quarta-feira, 29 de junho de 2016

Paul Knitter: as religiões e a responsabilidade global

Paul Knitter: as religiões e a responsabilidade global

Dentre os autores relacionados nesta versão mais moderada do pluralismo, pode-se citar o teólogo Paul Knitter (1939-)[1]. Assim como J. Hick, este autor considera o modelo teocêntrico como “o mais prometedor para uma válida reinterpretação da doutrina cristã e para um diálogo inter-religioso mais autêntico"[2]. Toda a reflexão teológica de Knitter está animada pela exigência do diálogo inter-religioso, e é neste horizonte que deve ser compreendido o seu procedimento teórico. Ele constata que tanto uma visão eclesiocentrada como cristocentrada têm obstaculizado o caminho do diálogo. Com a abertura ecumênica no campo católico, foram dados os primeiros passos de superação do eclesiocentrismo, sobretudo com a clarificação da distinção entre Reino e Igreja. Ao lado deste primeiro movimento eclesiológico, Knitter sublinha a importância de um novo passo, agora na cristologia. Para ele, o modo de compreender a Cristo, mesmo com a novidade introduzida pelo inclusivismo, "está impedindo este diálogo"[3].

A proposta de Knitter vai na linha de uma reinterpretação da unicidade de Jesus, tendo em vista a diversidade das cristologias do Novo Testamento. Partindo da constatação de que a cristologia desde o seu início foi "diversa, evolutiva e fruto de um diálogo", Knitter indaga se a "exclusividade" e a "normatividade" presentes em alguns textos do Novo Testamento (lTm 2,5; Jo 1,14; 14,16) constituem, de fato, "parte do conteúdo principal daquilo que a Igreja primitiva experimentou e acreditou"[4]. É a natureza dessa linguagem exclusivista que incomoda este autor. Para ele, "todos os qualificativos ‘único e só’ acrescentados aos vários títulos cristológicos fazem mais parte do meio usado pelo Novo Testamento que de sua mensagem central"[5]. Um dos pontos de concordância entre os especialistas do Novo Testamento refere-se à compreensão do Reino de Deus como conteúdo central da mensagem originária de Jesus. Partindo desta premissa, Knitter sublinha que a mensagem central de Jesus foi teocêntrica. Jesus, como profeta escatológico, "não toma jamais o lugar de Deus. Também nos três textos em que vem proclamado Deus ou divino (Jo 1,1; 20,28: Hb 1,8-9) fica salvaguardada uma evidente subordinação"[6].  Depois da morte de Jesus, como indica Knitter, é que o proclamador se transforma em proclamado, ocorrendo assim um deslocamento da idéia de Reino de Deus para a de Filho de Deus[7]. A mensagem teocêntrica de Jesus torna-se, com o Novo Testamento, cristocêntrica.

Apesar da questão polêmica apontada na discussão cristológica, o modelo proposto por Knitter não avança no sentido de uma ruptura na compreensão da unicidade e da normatividade de Jesus. Ele discorda, sim, de uma unicidade exclusiva ou inclusiva, mas acredita numa “unicidade relacional de Jesus"[8]. Nesta nova compreensão, Jesus vem afirmado como único, “mas de uma unicidade caracterizada por sua capacidade de pôr-se em relação - isto é, de incluir e ser incluído - com outros personagens religiosos únicos"[9]. Para Knitter, a questão da normatividade de Jesus deve ser percebida como uma "questão aberta"[10], sem implicar um juízo pejorativo sobre a superioridade da revelação cristã sobre as outras. Segundo Knitter, esta questão teórica aberta da unicidade de Jesus só poderá ser de fato esclarecida na prática do diálogo[11]. Em sua posição, este autor propõe que toda pretensão do cristianismo acerca da unicidade de Cristo seja provisoriamente suspensa no processo dialogal e, como fruto do diálogo, "talvez Jesus de Nazaré continuará a existir (sem ser imposto) como o símbolo unificante, como expressão universalmente plena e normativa de tudo aquilo que Deus tem em mente para toda a história"[12].

Nos seus últimos trabalhos, a reflexão de Paul Knitter vem ganhando um novo amadurecimento. A partir dos diversos problemas e difificuldades levantados a propósito da teologia pluralista das religiões, este autor tem apresentado não apenas novas clarificações de seu pensamento, mas igualmente correções de argumentos defendidos em obras anteriores. Sua reflexão vem hoje animada por um novo impulso ético a partir de sua convicção da importância de uma teologia das religiões fundada no desafio da libertação e do bem estar eco-humano[13]. No âmbito de sua nova reflexão, Paul Knitter introduz um novo modelo no seu projeto teológico pluralista, por ele definido como “globalmente responsável e correlacional”. Enquanto globalmente responsável, busca incluir a noção fundamental de libertação em favor da justiça social, mas que envolve igualmente o bem estar eco-humano. Enquanto correlacional, busca afirmar a pluralidade das religiões e a relação entre as mesmas, garantindo porém sua genuína diversidade[14]. Através deste novo modelo, Knitter marca uma mudança de perspectiva com respeito às suas obras anteriores: de uma perspectiva “não normativa, teocêntrica” para outra “multinormativa, soteriocêntrica”[15].

Com base nesta nova perspectiva, Knitter busca situar sob novo horizonte o tema da unicidade de Cristo e do cristianismo. Para ele, a perspectiva correlacional mantém acesa a consciência da divindade de Jesus, de sua ressurreição, de sua presença entre os seres humanos e a consciência de seu caráter salvífico universal. Ao contrário do que advogam certos críticos, garante-se e salvaguarda-se a singular diferença entre Jesus e outras figuras religiosas da história. Conforme Knitter, há sentido para os cristãos permanecer afirmando e anunciando Jesus como “verdadeiramente divino e salvador”, sem, porém, advogar que só ele é divino e salvador[16].

O argumento vem retomado em obra de 2009, num testemunho pessoal do teólogo:           

A razão pela qual se permanece cristão é, ou deveria ser, a experiência que nenhum outro nos há tocado, falado, nos colocado em condições de descobrir quem somos como o fez Jesus. Por certo, nós cristãos reconheceremos que existem outros, em outras tradições religiosas, que transformaram e preencheram a vida das pessoas segundo modalidades semelhantes (...). O que torna Jesus único para mim não é simplesmente algo que tenho só ´para mim`, algo que somente eu e os cristãos como eu podem acolher. Reconhecendo nele uma natureza de certo modo universal, quero que outros vejam nele aquilo que eu vejo, quero que Jesus faça em suas vidas a diferença que provocou na minha”[17].

 A unicidade de Jesus vem, assim, interpretada como complementar e relacional, capaz de favorecer a relação, a abertura e o aprendizado com os outros. A novidade que apresentada por tal perspectiva está no modo de interpretar a unicidade, de forma a facultar e promover um diálogo verdadeiramente correlacional com outros percursos religiosos. A cristologia pluralista, sublinha Knitter, não coloca em questão o fato da unicidade de Jesus, mas sublinha o seu caráter relacional. Não há obstáculos que impeçam considerar Jesus como verdadeiramente divino e salvador, mas há dificuldade em reconhecer apenas nele a salvação. O que se pretende é abrir espaço para perceber a presença salvífica de Deus também alhures. Jesus é verdadeiramente salvador, mas “não somente ele”, na medida em que o Mistério Divino transborda sua pessoa e mensagem. Nesse sentido, outras tradições religiosas podem, com dignidade, partilhar de concepções válidas e situar-se positivamente com respeito a este Mistério, não necessitando serem unilateralmente “incluídas” ou preenchidas pelo cristianismo[18].




[1] Foi missionário do Verbo Divino (SVD), tendo deixado o ministério em 1975. Doutorou-se em teologia na Universidade de Marburg (Alemanha - 1972), sob a orientação de Carl Heinz Ratschow. Lecionou teologia na Catholic Theological Union (Chicago-EUA) e  na Xavier University (Ohio-EUA). Hoje atua na cátedra Paul Tillich da Union Theological Seminary (New York). Duas de suas obras foram traduzidas ao português: Introdução às teologias das religiões. São Paulo: Paulinas, 2008 e Jesus e os outros nomes. Missão cristã e responsabilidade global. São Bernardo do Campo: Nhanduti, 2010.
[2] P.KNITTER. Nessun altro nome? Un esame critico degli attegiamenti cristiani verso le religioni mondiali. Brescia: Queriniana, 1991, p. 126.
[3] P.KNITTER. O cristianismo como religião verdadeira e absoluta? Concilium, v. 156, n.6, p. 29, 1980; Id. Nessun altro nome?, p. 123.
[4] P.KNITTER. Nessun altro nome?, p. 150. As declarações sobre Jesus no Novo Testamento, sobretudo com respeito à sua unicidade, como lembra Knitter em obra posterior, é claramente uma “linguagem performativa”, ou seja, uma “linguagem de agir”. Não se trata de uma definição filosófica ou dogmática. Os antigos cristãos estavam, na verdade, “se declarando e convidando outros a serem discípulos de Jesus, a segui-lo no amor a Deus e ao próximo e no trabalho em prol do que Jesus chamou de Reino de Deus. O propósito de confessar afé erar seguir, e não o inverso”: P.KNITTER. Jesus e os outros nomes, p.  91.
[5] P.KNITTER. Nessun altro nome?, p. 150.
[6] Ibidem, p. 132.
[7] Ibidem, pp. 131-132; 135; 145-146.
[8] Ibidem, p. 127. Ver tb Id. Jesus e os outros nomes, pp. 106-109.
[9] P.KNITTER. Nessun altro nome?, p. 127. E o autor continua, na mesma página: “Semelhante interpretação não vê Jesus como exclusivo ou normativo, mas teocêntrico, enquanto uma manifestação (sacramento, encarnação) universalmente relevantes da revelação e da salvação divinas”.
[10] lbidem, p. 196.
[11] lbidem, p. 199. Id. A teologia católica das religiões numa encruzilhada.  Concilium, v. 203, n.1, p. 112, 1986.
[12] P.KNITTER. Nessun altro nome?, p. 253.
[13] Como expressão deste novo momento podem ser citadas as seguintes obras: P.KNITTER. One earth many religions.  New York: Orbis Books, 1995 (tradução italiana: Una terra molte religioni. Assisi: Cittadella Editrice, 1998); Id. Jesus and the Other Names. Christian Mission and Global Rsponsability. New York: Orbis Books, 1996 (com tradução brasileira).
[14] Uma gama significativa das críticas tecidas contra a teologia pluralista por parte de teólogos e filósofos da religião relaciona-se com a questão da diversidade. Para estes críticos, o modelo pluralista, ao defender uma proposta dialogal, acaba por desconhecer ou relegar o que há de único e irrevogável em cada religião, apagando-se, transcurando-se ou violando-se o dado da diversidade das religiões. Esta problemática foi trabalhada e desenvolvida por Knitter em seu livro Una terra molte religioni, onde busca encontrar um equilíbrio entre os dois elementos essenciais implicados no diálogo inter-religioso: a consciência da diversidade e o imperativo da responsabilidade. Cf. op. cit., p. 75-102 e 136-171.
[15] P.KNITTER. Una terra molte religioni, p. 41; Id. Jesus e os outros nomes, p. 191, n. 39.
[16] P.KNITTER. Una terra molte religioni, p. 71.
[17] P.KNITTER. Senza Buddha non potrei essere cristiano. Roma: Fazi Editore, 2011, pp. 162-163.
[18] P.KNITTER. Una terra molte religioni, pp. 69-70 e 28.

(Publicado no livro: TEIXEIRA, Faustino. Teologia e pluralismo religioso. São Bernardo do Campo:
Nhanduti, 2012, p. 118-121)

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