Caetano Veloso em Juiz de Fora: “Eu não vou morrer tão cedo”
Faustino Teixeira
UFJF/IHU
Caetano é sempre uma presença forte em minha vida. Desde muito jovem que ouço suas canções e reflito sobre suas letras. Meu filho, Pedro, dedicou sua tese à presença de Caetano Veloso junto à Banda Cê e ao trabalho de Caetano no CD Recanto, de Gal Costa.
A leitura de Verdade Tropical exerceu igualmente um impacto impressionante em minha vida. Reli o livro na sua terceira edição, pela Companhia das Letras (2017). Estava curioso para ver o capítulo novo que ele introduziu na nova edição: Carmen Miranda não sabia sambar.
Nessa parte introdutória do livro ele narra a motivação que o fez colocar-se à esquerda, onde se mantém até hoje. Era o grito de revolta do compositor e cantor “à horrenda desigualdade da sociedade brasileira. E isso se aguçou em tempos mais recentes, quando “o horror dos conservadores finge se dirigir à corrupção quando é nojo e medo dos pobres, pretos e desorganizados, além de impaciências com estes”.
Ainda no capítulo, narra que foi sob inspiração de Sartre que abraçou com convicção os caminhos da contracultura. Caetano acredita na potência do Brasil, como canta numa das canções do show de Juiz de Fora. Ele acredita que o país “sugere algo diferente do já experimentado e, por fim, negado”.
Diz também o seu grande apreço pela questão ambiental, que hoje urge no Brasil, e manifesta sua apreciação pelo trabalho exercido nesse campo por Eduardo Viveiros de Castro. Chama a atenção para a beleza do texto do antropólogo do Museu Nacional, e relata o impacto exercido nele pelo livro que Eduardo escreveu com sua mulher, Déborah Danowski, em torno da iminência do fim do mundo.
Sua compreensão da inter-relacionalidade é bela, e chama para si a voz de Lévi-Strauss que mostrou, como poucos, a compreensão do ser vivente como um entre outros seres da Terra. Cita em determinado momento, a letra de um samba de Jorge Mautner, que diz, a certo momento, que “o macaco na selva não é macao, baby, é meu irmão”.
Caetano fala do ser humano como algo maravilhoso, mas que é também aberração, quando expressa sua gana de violência e sua pegada dura na Terra. Ele, que pode “tanto encher a Terra de luz espiritual como destruí-la de repente ou degradá-la devagar”. Num Brasil em perpétua convulsão, Caetano diz que “há coisas demais sugerindo que não temos por que ser otimistas”.
Um dos vetores apontados por Caetano, que mostra a possibilidade de um caminho mais generoso para o país, está na presença da pluralidade, e também numa religiosidade que alimenta o povo. A religiosidade que sempre esteve presente no Tropicalismo. Caetano sublinha que gostaria muito de ser “um anunciador das novidades do Brasil”, e ele o faz com sua bela música.
Caetano nem em seu sangue a alegria e a irreverência criadora, mas guarda também suas dores, como revela no mesmo capítulo. Aponta que quando nasceu seu filho Tom, já com 55 anos de idade, ele se viu diante da morte. E isto foi se impondo a ele aos poucos, criando dificuldades particulares.
Ele diz: “Parecia que eu estava amarrado à minha vida pequena e que a grandeza requerida para se ter um filho não me seria mais possível alcançar”. A morte de amigos, trazia o tema para ele de forma irruptora, sobretudo depois do nascimento de seu filho. Sessões de análise foram importantes para trabalhar essa dor e angústia. Recorreu também a tranquilizantes para buscar a harmonia visada, sobretudo o difícil e eterno problema de sua insônia.
A nova turnê de Caetano, Meu coco, veio em bom momento, depois de toda aquele jornada bonita com seus filhos em Ofertório. A experiência anterior tinha sido com o show Abraçaço, que se seguiu ao disco de 2012. A nova empreitada era também um retorno de Caetano para dentro de si mesmo, um olhar singular para o mundo interior.
Tive o privilégio de estar nos dois shows de Juiz de Fora, no belo Cine Teatro Central, lotado nos dois dias: 12 e 13 de abril de 2023. Caetano estava acompanhado por uma banda muito especial, na qual estava presente o músico Lucas Nunes (violão e voz), que hoje faz parte da banda Bala Desejo. Ele esteve também na direção musical do show, junto com Caetano Veloso. Teve igualmente um papel singular na produção do disco de Caetano, nos tempos da pandemia, em estúdio que o compositor tem em sua casa.
Uma coisa que me surpreendeu nas duas apresentações de Juiz de Fora foi o comportamento do público, sobretudo na primeira noite: uma presença leve, tranquila, sem tantas efusões que acabam prejudicando a apreciação do show.
O figurino de Caetano no primeiro dia, que era uma sexta feira, estava incrível: ele todo de branco, magro, ágil no palco, não se furtando em vários momentos a expressar aquele samba bonito de sua terra natal, na Bahia. Falou por duas vezes de sua alegria em estar ali naquele belo teatro da cidade mineira.
Surpreendeu-me também sua voz, que está perfeita. Incrível alguém com a sua idade, aos oitenta anos, manter aquela pureza de voz, e seu ágil domínio em harmonizar graves e agudos, sabendo colocar o falsete no seu lugar e de forma perfeita.
O repertório escolhido foi muito bem pensado, mesclando músicas do novo disco, mais desconhecidas do público, como sucessos anteriores, entre os quais Sampa, Menino do Rio, Baby, Leãozinho e Cajuína e outras. Não houve homenagem explícita a Rita Lee e Gal Costa, recentemente falecidas, mas o público se encarregou de vibrar quando os nomes de Rita Lee e Mutantes apareceram na letra de Sampa. Na canção Baby, estava também presente a cantora amiga, Gal Costa.
Para mim, o momento mais emocionante do show, nos dois dias, foi a canção Araçá Azul, daquele disco misterioso e ainda não compreendido, de 1973. Não podia haver letra mais impressionante e apropriada para dizer da dor de Caetano com a perda de seus queridos, incluindo também sua mãe, Dona Canô:
“É sonho-segredo
Não é segredo
Araçá azul fica sendo
O nome mais belo do medo
Com fé em Deus
Eu não vou morrer tão cedo
Araçá azul é brinquedo”
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