sexta-feira, 1 de julho de 2016

A atenção e cuidado ao ritmo sagrado da Terra

A atenção e cuidado ao ritmo sagrado da Terra

Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF

            Vivemos um momento extremamente delicado na relação com a Terra, fruto de um ritmo negativo imposto pelo ser humano, pautado pela dominação e destruição das reservas naturais e ruptura da biodiversidade. O humano, nesse novo tempo do Antropoceno, “deixa de ser agente biológico, para se tornar uma força geológica, capaz de alterar a paisagem do planeta e comprometer sua própria sobrevivência como espécie e a dos outros seres vivos”[1]. As religiões e igrejas buscam denunciar com vigor esse rumo histórico antropocêntrico, que configura um ritmo profundamente sombrio para o destino  do humano e da criação. Em sua recente encíclica sobre o cuidado da casa comum, Laudato si (LS 2015), o papa Francisco não poupou críticas contundentes a esse “antropocentrismo despótico”, que estaria em viva contradição com a perspectiva bíblica (LS 68 e 116). Em sintonia com toda a reflexão antropológica contemporânea, Francisco assinala que nenhuma criatura é supérflua, que todo vivente tem um valor intrínseco, não sendo o humano o umbigo do mundo (LS 84). Na verdade, o universo inteiro é expressão da “linguagem do amor de Deus”, e todos os seus elementos traduzem uma “carícia de Deus” (LS 84 e 223). Em mesma linha de sintonia, o patriarca ecumênico Bartolomeu I enfatiza a dimensão sacramental do mundo, que se inaugura no ato mesmo da criação. A trajetória humana pautada pela dominação da Terra firma-se em contradição com a visão ortodoxa do mundo como “mistério sagrado”[2]. Como narram os salmos, “os céus contam a glória de Deus, e o firmamento proclama a obra de suas mãos” (Sl 19,2).

            Um dos pais do monaquismo, santo Antônio do Egito (251-356), reconhecia o universo como o livro que revela as obras de Deus. Uma sensibilidade que ganhou continuidade em outros monges da tradição oriental, como Máximo o Confessor (580-662). Também para ele o universo era um “livro sagrado”, que em sua totalidade compunha uma “liturgia cósmica”[3]. Um dos grandes padres capadócios, Gregório de Nissa, do quarto século da Era Comum, Falava de Deus como um “perfume difuso” na criação. O trabalho da teologia, dizia o místico, era simplesmente o de recolher “as maravilhas que se admiram no universo”[4].  Em tempos mais recentes, o místico Teilhard de Chardin acolheu esse dom da Matéria em textos de grande significado: “Banha-te na Matéria, filho do Homem. Mergulha nela, ló onde ela é mais violenta e mais profunda! Luta em sua corrente e bebe sua vaga! Foi ela que outrora embalou tua inconsciência – é ela que te levará até Deus”[5].

            Infelizmente, o ser humano perdeu essa dimensão de sacralidade da Terra e da Matéria, envolvido no ritmo alucinado da aceleração dominadora. O que se requer agora é uma mudança radical de perspectiva com base numa “cultura do cuidado” (LS 231). Há que trabalhar, intensivamente, em favor de uma nova percepção do mundo e da forma como nele habitamos; há que mudar também a forma de compreensão do ambiente, o mundo no qual vivemos e não apenas observamos. Na verdade, “habitamos o nosso meio ambiente: somos parte dele”. Ainda mais, “somos terra”, constituídos “pelos elementos do planeta” (LS 1)[6]. Estamos diante do desafio de “superar a divisão arraigada entre os ´dois mundos` da natureza e da sociedade, e de reinserir o ser humano e o devir no interior da continuidade do mundo da vida”[7]. A palavra chave aqui é a retomada da consciência da interligação. Estamos, sim, todos interligados, entrelaçados, numa teia de reciprocidade e dom. Todos os seres criados implicam-se mutuamente, necessitando uns dos outros (LS 16, 42, 91,92 e 117). Não há esfera do vivente e do criado desvestida de valor.

            Para essa nova percepção requer-se uma espiritualidade específica, atenta aos pequenos sinais do cotidiano. Uma espiritualidade animada pelo cuidado e delicadeza com as malhas da criação. Para tanto, é necessário fazer silêncio, desacelerar, e isto para poder captar com precisão as notas da criação[8]. O trapista e místico Thomas Merton indicou o caminho preciso para essa dinâmica espiritual, que passa pelo aprofundamento do mundo interior: “sem o espírito da noite, sem a aragem da aurora, silêncio, passividade, repouso, a natureza do homem não pode ser ela própria”[9]. Assim como os rios, árvores e montanhas precisam da noite para repousar, assim também os humanos precisam do ritmo do silêncio para recuperar a dinâmica de sua integridade. A observância do sábado, reiterada pelas Escrituras, guarda um significado profundo, que corrobora essa importância do silêncio e da desaceleração. Deixar-se envolver pelo ritmo da interiorização e do silêncio é preparar radicalmente os sentidos para que se possam abrir com encanto e beleza para os dons do ambiente e do tempo. O acesso ao Mistério não está no fuga do tempo, mas no aprofundamento de suas entranhas, garantindo um mergulho no mundo, um “abandonar-se” no mundo com suas belezas, enigmas e dores. Como sublinho o papa Francisco, “a espiritualidade cristã integra o valor do repouso e da festa (...). Na nossa atividade, somos chamados a incluir uma dimensão receptiva e gratuita, o que é diferente da simples inatividade. Trata-se de outra maneira de agir, que pertence à nossa essência” (LS 237).

            Interessante perceber que o aprofundamento do mundo interior, facultado pela espiritualidade, não desvia o ser humano do tempo e da história, mas disponibiliza-o de forma ainda mais radical para atender a seus clamores. Thomas Merton mostrou isso de forma lúcida e clara nas suas reflexões pessoais e seu diário: quanto mais avançava na vida eremítica e no trabalho silencioso, mais dilatava sua abertura ao mundo e aos outros. Em obra sobre a vida contemplativa dizia, referindo-se aos santos: “É precisamente porque os santos estavam absortos em Deus que possuíam a capacidade de ver e apreciar as coisas criadas”[10]. É o exemplo dos santos da igreja oriental antiga, como mostra o patriarca ecumênico Bartolomeu I. Trilhando o caminho da purificação do coração, esses santos sabiam que esse caminho ascético é o que possibilitava captar a ligação essencial do humano com toda a esfera da criação. O que também percebeu com agudeza Francisco de Assis, indicando que esta ligação com a criação não é apenas emocional, mas “profundamente espiritual na sua motivação e no seu conteúdo”[11].

            Não pode haver um futuro digno sem uma nova postura espiritual, pautada pelo respeito e pelo reconhecimento da dignidade dos outros, das espécies e de toda a criação: somos “espécies de companhia”. Há que preocupar com as gerações futuras, sublinhou com razão o papa Francisco, exige-se, sim, “ter consciência de que é a nossa própria dignidade que está em jogo” (LS 160).

(Publicado em: Revista de Liturgia, Ano 43, n. 256, julho/agosto 2016, p. 15-16)



[1] Eliane BRUM. Diálogos sobre o fim do mundo. El país, 29 de setembro de 2014.
[2] BARTHOLOMÉE. Et Dieu vit que cela était bon. Paris: Cerf, 2015, p. 26.
[3] Ibidem, p. 9-10; Id. Nostra madre terra. Magnano: Qiqajon, 2015, p. 34
[4] GREGÓRIO DE NISSA. Omelie sul cantico dei cantici. 2 ed. Roma: Città Nuova, 1996, p. 51-52 (Omelia I).
[5] Teilhard DE CHARDIN. Hino do universo. São Paulo: Paulus, 1994, p. 68.
[6] Ver também: Thich NHAT HANH. Lettera d´amore alla madre terra. Milano: Garzanti, 2016, p. 7.
[7] Tim INGOLD. Estar vivo. Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015, p. 26 e 153.
[8] BARTHOLOMÉE. Et Dieu vit que cela était bon, p. 11.
[9] Thomas MERTON. Reflexões de um espectador culpado. Petrópolis: Vozes, 1970, p. 158.
[10] Thomas MERTON. Novas sementes de contemplação. 2 ed. Rio de Janeiro: Fisus, 2001, p. 30.
[11] BARTHOMOLEOS I. Nostra madre terra. Magnano: Qiqajon, 2015, p. 51.

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