A atenção e cuidado ao ritmo
sagrado da Terra
Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF
Vivemos um momento extremamente
delicado na relação com a Terra, fruto de um ritmo negativo imposto pelo ser
humano, pautado pela dominação e destruição das reservas naturais e ruptura da
biodiversidade. O humano, nesse novo tempo do Antropoceno, “deixa de ser agente
biológico, para se tornar uma força geológica, capaz de alterar a paisagem do
planeta e comprometer sua própria sobrevivência como espécie e a dos outros
seres vivos”[1].
As religiões e igrejas buscam denunciar com vigor esse rumo histórico
antropocêntrico, que configura um ritmo profundamente sombrio para o
destino do humano e da criação. Em sua
recente encíclica sobre o cuidado da casa comum, Laudato si (LS 2015), o papa Francisco não poupou críticas
contundentes a esse “antropocentrismo despótico”, que estaria em viva
contradição com a perspectiva bíblica (LS 68 e 116). Em sintonia com toda a reflexão
antropológica contemporânea, Francisco assinala que nenhuma criatura é
supérflua, que todo vivente tem um valor intrínseco, não sendo o humano o
umbigo do mundo (LS 84). Na verdade, o universo inteiro é expressão da
“linguagem do amor de Deus”, e todos os seus elementos traduzem uma “carícia de
Deus” (LS 84 e 223). Em mesma linha de sintonia, o patriarca ecumênico
Bartolomeu I enfatiza a dimensão sacramental do mundo, que se inaugura no ato
mesmo da criação. A trajetória humana pautada pela dominação da Terra firma-se
em contradição com a visão ortodoxa do mundo como “mistério sagrado”[2].
Como narram os salmos, “os céus contam a glória de Deus, e o firmamento
proclama a obra de suas mãos” (Sl 19,2).
Um dos pais do monaquismo, santo
Antônio do Egito (251-356), reconhecia o universo como o livro que revela as
obras de Deus. Uma sensibilidade que ganhou continuidade em outros monges da
tradição oriental, como Máximo o Confessor (580-662). Também para ele o
universo era um “livro sagrado”, que em sua totalidade compunha uma “liturgia
cósmica”[3].
Um dos grandes padres capadócios, Gregório de Nissa, do quarto século da Era
Comum, Falava de Deus como um “perfume difuso” na criação. O trabalho da
teologia, dizia o místico, era simplesmente o de recolher “as maravilhas que se
admiram no universo”[4]. Em tempos mais recentes, o místico Teilhard
de Chardin acolheu esse dom da Matéria em textos de grande significado:
“Banha-te na Matéria, filho do Homem. Mergulha nela, ló onde ela é mais
violenta e mais profunda! Luta em sua corrente e bebe sua vaga! Foi ela que
outrora embalou tua inconsciência – é ela que te levará até Deus”[5].
Infelizmente, o ser humano perdeu
essa dimensão de sacralidade da Terra e da Matéria, envolvido no ritmo
alucinado da aceleração dominadora. O que se requer agora é uma mudança radical
de perspectiva com base numa “cultura do cuidado” (LS 231). Há que trabalhar,
intensivamente, em favor de uma nova percepção do mundo e da forma como nele
habitamos; há que mudar também a forma de compreensão do ambiente, o mundo no
qual vivemos e não apenas observamos. Na verdade, “habitamos o nosso meio
ambiente: somos parte dele”. Ainda mais, “somos terra”, constituídos “pelos
elementos do planeta” (LS 1)[6].
Estamos diante do desafio de “superar a divisão arraigada entre os ´dois
mundos` da natureza e da sociedade, e de reinserir o ser humano e o devir no
interior da continuidade do mundo da vida”[7]. A
palavra chave aqui é a retomada da consciência da interligação. Estamos, sim,
todos interligados, entrelaçados, numa teia de reciprocidade e dom. Todos os
seres criados implicam-se mutuamente, necessitando uns dos outros (LS 16, 42,
91,92 e 117). Não há esfera do vivente e do criado desvestida de valor.
Para essa nova percepção requer-se
uma espiritualidade específica, atenta aos pequenos sinais do cotidiano. Uma
espiritualidade animada pelo cuidado e delicadeza com as malhas da criação.
Para tanto, é necessário fazer silêncio, desacelerar, e isto para poder captar
com precisão as notas da criação[8]. O
trapista e místico Thomas Merton indicou o caminho preciso para essa dinâmica
espiritual, que passa pelo aprofundamento do mundo interior: “sem o espírito da
noite, sem a aragem da aurora, silêncio, passividade, repouso, a natureza do
homem não pode ser ela própria”[9].
Assim como os rios, árvores e montanhas precisam da noite para repousar, assim
também os humanos precisam do ritmo do silêncio para recuperar a dinâmica de
sua integridade. A observância do sábado, reiterada pelas Escrituras, guarda um
significado profundo, que corrobora essa importância do silêncio e da
desaceleração. Deixar-se envolver pelo ritmo da interiorização e do silêncio é
preparar radicalmente os sentidos para que se possam abrir com encanto e beleza
para os dons do ambiente e do tempo. O acesso ao Mistério não está no fuga do tempo,
mas no aprofundamento de suas entranhas, garantindo um mergulho no mundo, um
“abandonar-se” no mundo com suas belezas, enigmas e dores. Como sublinho o papa
Francisco, “a espiritualidade cristã integra o valor do repouso e da festa
(...). Na nossa atividade, somos chamados a incluir uma dimensão receptiva e
gratuita, o que é diferente da simples inatividade. Trata-se de outra maneira
de agir, que pertence à nossa essência” (LS 237).
Interessante perceber que o
aprofundamento do mundo interior, facultado pela espiritualidade, não desvia o
ser humano do tempo e da história, mas disponibiliza-o de forma ainda mais
radical para atender a seus clamores. Thomas Merton mostrou isso de forma
lúcida e clara nas suas reflexões pessoais e seu diário: quanto mais avançava
na vida eremítica e no trabalho silencioso, mais dilatava sua abertura ao mundo
e aos outros. Em obra sobre a vida contemplativa dizia, referindo-se aos
santos: “É precisamente porque os santos estavam absortos em Deus que possuíam
a capacidade de ver e apreciar as coisas criadas”[10]. É
o exemplo dos santos da igreja oriental antiga, como mostra o patriarca
ecumênico Bartolomeu I. Trilhando o caminho da purificação do coração, esses
santos sabiam que esse caminho ascético é o que possibilitava captar a ligação
essencial do humano com toda a esfera da criação. O que também percebeu com
agudeza Francisco de Assis, indicando que esta ligação com a criação não é
apenas emocional, mas “profundamente espiritual na sua motivação e no seu
conteúdo”[11].
Não pode haver um futuro digno sem
uma nova postura espiritual, pautada pelo respeito e pelo reconhecimento da
dignidade dos outros, das espécies e de toda a criação: somos “espécies de
companhia”. Há que preocupar com as gerações futuras, sublinhou com razão o
papa Francisco, exige-se, sim, “ter consciência de que é a nossa própria
dignidade que está em jogo” (LS 160).
(Publicado
em: Revista de Liturgia, Ano 43, n. 256, julho/agosto 2016, p. 15-16)
[1] Eliane BRUM. Diálogos sobre o fim do mundo. El país, 29 de setembro de 2014.
[2] BARTHOLOMÉE. Et
Dieu vit que cela était bon. Paris: Cerf, 2015, p. 26.
[3] Ibidem, p. 9-10; Id. Nostra madre terra. Magnano: Qiqajon, 2015, p. 34
[4] GREGÓRIO DE NISSA. Omelie sul cantico dei cantici. 2 ed. Roma: Città Nuova, 1996, p.
51-52 (Omelia I).
[5] Teilhard DE CHARDIN. Hino do universo. São Paulo: Paulus, 1994, p. 68.
[6] Ver também: Thich NHAT HANH. Lettera d´amore alla madre terra. Milano: Garzanti, 2016, p. 7.
[7] Tim INGOLD. Estar
vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes,
2015, p. 26 e 153.
[8] BARTHOLOMÉE. Et
Dieu vit que cela était bon, p. 11.
[9] Thomas MERTON. Reflexões
de um espectador culpado. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 158.
[10] Thomas MERTON. Novas
sementes de contemplação. 2 ed. Rio
de Janeiro: Fisus, 2001, p. 30.
[11] BARTHOMOLEOS I. Nostra
madre terra. Magnano: Qiqajon, 2015, p. 51.
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