Claude Geffré – Desafios teológicos para o século XXI
Faustino Teixeira
PPCIR/UFJF
O
teólogo dominicano Claude Geffré, nascido em Niort (França) em 1926, constitui
um dos grandes nomes da teologia contemporânea. Ao termo de seu mandato na
direção da Escola Bíblica e Arqueológica de Jerusalém, Geffré apresenta neste
livro um rico e significativo depoimento sobre a sua vida e seu trabalho
teológico à filósofa Gwendoline Jarczyk. No processo de comunicação instaurado
entre estes dois pensadores, somos convidados a acompanhar a riqueza do
panorama teológico atual: seus desafios, esperanças e impasses.
A obra vem dividida em quatro partes. Na primeira parte (p. 9-56), Geffré relata
seu trabalho em Jerusalém como diretor da Escola Bíblica e Arqueológica
Francesa, após 28 anos de ensino no Instituto Católico de Paris. Traduz sua
experiência como um “exílio no coração da pátria”. Eleito por unanimidade pelo
corpo de professores da Escola Bíblica de Jerusalém em maio de 1996, Claude
Geffré só veio assumir a tarefa ao final do ano, após negociações da Ordem dos
Pregadores com a Congregação para a Educação Católica, presidida pelo cardeal
Laghi, que encontrava dificuldades para confirmar o seu nome em razão das
perplexidades que sua concepção de teologia como hermenêutica provocava em
Roma.
A experiência em Jerusalém favoreceu a Geffré o
aprofundamento de sua compreensão do enigma das religiões e do mistério da
gratuidade de Deus. Como teólogo e cristão não permaneceu indiferente diante
dos desafios que acompanham esta cidade símbolo, expressão ou caricatura do
rompimento da própria cristandade; uma cidade que revela complexidade singular
e expressa de forma viva as ambigüidades da história religiosa da humanidade.
Se, por um lado, os confrontos étnico-político-religiosos – presentes em
Jerusalém – manifestam certa vinculação do sagrado com a violência, isto não significa,
por outro, a impossibilidade de uma convivência possível e harmônica. Face ao
instinto poderoso da violência, antepõe-se a “convivialidade”, como dinamismo
profundo dos seres humanos. Estes não se definem exclusivamente pelo instinto
de sobrevivência, pautado pela lógica da auto-violência destrutiva, mas
encontram-se, sobretudo, animados pelo desejo de se comunicar, de festejar, de
rezar, adorar e contemplar o mundo.
A
virulência das intolerâncias étnico-religiosas presentes em Israel reforçou em Geffré
sua convicção profunda do “irredutível” que acompanha cada tradição religiosa.
Há um enígma das religiões que não pode em hipótese alguma ser decifrado ou
complementado em nossa história. Isto nos leva a afirmar uma singularidade das
diversas tradições religiosas e a legitimidade de suas reivindicações com
respeito ao Absoluto. Respeitar o enigma das religiões é corresponder ao
mistério da “transcendência de amor” do Deus sempre maior, que se define
essencialmente como doação. Para Geffré, a concepção trinitária de Deus revela
um princípio de diferenciação que celebra a alteridade. Não se trata de uma
transcendência de ser sob o signo de uma identidade isolada, mas de uma
transcendência de amor, sinalizada pela “vulnerabilidade” e pela “humildade”, expressões
de um profundo respeito para com a criatura livre criada à sua imagem.
A
experiência de Deus subsiste apesar dos sinais de incredulidade e indiferença
religiosa presentes em nosso tempo. Há sempre um “rumor de anjos” ou
“vestígios” deste Deus amoroso acompanhando as experiências do ser humano,
tanto nos momentos de sofrimento e angústia, como nos momentos de gratuidade. O
Deus que se manifesta quando rompemos com a trama de repetição do cotidiano,
quando nos emocionamos diante do sublime e da beleza. Nestes momentos que
ultrapassam a “ordem do descritivo” o “ausente” se revela como o que há de mais
íntimo e fundamental do ser humano.
Na segunda parte do livro (p. 59-134), Geffré aborda o seu
itinerário teológico. Inicialmente, desenvolve a dinâmica de gestação de sua
vocação dominicana, e os primeiros contatos com o convento de Saulchoir, onde
atuará por 17 anos, como estudante, mestre e regente de estudos e,
posteriormente, reitor das Faculdades. Momento importante na vida de Geffré,
ocorreu por volta de 1968, quando assume a tarefa de professor no Instituto
Católico de Paris, a convite de Danièlou. Foi o primeiro teólogo dominicano a
ensinar teologia neste célebre Instituto, até então sob a tutela dos jesuítas.
Durante um bom período respondeu pela docência de teologia fundamental. Esta
cadeira favorecia o aprofundamento de questões de fronteira que animavam o
cenário teológico do período, em particular a problemática da incredulidade e
da indiferença religiosa.
Em 1988 surge a oportunidade de ampliação de horizontes,
quando Geffré vem nomeado professor de hermenêutica teológica e teologia das
religiões, passando a lecionar no segundo ciclo. Novos caminhos se abrem no seu
itinerário intelectual. Com o tempo pôde perceber que a entrada neste novo campo
não representava ruptura mas continuidade com respeito à reflexão anterior
sobre a credibilidade do cristianismo diante da incredulidade. As duas tarefas
provocavam a reflexão hermenêutica. Assim como a questão da incredulidade
convocava a uma interpretação das grandes afirmações da fé cristã, também a
questão das outras religiões suscitava semelhante reinterpretação do
cristianismo. Sua proposta era a de elaborar uma teologia feita em situação,
sempre atenta e aberta aos desafios da cultura; uma teologia voltada para uma
nova inteligência da mensagem cristã e, para tanto, disposta a “relativizar as
expressões históricas da fé e buscar propor, não uma nova fé, mas uma nova
expressão da fé” em sintonia com o espírito e as condições do tempo atual.
A grande originalidade da reflexão de Claude Geffré
situa-se no campo da hermenêutica teológica. Tem exercido neste domínio um
papel pioneiro e inovador, apontando a necessidade na teologia de um esforço
permanente em traduzir as verdades antigas numa linguagem acessível. O
exercício criador no ato mesmo da interpretação é o grande desafio da
hermenêutica. A verdade não existe deslocada de uma linguagem, não sendo
portanto acessível senão no processo de uma interpretação infinita.
Um
olhar atento sobre o cristianismo nos faculta perceber que o dado da
interpretação acompanha toda a sua trajetória desde o início. Não temos acesso
à palavra viva de Jesus senão mediante os Evangelhos, que constituem narrações
teológicas plurais, destinadas a interpretar uma tradição oral. Estamos diante
de três acontecimentos: o acontecimento original em sua facticidade, o
acontecimento da palavra (tradição oral) e o acontecimento da escritura
(tradição escrita). Nenhum destes dois últimos acontecimentos pretendem
apresentar uma estenografia da palavra mesma de Jesus. Para Geffré, deveríamos
mesmo abandonar qualquer nostalgia de alcançar a fonte mesma desta palavra
inicial. Estamos sempre, e desde o início, diante do “risco da interpretação”,
mas de uma interpretação assistida pelo Espírito. A pluralidade de testemunhos,
que corresponde a uma pluralidade de gêneros literários, faculta à Escritura
seguro mecanismo de proteção contra a “esclerose de uma letra que poderia se
apresentar como monolítica”.
Em
nome da singularidade da hermenêutica, Geffré defende a liberdade da razão
teológica proceder de forma livre em suas interpretações da mensagem cristã.
Esta mensagem não permite uma única e exclusiva interpretação, o que seria na
prática uma perspectiva uniformizadora e monolitista, mas abre horizontes
múltiplos e diferenciados. Ao defender esta posição, Geffré não exclui o papel
de regulação social da mensagem cristã exercido pelo magistério da Igreja
católica para o conjunto do corpo dos fiéis, mas se recusa a aceitar a idéia de
uma teologia confinada à confirmação de um ensinamento oficial. Para Geffré, o
teólogo é alguém que não apenas reinterpreta o ensinamento da Igreja, mas que
“igualmente interpela o magistério em nome da fé presente no espírito moderno.”
Deve estar, simultaneamente, em comunhão com a Igreja e o pensamento
contemporâneo.
Uma
teologia que assuma de fato a tarefa hermenêutica deve sintonizar-se com os
desafios que as outras grandes civilizações e tradições religiosas apresentam
para o cristianismo. Como bem assinala Geffre, nestes vinte séculos de
cristianismo pudemos conhecer unicamente uma figura histórica do cristianismo,
colorido pela civilização mediterrânea. Com a dinâmica da globalização e da
inculturação novas possibilidades se apresentam. Estamos já assistindo o início
de uma nova “conversação”, de um “encontro criador” entre tradições religiosas
e culturais diferentes. Os resultados deste processo são imprevisíveis, mas
certamente um rosto novo do cristianismo poderá emergir e deverá ser
respeitado. À luz da nova reflexão teológica, nos damos conta que as outras
grandes culturas não constituem “lugares passivos de recepção: elas guardam
consigo um potencial propriamente revelacional com respeito à interpretação e à
nova inteligência das virtualidades do cristianismo.”
Em
seu exercício hermenêutico, o teólogo deverá estar atento a fazer um
discernimento importante entre o que constitui afirmação fundamental da fé e o
que constitui sua representação relativa ligada a determinado momento
histórico. Abre-se aqui a desafiante questão da interpretação dos dogmas e sua
recepção mais “serena”, tendo em vista o lugar de seu nascimento e sua relação
com as outras verdades de fé. Abre-se igualmente um novo campo para a
compreensão da revelação. Em perspectiva hermenêutica, a revelação envolve um
ato de interpretação. Antes de ser uma palavra vinda de Deus e expressa em
palavras humanas, vem agora percebida como uma “história interpretada pelos
profetas que explicitam o seu sentido sob a ótica de Deus”. Não se pode desconhecer
– nos lembra Geffré – que a Palavra de Deus é sempre uma palavra que acontece
em palavras humanas e através destas mesmas palavras; ela se torna palavra de
Deus para nós “a partir do momento em que vem mediatizada pela palavra
profética.”
Na
terceira parte do livro (p.
135-237), Geffré desenvolve de forma precisa a obra de seu pensamento, em
particular suas investigações sobre o tema do pluralismo religioso, o diálogo
inter-religioso e a missão da Igreja
católica. O livro alcança aqui o seu momento de maior densidade, ao sinalizar o
campo atual de concentração das pesquisas do autor, sobretudo sua proposta de
uma verdadeira teologia inter religiosa.
Inicialmente,
Geffré sublinha a importância de uma nova perspectiva de compreensão do
pluralismo religioso. Para além de um simples fenômeno histórico, ou expressão
da cegueira culpável dos homens, este pluralismo corresponderia ao desígnio
misterioso de Deus. Trata-se de um pluralismo de princípio e não apenas de
fato, como algo inevitável. Ao contrário do que poderia parecer, este
pluralismo de princípio não entra em contradição com a pretensão de unicidade
própria ao cristianismo, na medida em que a economia cristã do Verbo encarnado
insere-se como sacramento de uma economia mais vasta que envolve toda a história
da humanidade. Para Geffré, a humanidade inteira vive sob o signo do Espírito
de Deus, estando marcada pela presença latente do mistério de Cristo. Desde que
existe, a humanidade jamais esteve abandonada a si mesma, mas sempre sob a
solicitação da graça. Esta “cristianidade” constitui um fenômeno universal e
susceptível de ser partilhado por todos os seres humanos. Só nesse sentido é
que se pode falar de universalidade do cristianismo.
Em
razão desta presença latente do mistério de Cristo, desta “cristianidade” da
história, podemos reconhecer nas várias tradições religiosas potencialidades na
ordem da salvação. Enquanto religião necessariamente ligada a uma cultura, o
cristianismo não consegue totalizar todas as riquezas presentes na relação do
ser humano com o mistério da transcendência. As diversas tradições religiosas
estão animadas por virtualidades inéditas com respeito ao cristianismo. Neste
sentido, a revelação encontra-se em processo de continuidade, na medida em que
novas virtualidades revelatórias advindas da conversação inter-religiosa estão
em processo de manifestação. Como salienta Geffré, neste tempo da história
deverá sempre ocorrer uma coexistência de riquezas do religioso, das quais o
cristianismo constitui testemunho privilegiado mas não exclusivo.
Mediante
a conversação inter-religiosa processa-se um mútuo enriquecimento e uma
fecundação recíproca das tradições disponibilizadas ao diálogo. Nesta dinâmica,
a tradução atual da revelação cristã vem enriquecida pelas “experiências
reveladoras suscitadas pela práxis e pelas atitudes religiosas fundamentais que
encontramos nas outras tradições religiosas.” Estamos aqui diante de uma
reflexão de longe alcance, exigindo grande humildade para a sua verdadeira
captação. Reconhecer as virtualidades revelatórias do outro não significa negar
o dado de incondicionalidade que deve animar a nossa relação com o mistério
absoluto. Toda fé verdadeira não só implica mas exige um engajamento absoluto
com respeito a uma verdade. O diálogo inter-religioso acontece com
interlocutores animados por esta relação absoluta à verdade. Esta relação
incondicional a uma verdade singular não a torna por si absoluta.
Para
Geffré, o diálogo inter-religioso favorece uma partilha da verdade. Na dinâmica
de humildade e despojamento que o diálogo implica, somos convidados a
“ultrapassar” nossa limitada e insuficiente concepção de verdade e celebrar uma
verdade mais alta. Só no diálogo percebemos o mistério desta verdade que
ultrapassa as experiências singulares. De certa forma, a relação com a verdade
dos outros favorece uma melhor compreensão da verdade que professamos. Para
Geffré, há mais riquezas de ordem religiosa no concerto polifônico das diversas
tradições religiosas que exclusivamente no cristianismo histórico considerado
em sua singularidade.
Ao
refletir sobre a questão desta partilha da verdade, Geffré aponta para o grande
desafio da inculturação, que não pode ser simplemente entendida como uma mera
tradução da mensagem cristã na cultura do outro. Se admitimos a presença de
virtualidades crísticas inéditas presentes no humano autêntico e em suas
tradições religiosas diversificadas, devemos reconhecer que tais virtualidades
constituem fatores necessários para manifestar todas as riquezas do mistério de
Cristo. Este mistério encontra-se não apenas “escondido” mas também em processo
no patrimônio espiritual das outras tradições religiosas. A inculturação
envolve tanto um processo de interrogação profética do interlocutor com
respeito à sua verdade, mas também o despertar de novas nuances e virtualidades
que só ganham clareza no processo dialogal. Este processo, apenas iniciado,
proporcionará, certamente, a ocasião para a emergência de novas figuras
históricas do cristianismo, até então desconhecidas.
Para
Geffré, esta nova percepção dialogal não esvazia o sentido da missão da Igreja
católica. Esta missão envolve, certamente, o anúncio e proclamação de Jesus
Cristo e a realidade do seu Reino; mas verifica-se igualmente nas ações
práticas em favor do outro em nome do Evangelho. Como já dizia Chenu,
evangelizar é encarnar o Evangelho no tempo, na história. Tudo o que fazemos
para evitar que o ser humano seja desfigurado em sua dignidade de imagem e
semelhança de Deus toca o cerne do projeto evangelizador. O grande e fundamental
desafio da missão consiste em manifestar o amor de Deus para todos os seres
humanos, favorecendo a irrupção do Reino de Deus não apenas em seus corações
mas também nos caminhos da história. Nesta nobre tarefa é que a Igreja católica
realiza a sua condição de sacramento de unidade, de “parábola de uma unidade”.
Deve, portanto, dispor – juntamente com as outras tradições religiosas – de
seus fundamentais recursos espirituais para favorecer a convivialidade entre os
seres humanos e a afirmação de um espírito de paz.
No
contexto do pluralismo atual, o diálogo inter-religioso envolve não somente o
trabalho comum em favor da afirmação do humano, mas suscita um diálogo também a
nível teológico. O grande desafio para o teólogo das religiões hoje em dia,
como sublinha Geffré, consiste em tomar a sério “a infinita diversidade do
fenômeno religioso através da história e do tempo” e confrontá-la com a sua
convicção da unicidade do desígnio de Deus e da economia da salvação tal qual
se concretiza no acontecimento de Jesus Cristo. Trata-se de uma tarefa
extremamente importante, mas também delicada. Nos últimos anos temos
acompanhado momentos de tensão entre o magistério da Igreja católica e os
teólogos comprometidos nesta reflexão. Pudemos acompanhar recentemente o caso do
teólogo jesuita Jacques Dupuis, que publicou um dos livros mais importantes
sobre o tema nos últimos anos: Rumo a uma teologia cristã do pluralismo
religioso (1997). Para Geffré, trata-se de uma obra de valor exemplar: “marca
uma etapa na história da teologia cristã, um verdadeiro momento epocal, no
sentido de traduzir uma mudança de paradigma na maneira de fazer teologia”. Ao
final da terceira parte de seu livro, Geffré aborda os pontos de relação e
diferença entre a sua reflexão e a elaborada por Dupuis. Em linhas gerais,
partilha amplamente as diversas opções assumidas por Dupuis com respeito ao
tema da teologia das religiões, discordando da decisão assumida pela
Congregação para a Doutrina da Fé com respeito à obra em questão. Como bom
teólogo e hermeneuta, Geffré sinaliza a improcedência de certas atitudes
disciplinares fechadas a propósito de um campo de reflexão em processo de
continuidade: “com respeito à teologia das religiões, estamos num terreno novo,
um canteiro ainda aberto, e o mais importante é deixar o debate teológico se
instaurar antes de o fechar.”
Um
aspecto importante da reflexão de Geffré, que o distingue de Dupuis, diz
respeito à problemática de uma possível ou não complementaridade das diversas
tradições religiosas. Para Geffré, não é possível falar em complementaridade ou
síntese entre as diversas tradições religiosas no plano da história. Se
concorda, por um lado, na presença universal de uma “cristianidade” que envolve
todo ser humano, e que transborda o próprio cristianismo histórico, discorda
quanto à possibilidade de uma complementaridade harmoniosa das riquezas
múltiplas testemunhadas pelas diversas tradições religiosas. Há que resguardar
a “alteridade irredutível” presente em cada religião singular e o enigma do
pluralismo religioso. Enquanto houver história haverá também uma situação de
“constestação recíproca” salutar. Em síntese, ninguém pode antecipar a forma
como se dará, no eschaton esta
convergência e complementaridade. O cristianismo deve, neste tempo da história,
viver a permanente “exigência de ultrapassagem”, sempre aberto às inéditas
solicitações do Espírito.
Na
Quarta parte de seu trabalho (p.
239-299), Geffré desenvolve o tema da utopia criadora presente no diálogo
inter-religioso. O evento inter-religioso ocorrido na
cidade de Assis (Itália) em 1986 vem considerado como exemplar enquanto
manifestação de experiência espiritual polifônica. A partir da singularidade de
recursos espirituais diversos verificou-se uma comunhão com a Realidade Última
e a solidariedade mútua com o valor transcendente da paz.
A
Igreja católica não se encontra sozinha nesta caminhada em favor de uma unidade
polifônica, nem pode pretender ser o único agente de uma humanidade reconciliada. Para além da
ação da Igreja “é necessário reconhecer e confiar nas potencialidades mesmas da
humanidade”, nas outras esferas e mediações da vida humana. Embora portadora
qualifificada dos meios de salvação, a Igreja católica deve estar sempre aberta
para perceber e receber aspectos e traços da verdade que escapam de sua
possibilidade de compreensão e de sua “credibilidade disponível”. O anseio por
unidade que anima a Igreja católica em sua vocação ecumênica deve ser temperado
pela consciência de que a plenitude da verdade transborda a consciência
possível do cristianismo em sua atual figura histórica. Mais do que uma
realidade assegurada, a unidade é algo que está sempre adiante. A verdadeira
união das Igrejas, visada pelo ecumenismo, deve ser compreendida não como um
retorno das outras Igrejas à união já alcançada pela Igreja católica, mas
resultado de uma “unidade ainda inédita”, expressão de uma caminhada comum. Nos
espaços abertos por esta sensibilidade ecumênica é que se afirmou em nosso
tempo o desafio de um ecumenismo planetário ou inter-religioso.
Esta
vocação para a alteridade presente no projeto do diálogo inter-religioso não
significa em hipótese alguma uma ruptura ou descrédito do valor da identidade.
Como sinaliza muito bem Geffré, na medida em que aprofundamos nossa identidade
estamos melhor orientados para a experiência da alteridade, e vice-versa. A
abertura ao outro não ocorre abdicando-se das convicções profundas de uma
identidade. É necessário passar pelo “desvio” do outro para se poder encontrar
a verdadeira identidade. Assim sendo, o pluralismo religioso constitui uma
chance e um caminho para se avançar ainda mais radicalmente no sentido da
singularidade cristã. Não há possibilidade de viver a fundo o cristianismo sem
o “consentimento ao outro”, este outro que desenha em minha identidade uma dimensão
de imprevisibilidade.
Uma
teologia inter-religiosa vai bem além de uma teologia comparada das religiões.
Trata-se de um desafio fundamental de afirmação do humano autêntico onde quer
que ele se apresente, e ao mesmo tempo uma busca articulada de respeito à
identidade singular com a sensibilidade à originalidade do outro. Em síntese,
encontrar um “para além do diálogo” que possa favorecer uma transformação real
na própria inteligência do cristianismo.
Finalizando,
a apresentação deste livro-entrevista de Geffré serve apenas de breve aperitivo
e convite para o aprofundamento de sua reflexão. Há elementos preciosos ao
longo de toda a obra e intuições altamente sugestivas para o nosso atual
momento teológico. Uma obra ao mesmo tempo corajosa e profunda, que revela a
“serenidade tomista” de um de nossos melhores teólogos. Seria inclusive muito
oportuno que alguma de nossas editoras no Brasil se interessassem por sua breve
tradução.
Da obra: Profession Théologien;
quelle pensée chrétienne pour le XXI siècle, por Claude Geffré (entrevistas com
Gwendoline Jarczyk). Albin Michel, Paris, 1999, 1 vol. br. 145 x 225, 317 p.
(Resenha publicada na REB,
v. 60, n. 238, 2000, p. 443-449)
Palavras que marcam " Toda fé verdadeira não só implica mas exige, um engajamento absoluto com respeito a uma verdade"Geffre.
ResponderExcluirPalavras que marcam " Toda fé verdadeira não só implica mas exige, um engajamento absoluto com respeito a uma verdade"Geffre.
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