Teologia
Cristã e Pluralismo Religioso
Apresentação
do livro de John.Hick: Teologia cristã
e pluralismo religioso. O arco-iris das religiões.
São
Paulo: PPCIR/Attar, 2005 (214pp)
Faustino
Teixeira
PPCIR-UFJF
O filósofo e
teólogo inglês John Hick é um dos grandes pioneiros daaaaa atual reflexão sobre
a teologia e o pluralismo religioso. Autor com significativa produção na área
da filosofia da religião, também tem atuado no âmbito da reflexão teológica,
sendo um dos principais responsáveis pela hipótese da teologia pluralista das
religiões. Com renome internacional, Jonh Hick lecionou em diversas
universidades, tanto nos Estados Unidos (Cornell, Princeton e Claremont), como
na Grã-Bretanha (Cambridge e Birmingham). É um teólogo que pertence à tradição
presbiteriana, tendo sido ordenado na Igreja Presbiteriana da Inglaterra, hoje
incorporada na Igreja Unida Reformada[1].
De
sua vasta produção bibliográfica, podem ser destacada algumas obras de relevo
como: God and the Universe of Faiths (1973); Christianity and Other
Religious (1980); God Has Many Names (1982); An Interpretation of
Religion (1989); The Metaphor of God Incarnate (1993); Dialogues
in the Philosophy of Religion (2001); The Fifth Dimension (2004). No
Brasil foram traduzidas duas de suas obras: Filosofia da religião (1970,
publicada originalmente em 1963) e A Metáfora do Deus encarnado (2000,
publicada originalmente em 1993).[2]
A
obra aqui apresentada vem dar continuidade ao processo de divulgação da
reflexão de John Hick no Brasil, uma tarefa que vem sendo desenvolvida pelo programa de pós-graduação em ciência da
religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. A presente obra saiu
originalmente publicada em inglês, no ano de 1995 : A Christian Theology of
Religions: The Rainbow of Faiths. Ela nasceu motivada por uma série de conferências
ministradas na Union Theological Seminary em Nova Iorque, em 1994 (Auburn
Lectures), onde Jonh Hick buscou responder às indagações críticas feitas à
sua versão do pluralismo religioso. Na introdução do livro o autor apresenta
brevemente a controvérsia teológica em torno da teologia pluralista das
religiões e depois situa sua hipótese pluralista. A forma que encontrou para
responder às inúmeras críticas que sua concepção de pluralismo tem suscitado em
âmbito filosófico e teológico foi
original. Jonh Hick escolhe como
recurso de abordagem o diálogo com duas personagens por ele criadas, uma delas
apresentando as críticas filosóficas (Fil) e a outra as críticas teológicas (Graça). Na
interlocução com as duas personagens, está João, ou seja, o próprio Jonh Hick,
que busca articular através do diálogo a sua posição específica sobre a questão
envolvida. No diálogo com o personagem Fil, John Hick aborda tanto as críticas
pós-modernistas e de outra natureza em torno à sua hipótese pluralista, como
também a questão nodal do Real, de sua inefabilidade e os critérios de
autenticidade na resposta das grandes tradições religiosas ao Real. No diálogo
com a personagem Graça, ocorrem as questões de cunho mais teológico, como a
doutrina da encarnação e da unicidade de Deus, bem como da salvação, missão e
diálogo inter-religioso. Ao final, John Hick insere uma breve reflexão sobre o
desafio do pluralismo religioso sobre a forma tradicional de entender o
cristianismo, e a necessidade da configuração de um novo caráter ao
cristianismo em mudança.
Este
livro de John Hick vem sublinhar a importância fundamental do debate acadêmico
e do diálogo filosófico e teológico autênticos para facultar a identificação
das questões reais, das diferenças entre as posições e o favorecimento de um
campo de entendimento possível entre as partes. Na sua visão, a discussão
teológica em torno do pluralismo religioso não tem sido bem conduzida,
carecendo de qualidade. Hick reconhece que a temática apresentada no livro é
controversa, o que a seu ver não é negativo, pois há que se acostumar com a
“rica diversidade interna do pensamento cristão” e reforçar a disposição ao
exercício da escuta mútua e da cortesia humana. O autor indica que o livro
apresentado tem por objetivo alimentar uma reflexão que é de longo prazo, bem
como clarear e corrigir compreensões equivocadas ou apressadas sobre a sua
hipótese pluralista e mostrar a plausibilidade de um efetivo pluralismo
cristão.
Para melhor favorecer a compreensão da
hipótese pluralista de Hick é necessário traçar, ainda que brevemente, o quadro
das diferentes perspectivas presentes no atual debate da teologia das
religiões.[3] Uma
posição mais tradicional vem identificada com o exclusivismo, presente
tanto em âmbito católico-romano como protestante. De acordo com esta visão, não
pode haver salvação sem um conhecimento explícito de Jesus Cristo e a pertença
à igreja. Para Hick, esta tendência é hoje mais restrita, vigorando para poucos
católicos ultraconservadores e núcleos de fundamentalistas protestantes. Uma
segunda posição, bem mais partilhada, é a do inclusivismo, que se
caracteriza por incluir os outros crentes (não-cristãos) na esfera da salvação
cristã. Há nesta posição um reconhecimento das religiões como caminhos de
salvação, mas enquanto implicam a salvação de Jesus Cristo. Para Hick, o
inclusivismo permanece ainda refém do antigo imperialismo teológico,
restringindo o âmbito da salvação à salvação cristã. Mesmo quando busca ampliar
o seu significado, mediante a idéia de um Cristo celestial que opera de forma
misteriosa em todas as tradições, o inclusivismo não consegue, segundo Hick,
traduzir-se de forma mais efetiva: qual o tipo de causalidade invisível
acompanharia a morte salvífica de Jesus, tornando-a eficaz e operativa para o
exercício salvador/libertador das outras tradições religiosas? Em outros casos,
faz-se recurso à figura de um Cristo ou
Logos não histórico ou supra-histórico para favorecer a plausibilidade de um
Cristo que opera no contexto das religiões mundiais. São questões que Hick
levanta ao longo de sua reflexão no livro.
O que para ele ocorre é um alongamento da idéia de inclusivismo, no
sentido de melhor favorecer o diálogo e
a comunicação com as outras tradições religiosas. Mas o que sucede na verdade,
a seu ver, é a afirmação de uma “concepção vaga que, quando colocada sob a
pressão de aclarar-se, move na direção do pluralismo”. Uma terceira posição,
com a qual Hick identifica-se, é a do pluralismo. Esta posição surge
exatamente como uma reação contra a reinvindicação cristã de ser a religião de
superioridade última. Postula-se com o pluralismo uma mudança de paradigma,
para além do exclusivismo e do inclusivismo. O novo paradigma vem reivindicado
por Hick como condição necessária hoje em dia para responder ao novo campo de
percepção das outras tradições religiosas.
De acordo com a hipótese pluralista
proposta por Hick, o cristianismo deixa de ser o único e exclusivo meio de
salvação e as outras tradições religiosas aparecem como instâncias legítimas e
autônomas de salvação, como religiões verdadeiras e não como um cristianismo
diminuído. Trata-se para ele de uma posição mais sintonizada com a nova
consciência global e desperta para o valor do pluralismo de princípio. Para
Hick, esta posição revela-se mais realista que as anteriores, admitindo que
“dentro de cada uma das grandes tradições, naquilo que elas têm de melhor e
mais ou menos na mesma proporção, se realiza a transformação salvífica da vida
humana – transformação individual e coletiva que vai de um autocentramento
destrutivo a uma nova orientação centrada na Realidade divina”[4]. O
arco-íris vem escolhido como metáfora que consegue expressar a positiva
refração da Luz divina, ou do Real, nas diversas culturas religiosas da
humanidade. As grandes religiões são reconhecidas por Hick como meios bem
diferentes, mas igualmente válidos de experimentar e responder à Realidade
última que no cristianismo vem reconhecida como Deus.
A idéia de centralidade do real vai ser
decisiva na hipótese pluralista aventada por John Hick. Ela foi ganhando lugar
cada vez mais importante na reflexão deste autor, o que traduz um pensamento em
contínuo processo de amadurecimento e abertura.
É a Realidade última que constitui para Hick a fonte e o fundamento de
tudo, e esta Realidade é inefável, não
podendo ser apreendida ou esgotada por nenhum sistema de crença em particular.
As distintas expressões religiosas tornam-se contextos de salvação/libertação
na medida em que se sintonizam com este Real. Não há como acessar o Real em si,
nem mesmo atribuir-lhe qualidades intrínsecas. Dele não se pode dizer que é
pessoal ou impessoal, um ou muitos, consciente ou não-consciente, pleno ou
vazio. Ele é em si inacessível, fora de qualquer alcance cognitivo. Mas como a
luz do sol, ele vem parcialmente apreendido pelas diversas tradições de forma
diversificada. Para algumas tradições
será percebido como pessoal, para outras não pessoal. John Hick serve-se da
distinção kantiana entre o Real numênico (an sich) e o Real enquanto humanamente percebido. O que importa
é que, do ponto de vista humano, este Real é percebido como bom, gracioso e
benfazejo, sendo o ponto de arranque essencial da transformação humana que
rompe com a perspectiva egoica e auto-centrada para o descentramento, que é
afinidade com o Real e razão da bem-aventurança. Para Hick, as diversas
tradições religiosas buscam realizar, ainda que por caminhos diversos, este
processo de descentramento de si em favor de um novo centramento no Real. Isto
não significa, porém, a ausência de movimentos em sentido contrário que agem
nas religiões, atuando contra o seu caráter predominantemente benigno.
Respondendo a alguns críticos que
relacionaram a acolhida positiva do pluralismo religioso a um produto do
racionalismo pós-iluminista, Hick reconhece que a nova consciência global
favoreceu o desenvolvimento atual do pluralismo religioso, mas adverte que a
sensibilidade ao pluralismo religioso antecede em muito a esfera de influência
do iluminismo, estando presente, por exemplo na tradição hindu do vedanta, na
tradição budista e na mística muçulmana sufi. Hick faz menção ao importante
pensador sufi, Ibn al-Arabi (1165-1240 d.C), que muito antes da afirmação da
modernidade reconhecia a riqueza do mundo plural. Para Ibn al-Arabi, Deus em si
mesmo é independente dos mundos, e não pode estar limitado por crença alguma. É
capaz de assumir todas as formas e crenças porque se diferencia teofanicamente,
sendo incomparável a qualquer crença. As crenças são como “nós” ou “vínculos”
que delimitam a “realidade” (wujûd) absoluta e não delimitada de Deus. Para
este místico, a multiplicidade tem suas raízes em Deus mesmo, sendo que a
diversidade das crenças antes de ser algo negativo revela, ao contrário, a
infinita e variegada auto-revelação do mistério de Deus.[5]
Uma semelhante concepção do pluralismo
religioso teve acolhida positiva em determinados círculos, mas recebeu também
severas críticas de outros setores mais alinhados com o exclusivismo ou o
inclusivismo. No âmbito magisterial católico-romano são conhecidas as críticas
tecidas pelo então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal
Joseph Ratzinger – hoje, Papa Bento XVI -, para o qual Jonh Hick constitui “o
representante de maior relevo do relativismo religioso” que a seu ver tem sido
uma filosofia dominante no momento atual.[6] A
posição pluralista vem igualmente questionada pelo documento da Comissão
Teológica Internacional, que trata a questão do cristianismo e as religiões[7].
Critica-se em particular os desdobramentos que envolvem, na posição pluralista,
a utilização da concepção epistemológica kantiana que distingue o noumenon
do phenomenon. Na visão da mencionada Comissão Teológica, o noumenon
acaba sendo “dissolvido” em suas
expressões tão contrastantes. Critica-se também a radical separação entre o
Transcendente e suas representações, favorecendo uma relativização das mesmas e
impedindo qualquer reivindicação de exclusividade na questão da verdade[8].
As críticas mais contundentes que John
Hick busca responder na seção do livro dedicada ao diálogo com a filosofia, são
provenientes sobretudo de autores pós-modernistas. Para estes autores, um
questionamento mais decisivo ao pluralismo refere-se à sua possível
desconsideração das diferenças concretas entre as tradições religiosas, de sua
alteridade, levando a uma homogeneização destas tradições. Outros autores
questionam o status atribuido pela corrente pluralista às várias tradições, que
seria diferente daquele que as religiões mesmas se atribuem. Outros criticam
ainda o risco totalizador presente na posição pluralista e o caráter vago que o
Real acaba ganhando na construção pluralista, levando a um certo agnosticismo
transcendental. Em suas respostas aos diversos questionamentos, expressos na
voz de Fil, John Hick busca mostrar como a posição pluralista não desconsidera
a diferença e a alteridade de cada tradição religiosa. Cada tradição em
particular é percebida como uma totalidade diferente. Não se visa sob nenhuma
hipótese uma nova religião global, mas o reconhecimento de caminhos
diferenciados de respostas ao Real. Com respeito às outras críticas, John Hick
reconhece que a posição pluralista atribui um outro status às diversas
tradições religiosas, mas isto não significa um desrespeito à sua integridade.
Há que reconhecer que toda tradição religiosa está em processo de crescimento e
aperfeiçoamento, sendo permanentemente provocada ao diálogo e à transformação.
Hick argumenta que as respostas dadas pelas religiões ao Real sempre acontecem
dentro de seu mundo conceitual, e isto nem sempre favorece o reconhecimento do
valor de outras percepções do Real. Quando isoladas e deslocadas das
interlocuções, as crenças tendem a descansar no seu caminho salvífico
específico de acesso ao Real, e a forma que muitas vezes encontram para
acomodar as outras tradições é subordinando-as à sua lógica particular. Daí a
necessidade de buscar uma “perspectiva mais abrangente” capaz de desentranhar
novos canais de abertura e diálogo, para além da tendência absolutista que pode
acompanhar o movimento isolado das tradições em si. Com respeito ao caráter do
Real, John Hick sublinha ser inexata a idéia de que ao longo de sua reflexão o
Real foi se tornando cada vez mais vago a ponto de se tornar redundante. O que
vem afirmando é que a natureza do Real não pode ser devidamente expressa no
contexto dos sistemas conceptuais humanos, que ele é sempre maior e está mais
além. Isto não significa que não pode ser descrito pela linguagem humana, mas
que esta deve estar consciente de suas limitações. O que para ele é implausível
é a pretensão de uma única religião reivindicar a exclusividade da concepção
verdadeira do Real.
As implicações teológicas de sua reflexão
aparecem na seção do livro dedicada ao diálogo com a personagem Graça. Trata-se
de uma teóloga que apresentará as críticas teológicas à posição pluralista. As
críticas mais importantes concentram-se nas implicações da hipótese pluralista
para as doutrinas consideradas centrais no cristianismo como a Encarnação e a
Trindade. Para Hick, levar a sério o pluralismo significa rever radicalmente a
estrutura tradicional da teologia cristã. Em sua visão, a doutrina da
encarnação, assim como tradicionalmente entendida, produziu na história sérios
efeitos colaterais, entre os quais o anti-semitismo cristão, a exploração
colonialista ocidental, a subordinação social das mulheres e um arrogante
complexo de superioridade do cristianismo face às religiões.[9]
Segundo Hick, os desdobramentos da visão tradicional levam necessariamente à
visão de superioridade do cristianismo. Há, segundo ele, uma linha de
continuidade que vai da idéia de que Jesus de Nazaré era o Deus Filho para a
idéia da centralidade mundial do cristianismo, visto como a única religião
fundada por Deus em pessoa. Uma tal idéia é para ele incompatível com uma
compreensão pluralista do cristianismo, entendido como uma das respostas
salvíficas à Realidade Última.
Na visão de John Hick, a idéia de
encarnação não pode ser compreendida em sentido literal, mas em sentido
metafórico. Com base em estudos protestantes e católicos sobre o Novo
Testamento, Hick indica que “o Jesus histórico não ensinou que ele era Deus ou
o Deus Filho, a segunda pessoa, encarnada, de uma Santa Trindade”. Sua
consciência era a de um “profeta enviado por Deus”, alguém marcado por intensa consciência de
Deus, que se tornou fonte de inspiração e seguimento para os seus ouvintes.
Para Hick, a afirmação da divindade de Jesus foi fruto da tradição eclesial
posterior, encontrando no Concílio de Nicéia ( ano 325) sua oficial adoção[10]. A
metáfora bíblica do “Filho de Deus”, presente nas escrituras hebraicas, vem
transformada numa doutrina metafísica da
encarnação, rígida e literal: “um filho de Deus metafórico se transforma no
Deus Filho metafísico, segunda pessoa da Trindade”[11].
Na hipótese pluralista proposta por Hick, Jesus aparece como um ser
humano excepcional, radicalmente aberto à presença e influência de Deus, alguém marcado por uma
extraordinária e intensa consciência de Deus, que “encarna” de forma singular a
dinâmica divina para a vida humana, que torna Deus real para os outros. Ele é
alguém “que corporificou, nas circunstâncias de sua época e lugar, o ideal da
humanidade que vive em abertura e em atitude de resposta a Deus, e ao fazê-lo
ele ´encarnou` um amor que reflete o amor divino”[12]. O
que marca a personalidade de Jesus para Hick é a sua “tremenda autoridade
moral” e a riqueza de seu amor acolhedor . Esta é a tese de Hick que tem provocado a reação mais contundente
de muitos de seus críticos, e uma resistência firme contra as interpretações
propostas pela cristologia pluralista. Mas o grande parceiro de Hick na
teologia pluralista, o teólogo católico Paul Knitter, mostrou em trabalho
realizado na metade dos anos 90, que a reflexão de Hick não pode ser
necessariamente lida como uma “negação da divindade de Jesus ou do poder
salvífico de Jesus”. O que ele realiza é uma reinterpretação desta divindade,
de forma a não obstruir a possibilidade de percepção da presença salvadora de
Deus também alhures.[13]
A grande controvérsia gira em torno da
questão da possibilidade ou não de uma
reflexão teológica que sustente a idéia de Jesus como Deus encarnado sem
necessariamente levar à reivindicação da superioridade do cristianismo. É uma
das indagações levantadas por Graça no diálogo com João. Há de fato teólogos
inclusivistas como Jacques Dupuis e Claude Geffré que acreditam e defendem tal
possibilidade. Este último teólogo acredita que não é descartando o mistério da
encarnação que se pode chegar a uma perspectiva dialogal. O que propõe é a
superação de uma concepção ainda limitada da singularidade cristã:
Assim, em vez de recorrer a um teocentrismo geral,
acho que é um aprofundamento do mistério
da encarnação que deve permitir-nos compreender como se pode manter a
singularidade do mistério de Cristo, sua unicidade, sem fazer com esta
unicidade conduza a uma espécie de imperialismo e de hegemonia do cristianismo
em relação às outras religiões[14].
John Hick reconhece a possibilidade de
cristãos ortodoxos atuarem a sua perspectiva religiosa sem necessariamente
adotar uma atitude arrogante e desrespeitosa com respeito aos crentes de outras
tradições. Mas a sua interrogação decisiva gira em torno à “lógica das
crenças”. Para ele, a lógica interna que acompanha a tradição cristã, o seu
traço normativo, acaba suscitando uma compreensão e dinâmica de superioridade
do cristianismo sobre as outras religiões. Um exemplo bem patente, no âmbito do
catolicismo romano, é a Declaração Dominus Iesus, da Congregação para a
Doutrina da Fé. Ao abordar a relação da igreja com as outras religiões,
indica-se claramente que as outras religiões encontram-se objetivamente numa
“situação gravemente deficitária, se comparada com a daqueles quena Igreja têm
a plenitude dos meios de salvação”[15].
Para Hick, não há como romper uma semelhante lógica no interior de nenhuma
forma de inclusivismo cristão.
Na teologia pluralista das religiões
defendida por Hick, amplia-se igualmente a compreensão de salvação, missão e
diálogo. O que ele propõe é uma ampliação do olhar, para além do âmbito de uma
tradição específica, de forma a poder captar o “otimismo cósmico” presente nas
diversas tradições. As idéias de bondade, amor, compaixão não se restringem ao
âmbito cristão, mas se estendem às diversas tradições religiosas. Apesar de
marcadas por traços de ambiguidades, as religiões buscam por meandros
diversificados a transformação humana radical, e nesse sentido são caminhos de
salvação. Nenhuma religião particular pode, segundo Hick, sobressair-se com o mais salvífica dos que as outras. O
critério decisivo de sua autenticidade vem revelado pelos seus frutos morais e
espirituais concretamente observáveis na dinâmica histórica. Na hipótese
pluralista a antiga compreensão de missão, entendida como processo de conversão
de todos ao cristianismo, não apenas perde sua plausibilidade como revela-se
extremamente problemática no atual contexto da diversidade da família humana e
de desafio em favor da paz. Para Hick a mensagem evangélica deve alimentar e
aquecer o coração dos cristãos, mas não ser imposta como norma universal para
todos. Em sua visão, o caminho mais produtivo para o momento atual não é o do
proselitismo mas o do diálogo inter-religioso. Trata-se de um diálogo que não
dissimula ou apaga as diferenças entre as religiões, mas que provoca em cada
uma delas o exercício essencial de escuta mútua, aprendizado e recíproco
enriquecimento. Hick reconhece que o momento atual tem suscitado uma sedução
fundamentalista bem problemática, mas acredita que os sistemas diversificados
de crença apresentam um real potencial de desenvolvimento criativo e de
abertura para as mudanças. Não há outra saída senão a da partilha de idéias e
o intercâmbio de experiências, sempre
animados pela cortesia espiritual, pela serenidade e gentileza. O diálogo não
visa a afirmação de uma única religião global, mas o intercâmbio das diferentes
respostas dadas pelas tradições religiosas ao mesmo Real. Para Hick, o que se
espera do futuro não é a dissolução da diversidade religiosa, que é sempre uma
riqueza, mas o exercício da reciprocidade inter-religiosa e seus desdobramentos
no sentido da transformação e enriquecimento das tradições que estarão sempre
mais ligadas por laços da amizade e fraternidade. Na parte final do livro, Jonh
Hick prenuncia, num “salto de imaginação” o horizonte do cristianismo a partir
do ano de 2056, quando então a visão pluralista poderá ganhar uma maior
aceitação dentro do próprio cristianismo. Numa era mais pluralista haverá lugar
e espaço para um maior intercâmbio espiritual, já que deixarão de existir os
obstáculos e preconceitos que bloqueiam a abertura do olhar e do coração para a
diversidade de fontes espirituais que pontuam as respostas humanas distintas ao
horizonte maior do Mistério do Real.
Desde o lançamento do volume de ensaios
editado por John Hick intulado The Myth of God Incarnate (1977)[16], e
sobretudo após a publicação do livro por ele organizado com Paul Knitter em
favor de uma teologia pluralista das religiões[17], o
meio eclesiástico e teológico cristão ficou profundamente abalado. As reações
às teses pluralistas foram imeditas e diversificadas. As teses de John Hick
ficaram associadas no imaginário exclusivista ou inclusivista dominante ao
relativismo. Foram poucos os que se deram ao empenho intelectual de se debruçar
sobre as inúmeras obras de John Hick para estabelecer com ele uma interlocução
crítica e fecundante. Muitos se resumiram a leituras parciais ou deslocadas do
contexto mais amplo de sua reflexão, ou mesmo se contentaram com leituras de
segunda mão. Muitos preconceitos e visões apriorísticas acabaram dificultando
ou impedindo o acesso preciso à reflexão de Hick. Um dos fervorosos defensores
da reflexão deste autor, o teólogo Perry Schimidt-Leukel, tem buscado mostrar
que grande parte das objeções feitas a Hick, estão fundadas numa “ignorância ou
interpretação incorreta” de seu pensamento. Chega inclusive a pontuar que a sua
posição pluralista não é incompatível, como muitos tendem a pensar, com as
afirmações fundamentais da fé cristã.[18] Não
se quer dizer que a reflexão e obra de Hick estejam isentas de problematização
ou questionamento, mas que merecem um maior cuidado, uma atenção despojada para
a sua devida avaliação. Os leitores devem ser convidados a uma leitura mais
honesta e desarmada da reflexão proposta, de forma a favorecer o melhor
entendimento das posições de John Hick. É necessário e urgente a abertura de um
debate mais amplo no Brasil sobre o pluralismo religioso e a teologia
pluralista das religiões. Nada mais sadio que um ambiente favorecedor de
distintas percepções da fé cristã, que abrem o campo da interlocução e do
diálogo teológico. Este é o convite que se faz ao leitor na apresentação de
mais esta obra de John Hick, um autor ainda pouco conhecido em âmbito
nacional.
[1]
Recentemente foi publicada sua auto-biografia: Jonh Hick, an autobiography.
Oxford: Oneworld Publications, 2003.
[2] A Filosofia da Religião, uma de suas obras
mais antigas, foi traduzida no Brasil pela editora Zahar, e a Metáfora do Deus
encarnado pela editora Vozes, cuja tradução foi realizada pelo mesmo autor da
presente tradução, o professor Luis Henrique Dreher, do programa de
pós-graduação em ciência da religião da UFJF. Há que registrar que um outro
artigo de Jonh Hick,, sobre o caráter não absoluto do cristianismo, havia sido
publicado na revista do mesmo programa no ano de1998 (Numen, v. 1, n. 1,
jul-dez 1998).
[3] John
Hick justifica no livro a manutenção do emprego da tipologia largamente usada
no âmbito das teologias cristãs da religião, que classifica as posições em
três: exclusivista, inclusivista e pluralista, reconhecendo as inúmeras
variações que cada uma delas comporta.
[4] John
Hick. A metáfora do Deus encarnado. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 122.
[5] Ibn
Arabî. Le livre de chatons des sagesses. Tome Premier. Beyrouth:
Al-Bouraq, pp. 313-317; William C. Chittick. Mundos imaginales: Ibn
al-Arabi y la diversidad de las creencias. Sevilla: Alquitara, 2003, pp.
280-281.
[6]
Joseph Ratzinger. Situação atual da fé e da teologia. Atualização, n.
263, set/out 1996, p. 546. Jonh Hick e outros autores mostraram como muitas das
críticas tecidas por Ratzinger ao “relativismo” da teologia pluralista das
religiões estão fundadas unicamente em fontes secundárias e apresentam
inexatidões. Cf. Monique Aebischer-Crettol. Vers un oecumenisme
interreligieux. Paris: Cerf, 2001, p. 472, n. 3.
[7]
Comissão Teológica Internacional. O cristianismo e as religiões. São
Paulo: Loyola, 1997.
[8]
Ibidem, n. 14, p. 15.
[9] Esta
mesma questão já tinha sido objeto da reflexão do autor em livro anterior: cf.
John Hick. A metáfora do Deus
encarnado, pp. 111-122.
[10] Como
indica Hick, foi no Concílio de Nicéia “que pela primeira vez a Igreja adotou
oficialmente, da cultura grega, o conceito não bíblico de ousia,
declarando que Jesus, como o Deus Filho encarando, era homoousios toi patri,
da mesma substância que o Pai”: John Hick. A metáfora do Deus encarnado, p.
66.
[11] John
Hick. A metáfora do Deus encarnado, p. 66. Ver também, p. 55.
[12] John
Hick. A metáfora do Deus encarnado, p. 26. Ver ainda pp. 16, 25, 32, 42
e 49.
[13] Paul
Knitter. Una terra molte religioni. Assisi: Citttadella Editrice, 1998,
pp. 69-70.
[14]
Claude Geffré. Crer e interpretar. A virada hermenêutica da teologia.
Petrópolis: Vozes, 2004, p.163.
[15]
Congregação para a Doutrina da Fé. Declaração Dominus Iesus. São Paulo:
Paulinas, 2000, p. 42, n. 22.
[16] John
Hick. Il mito del Dio incarnato. Foggia: Edizione Bastogi, 1982 (a publicação
original inglesa é de 1977).
[17] John
Hick & Paul F, Knitter (Eds). L´unicità
cristiana: un mito? Per una teologia pluralista delle religioni.Assisi:
Cittadella Editrice, 1984 (a publicação original inglesa é de 1987).
[18]
Monique Aebischer-Crettol. Vers un oecuménisme interreligieux, p. 470.
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