O
DESAFIO DO PLURALISMO RELIGIOSO PARA A
TEOLOGIA LATINO-AMERICANA
Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF – ISER/Assessoria
INTRODUÇÃO
O
pluralismo religioso aparece neste início de século como um dos desafios mais
fundamentais para a teologia. Trata-se de um novo paradígma que
vem convocar a teologia a retomar de forma viva a sua dimensão
hermenêutica[1]. A
consciência singular do pluralismo
religioso provoca um “novo modo de fazer teologia”, agora contextualizado numa realidade marcada pela dinâmica inter-religiosa. A
teologia das religiões passa a ser compreendida como uma “teologia hermenêutica
inter-religiosa”[2].
Na
raiz desta teologia do pluralismo religioso[3] está
a prática do diálogo inter-religioso. Trata-se de uma teologia que busca
responder e interpretar, no plano de uma elaboração teórica, a realidade
religiosa plural circundante. Mas como se sabe, não existe uma teologia
universal do pluralismo religioso, pois toda reflexão teológica implica uma
adesão de fé particular. O caminho aqui
proposto insere-se no horizonte da reflexão teológica cristã, mas sempre aberto
à perspectiva global mais ampla. Na medida em que tal reflexão vem animada
permanentemente pelo espírito dialogal, ela implica uma verdadeira simpatia e
empatia pelo universo da alteridade. O exercício de uma teologia cristã do
pluralismo religioso exige uma dinâmica de acolhida da diferença, o que
pressupõe a consciência viva da contingência e da vulnerabilidade. O grande
desafio do diálogo inter-religioso está em reconhecer sem restrição alguma o
caráter irredutível e irrevogável do outro interlocutor, com o qual se instaura
a busca de um conhecimento mútuo e de um recíproco enriquecimento.
Ao
situar-se sob o signo do pluralismo religioso, a nova reflexão teológica vem
desafiada a ultrapassar uma concepção que se restringe ao reconhecimento do
pluralismo de fato e avançar para a compreensão de um pluralismo de princípio.
Nesta última direção, a teologia passa a reconhecer e afirmar a riqueza e o
sentido que a pluralidade das religiões alcança no misterioso plano divino para
a humanidade. Seguindo esta linha de reflexão, o pluralismo religioso vem
acolhido positivamente, pois expressa “todas as riquezas da sabedoria infinita
e multiforme de Deus”[4].
Antes mesmo que os seres humanos se colocassem em busca do mistério de Deus,
este mesmo mistério já os havia abraçado em sua infinita misericórdia. A
realidade deste pluralismo religioso encontra, assim, “o seu fundamento
primário na superabundante riqueza e variedade das auto-manifestações de Deus à
humanidade. A iniciativa divina de auto-comunicação, ‘muitas vezes e de modos
diversos’, e a sua ‘recepção’ e codificação em diversas tradições estão na
origem da pluralidade das religiões”[5].
O
reconhecimento e a abertura ao pluralismo de princípio não ocorrem sem
resistências e dificuldades. Sobretudo nestes tempos de acirramento das
identidades e de radicalização etnocêntrica, inúmeros obstáculos são
contrapostos ao esforço teológico de pensar o pluralismo religioso de forma
mais rica e aberta. O dado do pluralismo provoca uma crise nas estruturas de
plausibilidade que buscam assegurar o nomos
das identidades singulares e das comunidades de sentido. Sua incidência sobre
os sistemas de crença suscita insegurança intelectual e afetiva, na medida em que
rompe os diques de proteção territorial e convoca ao alargamento das
fronteiras. O receio da relativização e da dessubstancialização dos conteúdos
religiosos aciona o desejo de mais segurança, de estabilidade e fundamentação,
provocando, assim, reações defensivas e/ou ofensivas contra o universo da
alteridade.
Ao
abordar a questão do pluralismo religioso, em obra clássica da sociologia da
religião, Peter Berger mostrou como a situação pluralista engendrou não apenas
a “era do ecumenismo”, mas também a “era das redescobertas das heranças
confessionais”[6].
Diante da condição de incerteza provocada pelo pluralismo, bem como do temor de
relativização a ele relacionado, tende-se em alguns casos a concentrar-se nas
diferenças confessionais, como forma de garantia de manutenção da identidade
ameaçada. Uma tal preocupação aparece de forma viva na declaração Dominus
Iesus, da Congregação para a Doutrina da Fé[7]. Na
lógica da defesa da identidade encaixa-se perfeitamente a distinção
estabelecida pela declaração entre fé teologal e crenças (DI 7) e a negação do
pluralismo religioso de princípio (DI 4).[8]
Em
sentido diverso, o caminho dialogal proposto pela teologia do pluralismo
religioso implica não apenas o reconhecimento da diferença genuína que marca as
diversas tradições religiosas, mas também sua riqueza, enquanto autenticamente
preciosas. Há que honrar esta alteridade em sua especificidade peculiar. E
honrar a alteridade é ser capaz de reconhecer o valor e a plausibilidade de um
pluralismo religioso de direito ou de princípio. Este desafio foi assumido de
forma viva pela teologia do pluralismo religioso e aparece agora como um
caminho enriquecedor para a ampliação de horizontes da teologia da libertação.
1. A teologia da
libertação diante do pluralismo religioso
A teologia da libertação nasce por
volta do ano de 1968 buscando uma dupla fidelidade: ao Deus da vida e ao povo
latino-americano. Nasce como uma nova maneira de fazer teologia, entendida como
uma “reflexão crítica da práxis histórica à luz da Palavra”[9]. A
atenção decisiva desta teologia volta-se para o devir histórico da humanidade,
que vem situado no horizonte salvífico. Rompe-se com a idéia de duas histórias,
uma sagrada e outra profana, que correm paralelas, e acentua-se a unidade de
uma só história cristofinalizada. Segundo a teologia da libertação, a ação
salvífica de Deus está presente em todo processo histórico que trabalha em
favor da dignificação do ser humano.
A dinâmica reflexiva da teologia da
libertação vem iluminada pela perspectiva do pobre e de sua libertação. Uma vez
que cada ser humano é o “templo vivo de Deus”, é no encontro e compromisso com
ele e seu devir histórico que se realiza o encontro com Deus[10]. Mas
decisivo é o encontro com o pobre e com o oprimido, pois estes são os privilegiados
do Reino de Deus. Conforme a visão da teologia da libertação, o crescimento do
Reino de Deus acontece mediante o processo histórico libertador, o que não
significa que este processo esgote a realidade do Reino, que é antes de tudo um
dom[11].
Como se pode verificar, a teologia da
libertação confere um lugar muito importante à história como lugar da revelação
do mistério de Deus, bem como ao pobre como destinatário privilegiado de sua
ação. Não há como negar na teologia da libertação a presença do mundo do outro[12], mas
este outro é concentrado na figura do pobre, do oprimido e das classes
exploradas. Escapa do interesse imediato da teologia da libertação, sobretudo
nas duas primeiras décadas de sua afirmação, uma abertura mais decisiva para a
questão das outras tradições religiosas. Em sua tese doutoral, realizada em
1969, o teólogo Leonardo Boff chegou a tratar o tema em um dos capítulos de seu
trabalho: a Igreja como sacramento e as religiões da terra[13]. Com
base na reflexão de H.R.Schlette, L.Boff acentua a significação salvífica das
religiões mundias como “caminhos ordinários” para Deus e reconhece a presença
da graça nas religiões concretas. Este autor reconhece as religiões como
fenômeno histórico-salvífico e sinaliza a importância do pluralismo das religiões.
Tal pluralismo não é visto como expressão de confusão ou queda, mas como sinal
“da riqueza do ser humano, das suas experiências e interpretações da realidade,
que inclui a religião enquanto resposta do ser humano à iniciativa salvadora de
Deus (...). Assim as religiões são caminhos ordinários de salvação em direção a
Deus com base na história da salvação sacramentária geral”[14]. A
reflexão de L.Boff, nesta ocasião, ainda estava marcada por certa perspectiva
eclesiocêntrica. Há um reconhecimento da sacramentalidade geral nas religiões,
mas igualmente uma sacramentalidade especial, que traduz a experiência da graça
de forma mais qualificada em Israel e no cristianismo. Para Boff, o
cristianismo traduziria “de um modo mais perfeito a glória de Deus e sua
auto-entrega aos seres humanos na forma da grandeza, da vitória e do senhorio
sobre a história da não-salvação e ao mesmo tempo na forma de rebaixamento, do
poder sofrer e morrer, como se mostrou em Jesus de Nazaré”[15].
Sob o influxo do Concílio Vaticano II
(1962-1965), a teologia da libertação acentuará a compreensão da Igreja como
sacramento e sinal. Enquanto sacramento da salvação no mundo, a Igreja é
convocada a viver em profunda fidelidade ao evangelho, sinalizando na história
os valores fundamentais do Reino de Deus e do sonho de Jesus em favor de uma
sociedade mais justa, fraterna e solidária. Ocorre na teologia da libertação
uma perspectiva de “descentramento” da Igreja, que deixa de aparecer como lugar
exclusivo de salvação. Toda a dinâmica eclesial vem compreendida na referência
fundamental ao Reino de Deus e orientada para o compromisso com o ser humano, e
em particular com o pobre. A Igreja vem, assim, situada no horizonte mais amplo
da obra salvífica[16].
Mesmo reconhecendo que tal visada abriu uma perspectiva nova de compreensão
eclesiológica, há que ressaltar a permanência de uma certa dinâmica ainda
eclesiocentrada em textos específicos de teólogos da libertação, que pode ser
compreendida enquanto experiência existencial de fé, celebrada numa dada
comunidade, mas que não pode ser universalizada como experiência objetivante.
No âmbito da atual situação de pluralismo religioso torna-se complexo manter,
por exemplo, uma terminologia que identifica a Igreja como ponto quase
culminante da densificação do Reino.[17]
Ao se fazer uma retrospectiva da
teologia da libertação nestas últimas três décadas, verifica-se que atenção
preferencial da reflexão recaiu sobre a questão do pobre e de sua libertação.
Estes foram os temas que conferiram sua especificidade e pertinência. Em nome
desta especificidade buscou-se manter fidelidade aos caminhos percorridos,
mesmo quando a reflexão teológica apontava a necessidade de abrir novos
horizontes. Com respeito à teologia da libertação,
houve não poucas resistências a enveredar por esses
novos caminhos, por violentar os temas, reduzindo-os de alguma forma à questão
dos pobres. É a impressão que dava, em um primeiro momento, a tentativa de
revitalizar a ‘opção pelos pobres’ com a problemática do negro, do índio e da
mulher. Ou, de forma mais explícita, não reconhecendo a relevância de outras
perspectivas aparentemente não libertadoras, como a da modernidade, a das
culturas ou a das religiões.[18]
Uma dificuldade particular aconteceu no
campo da relação com as religiões. Os
autores que vêm se dedicando ao tema da religião popular na teologia da
libertação, reconhecem que faltou um empenho mais decisivo nesta área de
interesse, não só com respeito à questão ecumênica, mas sobretudo no âmbito do
diálogo com o mundo religioso alternativo do continente[19].
Isto não significa que o tema da religião não tenha entrado no repertório da
teologia da libertação, mas a reflexão feita sobre o mesmo buscava sempre
salientar o seu traço de ambivalência. De forma explícita ou mais matizada buscava-se,
em geral, contrastar a religiosidade popular e a fé libertadora. Exemplos
encontram-se presentes de forma muito evidente nos pioneiros da teologia da
libertação.[20] Uma
tendência similar ocorre com a preocupação de resgatar o traço libertador da
religiosidade popular e o exercício de “purificá-la” de seus elementos
“alienadores” e “opressores”.[21]
Trata-se de uma perspectiva que teve incidência direta em documentos do
episcopado latino-americano e outros de Igrejas locais. No Documento de Puebla,
os bispos latino-americanos sublinham:
Por falta de atenção dos agentes de pastoral e por
outros fatores complexos, a religião do povo mostra em certos casos sinais de
desgaste e deformação: aparecem substitutos aberrantes e sincretismos
regressivos[22]
A posição
prevalente neste campo, fundamentada na reflexão teológica do período,
acentuava sempre a necessidade da acolhida dos elementos libertadores da
religiosidade popular. Uma posição que se mantinha ainda refém de uma
perspectiva de abertura limitada ao horizone da alteridade religiosa. Esta
questão talvez merecesse um tratamento teológico mais aprofundado. As
dificuldades da teologia com a religião são antigas, mas pode-se apontar um
momento importante de balizamente desta questão, a partir do influxo do teólogo
Karl Barth, que estabeleceu de forma decisiva a oposição entre religião e
revelação. Por intermédio de Jean Daniélou esta oposição penetrou no domínio
católico romano, dando início ao que se convencionar chamar de teologia do
acabamento. Talvez possa se apontar na dificuldade presente em certos autores
da teologia da libertação de perceber a positividade das religiões, uma certa
herança desta reflexão que fez e faz ainda escola. Quando a declaração Dominus
Iesus estabelece firmemente a distinção entre fé teologal e crença está
manifestando esta herança e confessando sua dificuldade de reconhecer o valor
de revelação nas outras experiências religiosas. Mas também teólogos da
libertação manifestam dificuldade semelhante ao manter a distinção entre experiência
de fé (teologia) e a experiência do sagrado (religião). Enquanto a primeira
experiência indicaria o caminho de Deus aos homens, a segunda expressaria o
caminho dos homens a Deus.[23] Como
se pode perceber, o desafio de como viver a eclesialidade numa América Latina
pluri-religiosa permanece como uma tarefa em aberto.
Foi sobretudo a
partir da década de 90 que a teologia da libertação buscou responder de forma
mais amadurecida ao desafio da acolhida da diversidade. A primeira incidência
dessa temática ocorreu a partir dos autores que trabalhavam com a questão
indígena e com o tema da inculturação. Nomes importantes como Diego
Irarrazaval, Paulo Suess, Xavier Albó, Bartolomeu Meliá, entre outros, foram
pioneiros na afirmação da singularidade do índio como outro, da especificidade
de sua experiência de Deus e da peculiaridade exigida para o tratamento desta
questão na teologia da libertação. A nova reflexão ajudou a ampliar a visão da
teologia da libertação. Abre-se, então, espaço para a percepção da especificidade
étnica, que não pode ser reduzida à questão da classe social, ou seja, a
perceção de outros planos da opressão social. Em sintonia com a reflexão sobre
a questão indígena, outros teólogos introduziram na reflexão teológica
latino-americana a problemática da inculturação. Na mesma trilha aberta pelos
teólogos que trabalhavam tais questões, pode ser igualmente mencionado o aporte
trazido pelos teólogos e pastoralistas que desenvolveram a problemática da
teologia das religiões afro no Brasil.[24] O
impulso decisivo veio, porém, dos desenvolvimentos da espiritualidade da
libertação. Com a reflexão e, sobretudo, a prática desta espiritualidade
fortaleceu-se um clima decisivo de abertura e acolhimento da diversidade, de
sensibilização à gratuidade e de disponibilidade
ao dom do Deus sempre maior. Uma expressão deste novo momento foi a realização
do I Encontro da Assembléia do Povo de Deus, realizada em Quito (Equador), no
ano de 1992. Nesta importante Assembléia consagrou-se a idéia de
“macroecumenismo”. Um novo termo para expressar a nova consciência de um
ecumenismo caracterizado pela universalidade do povo de Deus : o povo de Deus
são muitos povos. Um novo ecumenismo que se dispõe a “abraçar com muito mais
braços e muito mais corações o Deus único e maior”[25].
Vale destacar a presença de experiências e reflexões bem abertas e arrojadas de
macroecumenismo hoje no Brasil, que ganham expressão viva entre autores como
Pedro Casaldáliga e Marcelo Barros[26].
Por
ocasião do lançamento de nova edição de sua teologia da libertação, o teólogo
Gustavo Gutiérrez escreveu um longo prefácio onde faz um balanço da teologia da
libertação. Em sua visão, nos últimos anos o itinerário desta teologia veio
enriquecido por uma ampliação de perspectiva. Sublinha em particular a importância
do diálogo estabelecido com outras teologias, que ajudou a ampliar “a
compreensão do mundo do pobre”, bem como a captar, compreender e valorizar
melhor “aspectos de nosso povo que haviam permanecido na obscuridade de uma
teoria pouco ou não correlacionada com a prática”[27].
Como um dos desafios contemporâneos fundamentais para a teologia da libertação,
Gutiérrez aponta o pluralismo religioso e o diálogo inter-religioso. Trata-se
para ele de uma “questão determinante para a fé cristã” no momento atual. Um
desafio que se apresenta como delicado e complexo, novo e exigente.[28]
2. A acolhida do
pluralismo religioso na teologia das religiões
A teologia das religiões ou do
pluralismo religioso constitui um campo novo de reflexão e seu estatuto
epistemológico vai sendo definido progressivamente. Trata-se de um fenômeno
típico da modernidade plural, que provoca a crise das “estruturas fechadas” e
convoca a “sistemas abertos de conhecimento”[29]. A
originalidade desta dinâmica teológica só começou a se esboçar neste século,
quando então a teologia cristã assume a perspectiva de uma singular relação com
as outras religiões. Sob o influxo das ciências da religião, que favoreceram
preciosos elementos para uma análise mais objetiva das religiões, a teologia
cristã pôde defrontar-se de maneira mais positiva com a realidade do pluralismo
religioso. A especificidade de uma teologia das religiões traduz-se na busca da
compreensão do significado do pluralismo religioso nos desígnios de Deus para a
humanidade.
Dentre os pioneiros que apontaram
horizontes decisivos para o início de uma reflexão mais positiva do
cristianismo com respeito às religiões podem ser destacados os nomes de Paul
Tillich (1886-1965) e Karl Rahner (1904-1984). Num ambiente ainda marcado pela
forte presença da teologia de Karl Barth, e de sua visão pessimista sobre as
religiões, o teólogo Paul Tillich, sobretudo nos anos finais de sua
vida, inaugura em âmbito protestante uma reflexão bem mais positiva sobre o
tema. No desdobramento de uma importante viagem realizada no Japão, Paul
Tillich passa a desenvolver um criativo trabalho teológico a propósito da
questão do cristianismo e o encontro das religiões mundiais. Este trabalho tem
início por volta do ano de 1961. Em texto sobre o significado da história das
religiões para o teólogo sistemático[30],
Tillich questiona a abordagem barthiana da religião, que acaba provocando a
cisão entre a religião verdadeira (vera religio) e a as falsas religiões
( religiones falsae). Para Barth, somente o cristianismo estaria
habitado por autêntica experiência de revelação. As outras religiões
expressariam unicamente uma tentativa humana e inconsistente de alcançar a
Deus. Reagindo a tal perspectiva, Tillich assinala que “as experiências
reveladoras são universalmente humanas” e que a dinâmica reveladora e salvífica
habita em todas as religiões[31]. Em
outro texto sobre o diálogo entre cristãos e budistas, Tillich retoma sua
argumentação, reforçando a idéia de que o diálogo entre as religiões só pode
acontecer realmente quando se reconhece o valor da convicção do outro e de que
esta “se funda numa experiência de revelação”[32]. No
âmbito católico, será a presença de Karl Rahner a romper os limites de uma reflexão estreita sobre a
relação do cristianismo com as outras religiões. Marcando uma diferença
substantiva com respeito à teologia do acabamento, defendida por teólogos como
Danièlou e Henri de Lubac, o teólogo Karl Rahner indica que as diversas
religiões não apresentam somente elementos de uma crença natural em Deus, mas
trazem consigo “substanciais traços sobrenaturais da graça doada por Deus ao
homem em Jesus Cristo”[33]. No
espaço aberto desta renovação teológica ocorreram as primeiras tentativas
sistemáticas de colocar a questão de uma teologia das religiões, como é o caso
do livro de Heinz Robert Schlett, As religiões como tema da teologia,
publicado em 1963.[34]
A teologia das religiões nascente
seguirá um itinerário marcado por grande diversidade de perspectivas. Tende-se,
em geral, a sintetizar estas perspectivas em três grandes linhas: exclusivismo,
inclusivismo e pluralismo, embora tal terminologia encontre resistência entre
determinados autores. Não vem aqui ao caso entrar em maiores detalhes sobre
cada uma delas, o que já foi realizado extensivamente na reflexão sobre o tema[35]. O
que importa no momento é buscar captar o movimento de abertura da reflexão
teológica ao pluralismo religioso. A provocação mais decisiva veio da
perspectiva pluralista, com John Hick e Paul Knitter, entre outros. Eles reagem
sobretudo aos teólogos inclusivistas, que mesmo reconhecendo os valores
espirituais de outras religiões, permanecem afirmando, ainda que
implicitamente, a superioridade final do cristianismo. Para os inclusivistas, a
salvação, onde quer que aconteça, é sempre salvação cristã. Sintetizando a
postura pluralista, Hick indica que sua peculiaridade encontra-se no
reconhecimento da “validade de todas religiões mundiais como contextos
autênticos de salvação/libertação, os quais não são secretamente dependentes da
cruz de Cristo”[36].
Sem desconhecer
toda a complexidade que envolve o tema, há hoje um grupo de teólogos católicos
que buscam responder positivamente o desafio da diversidade das religiões para
o cristianismo, sem romper radicalmente com o inclusivismo, mas aceitando a
interlocução fecundante do pluralismo. De forma ainda mais precisa, trata-se de
teólogos que expressam sua insatisfação diante da maneira como o tema vem sendo
refletido tanto no horizonte do inclusivismo cristocêntrico como no horizonte
do pluralismo teocêntrico. Dentre os autores mais representativos desta nova
perspectiva podem ser elencados: Jacques Dupuis, Christian Duquoc, Claude
Geffré, Edward Schillebeeckx, Andrés Torres Queiruga, Joseph A DiNoia, John B.
Cobb, David Tracy, Michael von Bruck (dentre os europeus e americanos)[37];
Michael Amaladoss, Raimundo Panikkar, Aloysius Pieris, Felix Wilfred (dentre os
indianos)[38]. Este novo modelo de reflexão teológica sobre
o pluralismo religioso ganha uma nomenclatura diversificada. Fala-se em em
“inclusivismo aberto”, “inclusivismo mutual”, “inclusivismo recíproco”, “pluralismo receptivo”, “pluralismo
inclusivo” etc. Mas em comum partilha-se, em geral, a mesma convicção sobre o
valor do pluralismo de princípio e do caráter irredutível e irrevogável das
tradições religiosas.
O desafio dialogal da acolhida de um
pluralismo de princípio aparece em
inúmeros autores da teologia das religiões. Pode-se verificar que este tema
ganhou expressão mais viva onde a tradição cristã encontra-se em situação de
minoria cognitiva, como no caso da Índia. Os teólogos asiáticos foram pioneiros
nesta reflexão e seu influxo se fez sentir de forma expressiva nos documentos
da Federação das Conferências Episcopais Asiáticas (FABC). Dentre os teólogos
indianos, Raimundo Panikkar foi um dos pioneiros nesta avaliação positiva do
pluralismo religioso. Já é de longa data sua defesa de um pluralismo de
direito. Para Panikkar, não se pode captar a riqueza da experiência humana
desconsiderando ou negando a realidade da diversidade. Para ele, “o pluralismo é
uma das experiências mais enriquecedoras que a consciência humana pode
realizar”, pois é ela que favorece a percepção da importância da acolhida da
contingência[39].
Em
âmbito do magistério católico, os primeiros movimentos de abertura nesta
direção foram realizados pelas reflexões produzidas pela FABC, nascida em 1970.
Já na Primeira Assembléia Plenária da FABC, realizada em Taiwan em abril de
1974, os bispos asiáticos sinalizaram a positividade das outras tradições
religiosas no plano divino da salvação, enquanto portadoras de um “patrimônio
de experiências religiosas”. Esta tendência de abertura será afirmada nos
documentos posteriores desta Federação e de seus organismos conexos. Destaca-se
como preocupação constante da FABC a abertura ao pluralismo religioso e sua
articulação com a história da salvação. Fala-se em “pluralismo receptivo”,
indicando a dinâmica inter-relacional e de complementaridade que vigora entre
as religiões no único plano salvífico. Para o magistério asiático, a variedade
das culturas e religiões é vista como “manifestação da infinita riqueza do Deus
de todos os homens”, que durante toda a história cobriu de atenção e cuidado a
caminhada diversificada dos povos. Retomando esta mesma sensibilidade, o breve
documento do então Secretariado para os Não-Cristãos sobre a Igreja e as outras
religiões (DM-1984) introduzirá em âmbito mais oficial este posicionamento de
grande abertura à realidade do pluralismo religioso, sinalizando a visão da
imanência universal de Deus no mundo.
3, Teologia da
Libertação e Teologia das Religiões: Peculiaridades e Convergências
Um dos importantes desafios levados a
cabo pela Associação Ecumênica dos Teólogos do Terceiro Mundo (EATWOT) foi o
estabelecimento de uma maior aproximação e diálogo entre a teologia da
libertação e a teologia das religiões. De fato, enquanto a teologia da
libertação esteve mais centrada na questão dos pobres, do sofrimento e da
injustiça, a teologia das religiões buscava responder ao desafio do pluralismo
religioso. Nos primeiros dez anos de sua existência, esta Associação teológica
esteve mais sob o influxo da teologia da libertação. Vale lembrar igualmente
que os teólogos da libertação tiveram grande influência sobre muitos teólogos
das religiões. A nova geração de teólogos indianos, que marcou o
desenvolvimento da reflexão sobre o pluralismo religioso, sofreu um grande
influxo seja do Vaticano II como da teologia da libertação. Estes teólogos
“acolheram com particular interesse os novos modelos de pensamento teológico e
de práxis pastoral da América Latina. Logo depois do Concílio, Gustavo
Gutiérrez torna-se um nome familiar e o seu texto fundamental sobre a teologia
da libertação (1971) encontra ávida acolhida”[40]. Durante a década de 80, haverá um novo
desenvolvimento na EATWOT, com uma presença mais decisiva da linha de reflexão
dos teólogos asiáticos e de sua preocupação com a questão do pluralismo
religioso, da inculturação e do diálogo entre as religiões. A teologia da
libertação saiu enriquecida com esta nova presença. Hoje percebe-se com mais clareza, a singularidade
das ênfases específicas que marcam as teologias asiática, latino-americana e
africana, mas questiona-se uma compartimentalização estanque e rígida de seus
desafios[41].
O que vem sendo constatado nestes
últimos anos é a urgente necessidade de uma maior interação entre a teologia da
libertação e a teologia das religiões. Como bem acentuou Paul Knitter,
os teólogos da libertação estão percebendo que a
libertação econômica, política e especialmente nuclear é uma tarefa grande
demais para uma única nação, cultura ou religião. Torna-se necessário
compartilhar, em âmbito intercultural e inter-religioso, a teoria e a práxis da
libertação. E os teólogos das religiões estão percebendo que um diálogo entre
as religiões que não promova o bem-estar de toda a humanidade não é diálogo
religioso.[42]
Estava
lançado um duplo desafio. De um lado, a importância da ampliação dos confins
regionais da teologia da libertação e do envolvimento do movimento de
libertação para outras religiões; de outro, a importância da teologia das
religiões manter sempre acesa a opção pelos empobrecidos e excluídos, levando a
sério a questão da pobreza e da opressão.[43] Não
há como negar a singularidade e riqueza que animam a reflexão destas duas
teologias. Constituem expressões das mais criativas e revitalizantes que
pontuam o pensamento teológico contemporâneo, e que buscam responder a uma das
questões que mais desafiam as Igrejas e religiões no tempo atual: a realidade
dolorosa de tantos pobres, a riqueza da dinâmica cultural multifacetada e a
diversidade das religiões.
Talvez a convergência mais profunda que
vincula a teologia da libertação com a teologia cristã das religiões é a mesma
paixão pelo horizonte mais amplo do Reino de Deus. Estas teologias não cansam
de afirmar sua esperança e sua luta em favor de uma dinâmica reinocêntrica. Na
perspectiva de um pluralismo de princípio, vigora a chave hermenêutica da
presença universal do Mistério em toda a criação e história. A missão eclesial
não perde o seu lugar, mas vem redefinida em chave reinocêntrica. O testemunho
permanece como essencial, mas sempre entendido na dinâmica de um “intercâmbio
de dons”. Os cristãos não têm porque omitir para os outros a sua experiência de
encontro com o Senhor, a alegria deste “mistério de amor”. Este desejo de
compartilhá-lo com os outros deve, porém, ser motivado por este mesmo amor. O
testemunho autêntico ocorre não em razão de uma obrigação ou “mandato”. Um
testemunho realizado sob tais bases provoca, antes, a crise e o descrédito da
própria Igreja. E o fundamental não é a provocação em favor da mudança de
religião, mas da mudança de perspectiva de vida: de uma vida auto-centrada para
uma vida centrada no mistério de Deus. Daí ser a conversão mais profunda a que
direciona todos para o mistério de Deus.
O caminho seguido por setores
importantes da teologia das religiões não foi o da exclusão da referência
singular a Jesus Cristo, mas o questionamento de um “cristocentrismo que não é
cristão”, e que acaba absolutizando o cristianismo[44]. A
“experiência de Jesus”, a presença viva de seu “mistério”, que provocou impacto
nos seus primeiros discípulos, continua
hoje a interpelar os seres humanos em favor de um horizonte alternativo de
afirmação de vida. O teólogo indiano, George Soares Prabhu, falecido
precocemente, trabalhou de forma admirável a importância da experiência e
significado de Jesus para os cristãos na Índia, o que vale substancialmene para
a América Latina. A preocupação concentra-se sobre o significado de Jesus, e não
sobre a “estrutura de seu ser”; sobre o “mistério de Jesus”, e não sobre os
“mecanismos” utilizados para explicar este mistério. A cristologia tradicional
acabou concentrando-se sobre tais mecanismos e “abafou” e “embotou” o mistério que dá vida. A compreensão de Jesus
que emerge como desafio para o terceiro mundo e aberta à dinâmica dialogal deve
estar animada pela dialética do Jesus da fé e o grito pela vida:
Jesus é um nome salvador pelo mistério Absoluto que
ele experienciou por nós. Mas o inexaurível
Mistério Absoluto tem, como o hinduísmo ensina, um milhar de nomes
salvadores. (...) Todos esses nomes nos falam da incrível riqueza da
experiência religiosa da humanidade, que reúne formas de religiosidade tão
abundantes como as flores de uma floresta. Querer disputar sobre a
superioridade de uma ou de outra destas não parecerá nem prático, nem sábio.
Verdadeiramente, o problema da unicidade de Cristo como discussão na teologia
hoje parecerá, para mim, como um problema acadêmico com pequeno significado.
(...) Na Ásia, ao menos, é Deus (e não Cristo)
quem sempre permanece no centro. Este é o porque, talvez, dos asiáticos
não terem produzido notáveis cristologias, mas muitas teologias: a verdadeira
‘unicidade’ de Cristo é a unicidade do caminho da solidariedade e luta (um
caminho que não é nem masculino nem feminino) que Jesus mostrou como o caminho
para a Vida. Nós ‘seguimos’ Jesus ao longo deste caminho porque nós
experienciamos o Mistério Absoluto nele e realizamos este seu caminho como
sendo verdadeiramente o caminho para a Vida. Convidamos outros para percorrê-lo
conosco e compartilhar da experiência que temos tido, sem afirmar que é o único
caminho ou o único melhor[45]
Como desafio em
aberto insere-se a exigência de uma acolhida mais decisiva da simbologia
inter-religiosa do Reino de Deus, entendido como “mistério que provoca uma
profunda relação entre todas as religiões sem ligar-se de maneira exclusiva a
nenhuma delas”[46]. Ao
acolher esta simbologia, acolhe-se igualmente a realidade e o valor da alteridade,
que faz de cada tradição um mistério de incomensurabilidade que não pode ser reduzido em seu significado mais
profundo. Este mistério da diferença está presente em toda dinâmica
inter-pessoal. Como assinala a poeta Lya Luft, há um “espaço de silêncio
intransponível mesmo nos mais íntimo amores”[47]. Um
silêncio de incomensurablilidade que preserva igualmente a singularidade de
cada tradição religiosa. A presença e o reconhecimento deste enígma não
obstruem, porém, o desafio do dinamismo dialogal. O outro é alguém único,
mistério, mas que igualmente convida ao encontro e se disponibiliza para o
aprendizado da diferença.
Esta paixão comum
pelo Reino, que convoca ao exercício da alteridade, é também convocação a uma
dinâmica radical de compaixão, que busca a afirmação da vida e a justiça para
todos. Em favor de uma “ecumene da compaixão”, o teólogo Johann B. Metz
expressou de forma feliz a razão de ser do discurso teológico: “o discurso
sobre Deus só pode ser universal, ou seja, significativo para todos os seres
humanos, se em seu núcleo, traduz um discurso sobre um Deus sensível ao
sofrimento dos outros”[48].
(Publicado em: ASETT
(Org). Pelos muitos caminhos de Deus.
Desafios do pluralismo religioso à Teologia da Libertação. Goiás: Rede, 2003,
p. 65-84)
[1]
Claude GEFFRÉ. Croire et interpréter: le tournant herméneutique de la
thélogie. Paris: Cerf, 2001, p. 9.
[2] Jacques DUPUIS. Il cristianesimo e le religioni:
dallo scontro all´incontro. Brescia: Queriniana, 2001, p. 34.
[3] Este
é o termo hoje mais preciso para tratar a questão, embora tradicionalmente
fala-se mais em teologia das religiões. Neste trabalho os dois termos serão
adotados, sendo o segundo aplicado, sobretudo, ao tratar o histórico desta
reflexão teológica.
[4]
SECRETARIADO para os Não-Cristãos. A Igreja e as outras religiões. São
Paulo: Paulinas, 2001, n. 41 (Documento Diálogo e Missão).
[5]
Jacques DUPUIS. Il cristianesimo... Op.cit., p. 469. Os teólogos
asiáticos foram pioneiros neste reconhecimento do pluralismo de princípio. Num
belo documento dos bispos da Índia, datado de 1969, afirmava-se: “As outras
religiões não são muros para se atacar ou abater. Constituem morada do Espírito
que nós ainda não visitamos; são receptáculos da Palavra de Deus que nós
optamos por ignorar”. Felix A MACHADO. Diventare un’autentica chiesa locale:
fare teologia nell’Asia del Sud. In: AAVV. Teologia delle religioni: bilanci
e prospettive. Milano: Paoline, 2001, p.169.
[6] Peter
BERGER. O dossel sagrado. São Paulo: Paulinas, 1985, p. 159.
[7]
CONGREGAÇÃO para a Doutrina da Fé. Declaração Dominus Iesus. São Paulo:
Paulinas, 2000 (Aqui siglada como DI).
[8]
Segundo a declaração Dominus Iesus, a fé teologal consiste na “aceitação
da verdade revelada por Deus Uno e trino”; já a crença nas outras religiões
traduz “a experiência religiosa ainda à procura da verdade absoluta e ainda
carecida do assentimento a Deus que se revela” (DI 7). Trata-se de uma
distinção que vem confirmar a adesão à teologia do acabamento, que busca marcar
de forma nítida a diferença substancial entre o cristianismo e as outras
religiões.
[9]
Gustavo GUTIÉRREZ. Teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 1975, p.
26.
[10]
Ibidem, p. 162.
[11]
Ibidem, p. 155. Como indica Jon Sobrino, “a teologia da libertação leva muito a
sério a dimensão essencialmente histórica do reino de Deus. Isto significa que
não deixa sua aparição para o final da história, embora só no final se dará sua
plenitude, mas insiste em sua realização atual no presente da história”: Jon
SOBRINO. Jesus, o libertador. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 193.
[12]
Gustavo GUTIÉRREZ. A força histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes,
1981, p. 69.
[13]
Leonardo BOFF. Die Kirche als Sakrament im Horizont der Welterfahrung. Paderborn:
Verlag Bonifacius-Druckerei, 1972. O
capítulo assinalado está sendo publicado na revista Numen do programa de
pós-graduação em ciência da religião da UFJF, acrescido de um post scriptum do
mesmo autor.
[14]
Leonardo BOFF. A Igreja como sacramento e as religiões da terra.
Art.cit., Mimeo, p. 10
[15]
Ibidem, p. 9. Esta perspectiva retorna, ainda que de forma um pouco mais
matizada, em outros livros do autor: “A graça que empapa o mundo, atingiu em
Jesus Cristo e em sua comunidade (a Igreja) sua expressão sacramental mais
densa”: Id. A graça libertadora no mundo. Petrópolis: Vozes, 1976, p.
148; “A Igreja constitui (...) uma elite cognitiva, com consciência mais
profunda da realidade salvadora presente no mundo e afetando a todos”: Id. Teologia
do cativeiro e da libertação. Petrópolis: Vozes, 1980, p. 209. No post scriptum ao capítulo de sua
tese doutoral, escrito em 2000, L.Boff reconhece que sua visão teológica na
ocasião era ainda “refém da visão católica”, ou seja, uma visão que “parte como
dado não discutido que a Igreja detém, sozinha, a plenitude dos meios de
salvação. Por isso ela representa a culminância não ultrapassada e
ultrapassável do desígnio de Deus”. L. Boff lança uma interrogação: em que
medida esta visão guarda algo de narcisismo eclesial, ou seja, de uma Igreja
que “só vê a si mesma nos outros”. Em realidade, conclui, “ela não reconhece a
alteridade como alteridade”.
[16]
Gustavo GUTIÉRREZ. Teologia da libertação. Op.cit., p. 210 e 213.
[17] Veja
por exemplo a reflexão de C.Boff sobre os graus de eclesialidade. C.BOFF. Comunidade
eclesial comunidade política.
Petrópolis: Vozes, 1978, p. 56. Segundo C.Boff, é necessário uma
significativa densificação do Reino para que a Igreja mereça plenamente o nome
de Igreja: uma Igreja madura e inteira, ainda que não completa e perfeita, uma
vez que se encontra sempre sob reserva escatológica. Mas esta Igreja madura,
conforme assinala, está “munida da plenitude dos meios salutares”: Ibidem, p.
56.
[18]
Carlos PALÁCIO. Trinta anos de teologia na América Latina. In: L.C.SUSIN
(Org.). O mar se abriu: trinta anos de teologia na América Latina. São
Paulo: Loyola/SOTER, 2000, p. 63.
[19]
Diego IRARRAZAVAL. Vertientes teologicas actuales. Balance desde abajo,
adentro, adelante. In: : L.C.SUSIN (Org.). O mar se abriu: trinta anos
de teologia na América Latina. São Paulo: Loyola/SOTER, 2000, p. 101. Para
Irarrazaval, há uma “dívida eclesial” da teologia com respeito à fe do povo.
Ele sublinha que “a teologia da libertação, escassamente, levou a sério a
complexa e maravilhosa trajetória religiosa de nossos povos”: Id. Religiões do
povo e sua teologia. In: L.C.SUSIN (Org.). Sarça ardente. São Paulo:
Paulinas/SOTER, 2000, p. 384. O teolólogo Jon Sobrino reconheceu que em sua
obra este tema só apareceu de forma bem fragmentada. Cf. J.SOBRINO. Teología
desde la realidad. In: L.C.SUSIN (Org.). O mar se abriu. Op.cit., p.
169.
[20]
Aloysius PIERIS. El rostro asiatico de Cristo. Salamanca: Sigueme, 1991,
p. 100.
[21] João
Batista LIBÂNIO. Teologia da libertação: roteiro didático para um estudo.
São Paulo: Loyola, 1987, p. 279.
[22] III
CONFERÊNCIA Geral do Episcopado Latino-Americano. A evangelização no
presente e no futuro da América Latina. Petrópolis: Vozes, 1979, n. 452.
[23] João
Batista LIBÂNIO. Religião e teologia da libertação. In: L.C.SUSIN (Org.). Sarça
ardente. Op.cit., p. 81-85.
[24] Para
maiores detalhes cf. Faustino TEIXEIRA. A interpelação do diálogo
inter-religioso para a teologia. In: L.C.SUSIN (Org.). Sarça ardente.
São Paulo: Paulinas/SOTER, 2000, p. 421-429.
[25]
Manifesto do I Encontro da Assembléia do Povo de Deus. In: F. TEIXEIRA. O
diálogo inter-religioso como afirmação da vida. São Paulo: Paulinas, 1997,
p. 150.
[26]
Pedro CASALDÁLIGA. O macroecumenismo e a proclamação do Deus da vida. In: F. TEIXEIRA. O diálogo inter-religioso como
afirmação da vida. Op.cit., p. 31-38; Id & José María VIGIL. Espiritualidade
da libertação. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 192s; Marcelo BARROS. O sonho
da paz. Petrópolis: Vozes, 1996. Uma das experiências em curso hoje no
Brasil das mais inovadoras neste campo está associada ao nome de Marcelo
Barros. Trata-se da experiência de macroecumenismo vivido e celebrado no
Mosteiro da Anunciação de Goiás (GO).
[27]
Gustavo GUTIÉRREZ. Teologia da libertação. São Paulo: Loyola, 2000, p.
13 e 19. Ver ainda: J.I.GONZÁLEZ FAUS. Los pobres al centro. In: L.C.SUSIN
(Org.). O mar se abriu. Op.cit., p. 197.
[28]
Gustavo GUTIÉRREZ. Situação e tarefas da teologia da libertação. In: L.C.SUSIN
(Org.). Sarça ardente. São Paulo: Paulinas/SOTER, 2000, p.55-57. Para
Gutiérrez, o trabalho teológico deverá se debruçar sobre este tema,
entendendo-o como um sinal dos tempos, buscando nele discernir, “à luz da fé, o
novo campo hermenêutico que lhe é proporcionado para pensar a fé e para um
falar de Deus que tenha algo a dizer às pessoas de nosso tempo”: ibidem, p. 52.
[29]
Peter BERGER. Rumor de anjos. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 45.
[30] Paul
TILLICH. Il futuro delle religioni. Brescia: Queriniana, 1970, p.
117-137 (a versão original é de 1966). Infelizmente, Tillich não teve o tempo
suficiente para elaborar uma reflexão mais sistemática sobre o diálogo
inter-religioso, pois morreu um pouco depois. Sua intenção era renovar toda a
sua teologia sistemática com base neste novo desafio.
[31]
Ibidem, p. 118.
[32] Paul
TILLICH. Le christianisme et les religions. Paris: Aubier, 1968, p. 133.
[33] Karl
RAHNER. Cristianesimo e religioni non cristiane. In: Saggi di antropologia
soprannaturali. Roma: Paoline, 1975, p. 545. Esta tese de Rahner
reaparecerá no decreto Ad gentes (n.9) do Concílio Vaticano II: “O que
de verdade e graça há no coração e no espírito dos homens ou nos ritos e
culturas próprias dos povos, não só não se perde, mas é purificado, elevado e
consumado para a glória de Deus”.
[34] Com
este autor se introduz na reflexão a distinção: as religiões como caminhos
legítimos e ordinários de salvação e a Igreja como caminho extraordinário de
salvação. Esta tese, que encontrará viva resistência na aula conciliar, será substancialmente invertida na exortação
apostólica Evangelii nuntiandi de Paulo VI (cf. EN n. 80).
[35] Para
uma síntese cf. Faustino TEIXEIRA. Teologia das religiões. São Paulo:
Paulinas, 1995.
[36] John
HICK. A metáfora do Deus encarnado. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 121. E
continua: “aqueles entre nós que advogam esta posição pluralista o fazem porque
ela nos parece mais realista, em termos religiosos, do que as alternativas mais
antigas. Pois vemos que dentro de cada uma das grandes tradições, naquilo que
elas têm de melhor e mais ou menos na mesma proporção, se realiza a
transformação salvífica da vida humana...”: Ibidem, p. 122.
[37] Uma
boa abordagem sobre os desdebramentos atuais da teologia das religiões pode ser
encontrada na obra de Monique AEBISCHER-CRETTOL. Vers uns oecuménisme
interreligieux: jalons pour une théologie chrétienne du pluralisme
religieux. Paris: Cerf, 2001 (sobretudo pp. 317-629).
[38] Há
que ressaltar a resistência imposta pelos teólogos asiáticos ao esquema
ocidental de caraterização da teologia das religiões em exclusivista,
inclusivista e pluralista. Para eles, este esquema é muito simplificado e
redutor. Veja por exemplo a crítica feita ao mesmo por A.Pieris: Liberación,
inculturación, diálogo religioso: un nuevo paradigma desde Asia. Navarra:
Verbo Divino, 2001, p. 259. Para os teólogos indianos, em particular, o esquema
inclusivista que tende a relacionar o valor salvífico das religiões com a fé
implícita em Jesus Cristo não ganha grande acolhida, já que não corresponde à
experiência real e vivida pelos crentes de outras tradições. Cf. George
GISPERT-SAUCH. La teologia indiana dopo il Vaticano II. Rassegna di Teologia,
v. 42, n. 1, 2001, p. 24.
[39]
Raimon PANIKKAR. Entre Dieu et le cosmos. Paris: Albin Michel, 1998, p. 166. Ver ainda:
Id. Sobre el dialogo intercultural. Salamanca: Editorial San Esteban,
1990, p. 17-94.
[40]
George GISPERT-SAUCH. La teologia indiana dopo il Vaticano II. Art.cit., p. 11.
Para um estudo mais detalhado sobre o itinerário da teologia indiana cf. Jose
KUTTIANIMATTATHIL. Practice ant Theology of Interreligiou Dialogue. A
critical Study of the Indian Christian attemps since Vatican II. Bangalore:
Kristu Jyoty Publications, 1995 (trata-se de uma tese doutoral defendida na
Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma). Influxo semelhante aconteceu entre
outros teólogos das religiões, como Paul Knitter: “A teologia da libertação
tornou-se para mim não um mero ‘novo método’, mas a ocasião para compreender o
significado da religião e do ser fiel discípulo de Jesus”: Id. Una terra
molte religioni. Assisi: Cittadella Editrice, 1998, p. 29.
[41] Como
sublinhou Gustavo Gutiérrez, “é preciso evitar a tentação de classificação, que
consiste em distribuir tais desafios aos vários continentes: o da modernidade,
ao mundo ocidental; o da pobreza, à América Latina e à África; e o do
pluralismo religioso, à Ásia”: In: L.C.SUSIN (Org.). Sarça ardente.
Op.cit., p. 77.
[42] Paul
KNITTER. A teologia católica das religiões numa encruzilhada. Concilium, v.
203, n. 1, p. 111, 1986.
[43] Como
assinalou Knitter, assim como a teologia da libertação não pode relativizar em
sem método teológico a atenção dada ao contexto cultural e religioso global, a
teologia das religiões, por sua vez, deve
estar atenta à comum e humana experiência do sofrimento como “kairos
hermenêutico para o encontro inter-religioso”: Id. Una terra molte religioni.
Op.cit., p. 109 (e também p. 33, 37 e 146); Id. Per una teologia della
liberazione delle religioni. In: J.HICK & P.KNITTER. L’unicità
cristiana: un mito? Per una teologia pluralista delle religioni. Assisi:
Cittadella Editrice, 1994, p. 314-318.
[44]
Adolphe GESCHÉ. O cristianismo e as outras religiões. In: F.TEIXEIRA. Diálogo
de pássaros. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 56-57.
[45]
George Soares PRABHU. The Jesus of Faith. India (Pune). Mimeo, p. 27-28.
[46]
M.M.QUATRA. Regno di Dio e missione della Chiesa nel contesto asiatico:
uno studio sui documenti della FABC (1970-1995). Tese de Doutorado em
Missiologia. Faculdade de Missiologia, Pontifícia Universidade Gregoriana.
Roma, 1998, p. 325.
[47] Lya
LUFT. Mar dentro. 3 ed. São Paulo: ARX, 2002, p. 30.
[48]
Johann B. METZ. La compasión. Un programa universal del cristianismo en la
época de pluralismo cultural y religioso. Revista Latinoamericana de
Teologia. v. 19, n. 55, p. 27, 2002.
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