Paul Knitter: as religiões e a
responsabilidade global
Dentre os autores relacionados nesta versão mais moderada
do pluralismo, pode-se citar o teólogo Paul Knitter (1939-)[1].
Assim como J. Hick, este autor considera o modelo teocêntrico como “o mais
prometedor para uma válida reinterpretação da doutrina cristã e para um diálogo
inter-religioso mais autêntico"[2].
Toda a reflexão teológica de Knitter está animada pela exigência do
diálogo inter-religioso, e é neste horizonte que deve ser compreendido o seu procedimento
teórico. Ele constata que tanto uma visão eclesiocentrada como cristocentrada
têm obstaculizado o caminho do diálogo. Com a abertura ecumênica no campo
católico, foram dados os primeiros passos de superação do eclesiocentrismo,
sobretudo com a clarificação da distinção entre Reino e Igreja. Ao lado deste
primeiro movimento eclesiológico, Knitter sublinha a importância de um novo
passo, agora na cristologia. Para ele, o modo de compreender a Cristo, mesmo
com a novidade introduzida pelo inclusivismo, "está impedindo este
diálogo"[3].
A proposta de Knitter vai na linha de uma reinterpretação
da unicidade de Jesus, tendo em vista a diversidade das cristologias do Novo
Testamento. Partindo da constatação de que a cristologia desde o seu início foi
"diversa, evolutiva e fruto de um diálogo", Knitter indaga se a
"exclusividade" e a "normatividade" presentes em alguns
textos do Novo Testamento (lTm 2,5; Jo 1,14; 14,16) constituem, de fato,
"parte do conteúdo principal daquilo que a Igreja primitiva experimentou e
acreditou"[4]. É
a natureza dessa linguagem exclusivista que incomoda este autor. Para ele,
"todos os qualificativos ‘único e só’ acrescentados aos vários títulos
cristológicos fazem mais parte do meio usado pelo Novo Testamento que de sua
mensagem central"[5].
Um dos pontos de concordância entre os especialistas do Novo Testamento
refere-se à compreensão do Reino de Deus como conteúdo central da mensagem
originária de Jesus. Partindo desta premissa, Knitter sublinha que a mensagem
central de Jesus foi teocêntrica. Jesus, como profeta escatológico, "não
toma jamais o lugar de Deus. Também nos três textos em que vem proclamado Deus
ou divino (Jo 1,1; 20,28: Hb 1,8-9) fica salvaguardada uma evidente
subordinação"[6]. Depois da morte de Jesus, como indica Knitter,
é que o proclamador se transforma em proclamado, ocorrendo assim um
deslocamento da idéia de Reino de Deus para a de Filho de Deus[7].
A mensagem teocêntrica de Jesus torna-se, com o Novo Testamento,
cristocêntrica.
Apesar da questão polêmica apontada na discussão
cristológica, o modelo proposto por Knitter não avança no sentido de uma
ruptura na compreensão da unicidade e da normatividade de Jesus. Ele discorda,
sim, de uma unicidade exclusiva ou inclusiva, mas acredita numa “unicidade
relacional de Jesus"[8].
Nesta nova compreensão, Jesus vem afirmado como único, “mas de uma
unicidade caracterizada por sua capacidade de pôr-se em relação - isto
é, de incluir e ser incluído - com outros personagens religiosos únicos"[9].
Para Knitter, a questão da normatividade de Jesus deve ser percebida como uma
"questão aberta"[10],
sem implicar um juízo pejorativo sobre a superioridade da revelação
cristã sobre as outras. Segundo Knitter, esta questão teórica aberta da
unicidade de Jesus só poderá ser de fato esclarecida na prática do diálogo[11].
Em sua posição, este autor propõe que toda pretensão do cristianismo acerca da
unicidade de Cristo seja provisoriamente suspensa no processo dialogal e, como
fruto do diálogo, "talvez Jesus de Nazaré continuará a existir (sem ser imposto)
como o símbolo unificante, como expressão universalmente plena e normativa de
tudo aquilo que Deus tem em mente para toda a história"[12].
Nos seus últimos trabalhos, a reflexão de Paul Knitter vem
ganhando um novo amadurecimento. A partir dos diversos problemas e
difificuldades levantados a propósito da teologia pluralista das religiões,
este autor tem apresentado não apenas novas clarificações de seu pensamento,
mas igualmente correções de argumentos defendidos em obras anteriores. Sua
reflexão vem hoje animada por um novo impulso ético a partir de sua convicção
da importância de uma teologia das religiões fundada no desafio da libertação e
do bem estar eco-humano[13].
No âmbito de sua nova reflexão, Paul Knitter introduz um novo modelo no seu
projeto teológico pluralista, por ele definido como “globalmente responsável e
correlacional”. Enquanto globalmente responsável, busca incluir a noção
fundamental de libertação em favor da justiça social, mas que envolve
igualmente o bem estar eco-humano. Enquanto correlacional, busca afirmar a
pluralidade das religiões e a relação entre as mesmas, garantindo porém sua
genuína diversidade[14].
Através deste novo modelo, Knitter marca uma mudança de perspectiva com
respeito às suas obras anteriores: de uma perspectiva “não normativa,
teocêntrica” para outra “multinormativa, soteriocêntrica”[15].
Com base nesta nova perspectiva, Knitter busca situar sob
novo horizonte o tema da unicidade de Cristo e do cristianismo. Para ele, a
perspectiva correlacional mantém acesa a consciência da divindade de Jesus, de
sua ressurreição, de sua presença entre os seres humanos e a consciência de seu
caráter salvífico universal. Ao contrário do que advogam certos críticos,
garante-se e salvaguarda-se a singular diferença entre Jesus e outras figuras
religiosas da história. Conforme Knitter, há sentido para os cristãos
permanecer afirmando e anunciando Jesus como “verdadeiramente divino e
salvador”, sem, porém, advogar que só ele é divino e salvador[16].
O argumento vem retomado em obra de 2009, num testemunho
pessoal do teólogo:
“A
razão pela qual se permanece cristão é, ou deveria ser, a experiência que
nenhum outro nos há tocado, falado, nos colocado em condições de descobrir quem
somos como o fez Jesus. Por certo, nós cristãos reconheceremos que existem
outros, em outras tradições religiosas, que transformaram e preencheram a vida
das pessoas segundo modalidades semelhantes (...). O que torna Jesus único para
mim não é simplesmente algo que tenho só ´para mim`, algo que somente eu e os
cristãos como eu podem acolher. Reconhecendo nele uma natureza de certo modo
universal, quero que outros vejam nele aquilo que eu vejo, quero que Jesus faça
em suas vidas a diferença que provocou na minha”[17].
A unicidade de Jesus
vem, assim, interpretada como complementar e relacional, capaz de favorecer a
relação, a abertura e o aprendizado com os outros. A novidade que apresentada
por tal perspectiva está no modo de interpretar a unicidade, de forma a
facultar e promover um diálogo verdadeiramente correlacional com outros
percursos religiosos. A cristologia pluralista, sublinha Knitter, não coloca em
questão o fato da unicidade de Jesus, mas sublinha o seu caráter relacional.
Não há obstáculos que impeçam considerar Jesus como verdadeiramente divino e
salvador, mas há dificuldade em reconhecer apenas nele a salvação. O que se
pretende é abrir espaço para perceber a presença salvífica de Deus também
alhures. Jesus é verdadeiramente salvador, mas “não somente ele”, na medida em
que o Mistério Divino transborda sua pessoa e mensagem. Nesse sentido, outras
tradições religiosas podem, com dignidade, partilhar de concepções válidas e
situar-se positivamente com respeito a este Mistério, não necessitando serem
unilateralmente “incluídas” ou preenchidas pelo cristianismo[18].
[1]
Foi missionário do Verbo Divino (SVD), tendo deixado o ministério em 1975.
Doutorou-se em teologia na Universidade de Marburg (Alemanha - 1972), sob a
orientação de Carl Heinz Ratschow. Lecionou teologia na Catholic Theological
Union (Chicago-EUA) e na Xavier
University (Ohio-EUA). Hoje atua na cátedra Paul Tillich da Union Theological
Seminary (New York). Duas de suas obras foram traduzidas ao português: Introdução às teologias das religiões.
São Paulo: Paulinas, 2008 e Jesus e os
outros nomes. Missão cristã e responsabilidade global. São Bernardo do
Campo: Nhanduti, 2010.
[2]
P.KNITTER. Nessun altro nome? Un esame critico degli attegiamenti cristiani
verso le religioni mondiali. Brescia: Queriniana, 1991, p. 126.
[3] P.KNITTER. O cristianismo como religião verdadeira e
absoluta? Concilium, v. 156, n.6,
p. 29, 1980; Id. Nessun altro nome?, p. 123.
[4]
P.KNITTER. Nessun altro nome?,
p. 150. As declarações sobre Jesus no Novo Testamento, sobretudo com
respeito à sua unicidade, como lembra Knitter em obra posterior, é claramente
uma “linguagem performativa”, ou seja, uma “linguagem de agir”. Não se trata de
uma definição filosófica ou dogmática. Os antigos cristãos estavam, na verdade,
“se declarando e convidando outros a serem discípulos de Jesus, a segui-lo no amor
a Deus e ao próximo e no trabalho em prol do que Jesus chamou de Reino de Deus.
O propósito de confessar afé erar seguir, e não o inverso”: P.KNITTER. Jesus e os outros nomes, p. 91.
[5]
P.KNITTER. Nessun altro nome?, p. 150.
[9] P.KNITTER. Nessun altro nome?, p. 127. E o
autor continua, na mesma página: “Semelhante interpretação não vê Jesus como
exclusivo ou normativo, mas teocêntrico, enquanto uma manifestação (sacramento,
encarnação) universalmente relevantes da revelação e da salvação divinas”.
[11] lbidem, p. 199.
Id. A teologia católica das religiões numa encruzilhada. Concilium, v. 203, n.1, p. 112, 1986.
[13]
Como expressão deste novo momento podem ser citadas as seguintes obras:
P.KNITTER. One earth many religions. New York: Orbis Books, 1995 (tradução
italiana: Una terra molte religioni. Assisi: Cittadella Editrice, 1998);
Id. Jesus and the Other Names. Christian Mission and Global Rsponsability. New
York: Orbis Books, 1996 (com tradução brasileira).
[14]
Uma gama significativa das críticas tecidas contra a teologia pluralista por
parte de teólogos e filósofos da religião relaciona-se com a questão da
diversidade. Para estes críticos, o modelo pluralista, ao defender uma proposta
dialogal, acaba por desconhecer ou relegar o que há de único e irrevogável em
cada religião, apagando-se, transcurando-se ou violando-se o dado da diversidade
das religiões. Esta problemática foi trabalhada e desenvolvida por Knitter em
seu livro Una terra molte religioni, onde busca encontrar um equilíbrio
entre os dois elementos essenciais implicados no diálogo inter-religioso: a
consciência da diversidade e o imperativo da responsabilidade. Cf. op. cit., p.
75-102 e 136-171.
[15]
P.KNITTER. Una terra molte religioni, p. 41; Id. Jesus e os outros nomes, p. 191, n. 39.
[16]
P.KNITTER. Una terra molte religioni, p. 71.
[17]
P.KNITTER. Senza Buddha non potrei essere
cristiano. Roma: Fazi Editore, 2011, pp. 162-163.
[18]
P.KNITTER. Una terra molte religioni, pp. 69-70 e 28.
(Publicado no livro: TEIXEIRA, Faustino. Teologia e pluralismo religioso. São Bernardo do Campo:
Nhanduti, 2012, p. 118-121)
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