalha ao longo da vida. Ideias, paixões, esperanças. A minha recordação do século (Editora Rizzoli de Milão, 2014, sendo o original de 2002). Ele aborda ao final de seu longo livro a questão do envelhecimento. 

 

Narra com pormenores o seu caso pessoal de deteriorização de sua condição de saúde. Fala das moléstias que começaram a prejudicar os seus órgãos fundamentais: as artroses nas maõs, o prejuízo na audição, os problemas na vista e sobretudo o mal de Parkinson. 

 

Ele lança na ocasião uma pergunta fundamental: “Por quanto tempo continuarei a estar bem?”. Fala também da sua vontade de morrer em casa e não internado e isolado num hospital ou casa de cura. 

 

Ele reflete com seriedade sobre o tema, contrabalançando sua posição em favor da ortanásia com os argumentos em contrário. E levanta uma questão muito séria: 

 

“Onde está escrito que o ser humano tenha que perder a responsabilidade de sua própria existência quando se depara com o fim da vida?”

 

Acerta em cheio uma questão que é decisiva: “O ser humano tem o direito de morrer quando não vê mais esperança de uma vida humana conforme os próprios critérios pessoais”.

 

Relata pormenorizadamente sobre o modo como gostaria de morrer e seus planos de adesão a uma organização suíça em favor da eutanásia. No seu caso, morreu antes, em abril de 2021, mas deixou para nós essa importante reflexão, que não pode ser deixada de lado. 

 

Na ocasião em que escreveu o livro, publicado em 2002, ele fala da experiência de uma forma bonita, digna e séria: 

 

“Entro assim no infinito da pessoa finita. Embarco numa última e decisiva estrada, totalmente diversa, não em direção ao cosmos e nem além de seus confins, mas para o núcleo da realidade”. 

 

Ele fala do retorno ao Mistério de Deus. E acrescenta: “Justamente na hora da tristeza e do adeus, que celebramos com gratidão, devemos encontrar a fé e também a força para afrontar também o futuro, o nosso futuro, sem ter muito medo da morte”.

 

Fui muito tocado pelo maravilhoso filme franco canadense, dirigido por Denys Arcand, “As invasões bárbaras”, onde esse argumento vem abordado de forma simplesmente maravilhosa. 

 

Penso que nossa morte tinha que ocorrer num momento em que pudéssemos ainda estar conscientes, afinados com a dinâmica da vida e do amor ao cosmos, e que a cerimônia de Deus, dentre de parâmetros muito bem estabelecidos pela ciência médica, podia ser precedida de uma linda festa com os amigos queridos e os parentes próximos, sem precisar entrar num túnel de escuridão, solitário e penoso, com os pesados gastos da medicina paliativa, mas destituído do germe da alegria.  Viva a Vida!

 

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