terça-feira, 28 de junho de 2016

Fora da Misericórdia não há salvação

Fora da Misericórdia não há salvação
(Entrevista no IHU)

Há um murmúrio ensurdecedor que clama por socorro e que não é capaz de ser percebido pelos ouvidos, senão pela misericórdia. “Assumir essa dimensão evangélica é romper com o círculo vicioso do egocentrismo e deixar-se habitar, no fundo do coração, pelo grito do outro”, aponta Faustino Teixeira em entrevista por e-mail à IHU On-Line. “Mas evidente que a Misericórdia não constitui um patrimônio exclusivo do cristianismo. Trata-se de um valor que se irradia em muitas tradições religiosas. Merece destaque a presença do tema no budismo tibetano. A compaixão, nying je, vem identificada com a empatia, com a capacidade essencial de participar e partilhar o sofrimento alheio”, complementa.

No que diz respeito à Igreja Católica, o entrevistado aponta que a principal inovação no pontificado de Francisco foi buscar um olhar a partir do evangelho. “Ao enfatizar essa dinâmica evangélica, o tema da Misericórdia veio junto, pois ela está no cerne do evangelho. O grande mérito de Francisco foi saber recolher esse tema e fazer dele a chave essencial de seu pontificado”, esclarece. “A igreja deve deixar-se habitar não pelas armas da severidade, mas pela medicina da misericórdia. Com esse mote, assume e leva em frente o seu pontificado, buscando antecipar o sonho de uma igreja misericordiosa; de uma igreja que rompe com seu ensimesmamento e sai ao encontro do outro, sobretudo do mais pobre, marginalizado e excluído”, avalia.

1. Qual é a diferença entre o perdão e a misericórdia?
A chave de compreensão mais profunda para acessar o significado do perdão é a da Misericórdia. Em seu significado literal latino, a misericórdia envolve o movimento do coração (cor) em direção aos pobres (miseri). Estamos diante de um tema bíblico de grande profundidade, que veio sublinhado de forma tão rica pelo grande estudioso Jacques Dupont. Em sua obra sobre as bem-aventuranças acentuava essa predileção de Deus pelos pobres e miseráveis, independentemente de sua piedade. A misericórdia é um dom de Deus e centro nevrálgico do evangelho. Assumir essa dimensão evangélica é romper com o círculo vicioso do egocentrismo e deixar-se habitar, no fundo do coração, pelo grito do outro. Aquele que vem tocado pela nota da Misericórdia de Deus é capaz de perdoar. Num livro extremamente instigante sobre o tema do perdão (Pecar e perdoar, 2014), o historiador Leandro Karnal fala sobre a dificuldade humana de acolher esse valor. Saber perdoar é um dos desafios mais delicados que o ser humano encontra em seu caminho. As relações humanas são frágeis, e diante das crises ou ofensas, é como se um “fino vaso” se quebrasse, e por mais que as tentativas de unir as partes pudessem acontecer, tornando a ruptura quase imperceptível, um “simples toque”, de descuido ou desatenção, pode novamente revelar a fratura. Na bela passagem do evangelho de Lucas, no relato do filho pródigo (Lc 15,11-32), encontramos um pai verdadeiramente misericordioso, capaz de perdoar. O perdão vem precedido pelo arrependimento sincero. Esta parábola ilustra o que significa a “vitória do amor”, mas igualmente a delicada situação de todo ser humano, que é falho e esbanjador. Tem razão Karnal ao sublinhar que o perdão “é um gesto que reconhece a fraqueza, a falibilidade e o embaraço humano estrutural diante do Bem”. Ele sublinha que “perdoar não é esquecer nem dar livre passe para mais erros. É só o reconhecimento de que houve um erro e há a disposição para que não ocorra de novo. Perdoar é só reconhecer a humanidade do pecador, nunca é uma defesa do pecado”.

2.    Qual é a importância de ambos em nossos dias?
Falando a partir de minha perspectiva cristã, acredito que deixar-se animar pelo dom da Misericórdia é um dos imperativos mais essenciais do seguimento de Jesus. Vivemos num tempo marcado pelo “desgaste da compaixão”, um tempo de aquecimento egocêntrico e excludente. Assistimos quase indiferentes ao triste espetáculo da rejeição absurda do mundo da alteridade, como vem ocorrendo hoje na Europa com o rechaço dos imigrantes. O outro entra em cena fazendo “barulho” e atemorizando aqueles que se instalam rigidamente do âmbito das identidades cerradas. O apelo da Misericórdia e da Compaixão passam ao largo. Mas para os que buscam acionar a espiritualidade profunda, esse apelo remove novamente as entranhas, apontando para um horizonte distinto. No caso dos cristãos, como mostrou com acerto José Antonio Pagola em sua obra sobre Jesus, deixar-se tocar pelo seu projeto, é deixar-se habitar por uma dimensão mais profunda e uma verdade mais essencial. É estar diante de uma convocação irrevogável: um “chamado a viver a existência a partir de sua raiz última, que é um Deus que só quer para seus filhos e filhas uma vida mais digna e feliz”. O mesmo apelo evangélico que suscita a misericórdia e compaixão, é o apelo que nos disponibiliza a perdoar. A parábola evangélica do filho pródigo nos aponta o caminho mais nobre: da metáfora de um Deus acolhedor que abre seus braços, sem levantar questionamentos, para acolher aquele que se distanciou, mas que soube reconhecer sua falha.

3.    Em que aspectos a misericórdia não é exclusivamente cristã?
Mas evidente que a Misericórdia não constitui um patrimônio exclusivo do cristianismo. Trata-se de um valor que se irradia em muitas tradições religiosas. Merece destaque a presença do tema no budismo tibetano. A compaixão, nying je, vem identificada com a empatia, com a capacidade essencial de participar e partilhar o sofrimento alheio. Segundo Dalai Lama, a sensibilidade para com o sofrimento alheio é um traço peculiar do budismo, de uma compaixão que se amplia universalmente: “Ela atinge um ponto em que somos tão tocados pelo sofrimento alheio, mesmo em sua forma mais sutil, que se desenvolve em nós uma irresistível noção de responsabilidade por todos os semelhantes”. No budismo tibetano encontramos o ideal do bodhisattva, do buscador que tendo diante de si o nirvana, o repouso absoluto na luz, prefere permanecer atento no mundo, em contato com o sofrimento, entendendo que o repouso derradeiro só pode ser alcançado quando superado todo e qualquer resquício de dor. Na tradição judaica temos a bela ideia do Deus que se faz presença no meio do mundo: a singular imagem da shekinah, que indica a Presença de Deus no mundo, de um Deus que acolhe com carinho a ideia de partilhar as dores do mundo. Nesta tradição se fala em rahamîm, do Deus com entranhas de Misericórdia; e também de hesedh, entendida como graça misericordiosa de Deus. De forma similar, no islã, encontramos a ideia do Deus omni-misericordioso (rahman) e misericordioso (rahim), um tema recorrente em todas as suras do Corão, com exceção de uma. E justo para mostrar a proximidade de Deus do humano, do Deus que não é somente distância e mistério tremendo – tanzih -, mas também mais próximo do humano do que sua veia jugular: tashbih. Essa generosidade divina vem cantada por todos os místicos sufis, como no caso do místico afegão Rûmî:

“De toda parte chega o segredo de Deus
 eis que todos correm, desconcertados.
Dele, por quem todas as almas estão sedentas,
chega o grito do aguadeiro.

Todos bebem o leite da generosidade divina
e querem agora conhecer o seio de sua nutriz.
Apartados, anseiam por ver
O momento do encontro e da união (...)”.

4.    Como os luteranos veem a questão da misericórdia?
O tema da Misericórdia de Deus é nodal na tradição luterana. Foi mérito de Lutero ter reconhecido que a justiça de Deus não é uma justiça de punição, que castiga o pecador, mas um dom que justifica. Foi o caminho que encontrou para se libertar de uma dolorosa questão que o atormentava por longo tempo: “Como posso encontrar um Deus benigno?” Com base na reflexão bíblica e no caminho da tradição, em particular Agostinho, deu-se conta de que a justiça de Deus é uma justiça justificante, onde a pérola essencial é a Misericórdia. Ao comentar o Salmo 98, Lutero reconhece que o ser humano permanece com a marca do pecado, sendo incapaz de merecer a felicidade eterna, mas o Deus Misericordioso “se recusa a atentar nas faltas do pecador”, e oferece a justificação pela fé. Ou seja, Deus acolhe com alegria aqueles que o invocam com lágrimas sua justificação. O ser humano vem assim justificado pela bondade de Deus que perdoa gratuitamente. Como assinalou o cardeal Walter Kasper em sua obra sobre a Misericórdia (2012), “a relação entre justiça e misericórdia torna-se, assim, a questão central da teologia ocidental” a partir de então. O entendimento entre católicos e luteranos sobre esse tema só veio acontecer no século XX, e agora os dois segmentos podem juntos celebrar esse novo testemunho, de que a justiça de Deus é a sua Misericórdia.

5.    Qual é o lugar da misericórdia enquanto núcleo fundamental da essência divina e da revelação cristã?

Em sua rica obra sobre a Misericórdia, Walter Kasper assinalou que este tema veio “imperdoavelmente transcurado” na reflexão teológica cristã ao longo dos anos. Ele observa que “nos manuais dogmáticos tradicionais e mais recentes a misericórdia de Deus vem tratada só como uma das propriedades de Deus entre outras e, muitas vezes, de forma breve, após a reflexão sobre as outras propriedades de Deus, que derivam de sua essência metafísica”. Hoje se recupera a centralidade da Misericórdia no testemunho bíblico, sem a qual não se pode entender de forma alguma o significado mais profundo do Mistério de Deus. A Misericórdia “é o coração da mensagem bíblica, como superação, e não atenuação, da justiça”. Lemos no Salmo 86,15 que Deus se apresenta como “piedade e compaixão”. O mesmo ocorre no Segundo Testamento, onde vem chamado de “Pai das misericórdias e Deus de toda consolação” (2 Cor 1,3) e Deus “rico em misericórdia” ( Ef 2,4). Merecem destaque muito especial as duas parábolas que apresentam a figura do Pai Misericordioso: a parábola do bom samaritano (Lc 10,25-37) e a do filho pródigo (Lc 15,11-32). Nesta última parábola, o tema vem descrito de forma exemplar. Como assinala José Antonio Pagola em sua obra sobre Jesus, trata-se da parábola que melhor reflete a metáfora de Deus, enquanto Pai acolhedor. Ela traduz uma “verdadeira revolução”. É quando Jesus apresenta este “banquete esplêndido para todos, fala de música e danças, de homens perdidos que provocam a ternura de seu pai, de irmãos chamados a perdoar-se”. Essa sim é a verdadeira boa notícia de Deus.

6.    Qual é a novidade da abordagem da misericórdia no pontificado de Francisco?

Não se pode falar propriamente em surpresa no pontificado de Francisco. O que ele fez, desde o início, foi algo extremamente simples: retomar o ritmo do evangelho na vida da igreja. Esse foi o seu gesto novidadeiro, trazer para o centro a “eterna novidade do evangelho”, como bem expressou Walter Kasper. E ao enfatizar essa dinâmica evangélica, o tema da Misericórdia veio junto, pois ela está no cerne do evangelho. O grande mérito de Francisco foi saber recolher esse tema, e fazer dele a chave essencial de seu pontificado. Como indica Francisco na sua encíclica Evangelii gaudium, “Deus nunca se cansa de perdoar, somos nós que nos cansamos de pedir” (EG 3). O evangelho, como aponta Francisco, é esse convite permanente à alegria, ao acolhimento dessa dinâmica terna de nos reconhecermos “infinitamente amados”. Francisco segue aquela linda trilha de João XXIII, indicada no famoso discurso de abertura do Concílio Vaticano II, de que a igreja deve deixar-se habitar não pelas armas da severidade, mas pela medicina da misericórdia. Com esse mote, assume e leva em frente o seu pontificado, buscando antecipar o sonho de uma igreja misericordiosa; de uma igreja que rompe com seu ensimesmamento e sai ao encontro do outro, sobretudo do mais pobre, marginalizado e excluído. No belo diálogo com Antonio Spadoro, o papa Francisco assinala que o anúncio evangelizador deve firmar-se no que é mais essencial, na retomada evangélica, ou seja, naquilo “que mais apaixona e atrai, aquilo que faz arder o coração, como aos discípulos de Emaús”.

7.    Em que medida as ações de Francisco como “pastor” expressam a sua visão de misericórdia?

Para responder com pertinência a tal questão, devo antes assinalar um ponto essencial no pontificado de papa Francisco: a centralidade concedida ao ágape. Como apontou Francisco na entrevista com Eugenio Scalfari, o ágape “é o único modo que Jesus indicou para encontrar o caminho da salvação e das bem-aventuranças”. É com essa chave do ágape, do amor, que devemos situar a visão de misericórdia vivenciada por Francisco. E busca realizar isso com muita radicalidade. Assinala que a missão dos missionários é “viver na fronteira e ser audazes”. Sua visão de misericórdia vem ocorrendo em vários campos de tensão, onde as feridas encontram-se ainda abertas, como na avaliação dos divorciados recasados, dos casais homossexuais e outras tantas situações complexas. A resposta do pontífice tem sido sempre no campo da acolhida, buscando “considerar a pessoa” e situar com honestidade e ternura diante do mistério que envolve o ser humano. E sempre levando em conta o contexto específico. Em síntese, a sua visão pastoral é diversa da tradicional. Para Francisco, a pastoral misericordiosa é aquela que “não está obcecada pela transmissão desarticulada de uma multiplicidade de doutrinas” e imposições, mas concentrada naquilo que há de mais essencial no evangelho que é o amor.

8. O que a parábola do bom samaritano tem a dizer às pessoas em nosso tempo?

Sempre que me deparo com esta parábola, o que me vem à mente é a reflexão de Gustavo Gutiérrez no seu clássico livro sobre a teologia da libertação (1972). No capítulo que aborda o tema do encontro com Deus na história, ele fala do amor humano de Cristo, mediante o qual ele revela o amor do Pai. Como mostra Gutiérrez, “a caridade, amor de Deus aos homens, existe encarnada no amor humano”. E como exemplo, fala da parábola do bom samaritano. Indica que aquele que se acerca do ferido que está à beira do caminho não é o religioso, que age por obrigação de fé, mas aquele que vê suas entranhas revolvidas diante da dor do outro, aquele que “moveu-se de compaixão” (Lc 10,33). Também José Antonio Pagola, ao comentar essa parábola, assinala que para Jesus “a melhor metáfora de Deus é a compaixão para com um ferido”. É uma parábola desconcertante, onde tudo vem invertido: o religioso passa ao largo, e quem se debruça sobre o outro é o odiado inimigo samaritano. Em verdade, como diz Pagola, “o reino de Deus se torna presente onde as pessoas atuam com misericórdia”. A grande mensagem deixada por essa parábola para nós hoje é o desafio essencial da compaixão para com os excluídos, marginalizados e sofridos. Ao iniciar realmente o seu pontificado entre os excluídos de Lampeduza, o papa Francisco deixou uma mensagem evidente para todos: não há como viver a vida evangélica fora do exercício da compaixão e da misericórdia.

9. Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Gostaria apenas de deixar duas belas indicações de leitura, que nos ajudam a situar de forma adequada diante deste tema tão urgente mas olvidado: José Antonio Pagola. Jesus. Aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2010 (já na sétima edição); Walter Kasper. Misericordia. Concetto fondamentale del vangelo – chiave della vita Cristiana. 6 ed. Brescia: Queriniana, 2015. Este último livro deveria ganhar logo uma tradução brasileira.


(Publicado no IHU-Notícias de 26 de junho de 2016)

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