A presença da ambiguidade no perfil do brasileiro
Revendo com calma o programa de Wisnik de Nestroviski sobre Caymmy, fiquei curioso ao acompanhar a análise que faz Wisnik da canção de Caimmy, João Valentão, que nos favorece reconhecer o traço de ambiguidade que marca o caráter do brasileiro.O que igualmente nos remete à analise de Sérgio Buarque de Hollanda sobre o tal traço de cordialidade do brasileiro. Há certa imagem idílica ao identificar o brasileiro como sendo hospitaleiro, generoso e emocionalmente expansivo. Esse é um lado da medalha. Mas há também outro traço que habita o mesmo brasileiro, e que Rosa destacou com ênfase no conto “A hora e a vez de Augusto Matraga” (Sagarana). É o que Graciliano Ranmos chamou de “homem subterrâneo”. Um traço que vem revelado por poema singular de Drummond:
Às vezes o tigre em mim se demonstra cruel
como é próprio da espécie.
Outras, cochila
ou se enrosca em afago emoliente
mas sempre tigre, disfarçado.
Antonio Candido expressa essa ambiguidade do humano em sua análise de Grande Sertão: Veredas, no livro: Tese e Antítese. A ideia de uma simultânea presença no humano do “vapor do mal” e do “vozinha do bem”. Quando Rosa sublinha que o demo está presente no íntimo do humano, está ilustrando o fato da presença de um lado “crespo” ou “torvo” no humano: a ideia de um lado “avesso” que é igualmente real.
Mas vamos à canção de Caimmy:
João Valentão é brigão
Pra dar bofetão
Não presta atenção e nem pensa na vida
A todos João intimida
Faz coisas que até Deus duvida
Mas tem seu momento na vida
É quando o sol vai quebrando
Lá pro fim do mundo pra noite chegar
É quando se ouve mais forte
O ronco das ondas na beira do mar
É quando o cansaço da lida da vida
Obriga João se sentar
É quando a morena se encolhe.
Se chega pro lado querendo agradar
Se a noite é de lua
A vontade é contar mentira
É se espreguiçar
Deitar na areia da praia
Que acaba onde a vista não pode alcançar
E assim adormece esse homem
Que nunca precisa dormir pra sonhar
Porque não há sonho mais lindo do que sua terra.
Segundo Wisnik, essa canção de Caimmy não é dramática, mas sinaliza a presença de uma ambiguidade. No início, ele aventa a figura de um ser valentão, que é brigão e dá bofetão. Alguém que a todos intimida. No decorrer da canção, há um decantamento dessa perspectiva: quando João deixa-se levar pelo ócio, ao ouvir o ronco das ondas na beira do mar, e se abandona no colo da morena, envolvido por um sonho lindo.
Wisnik chama a atenção para a contradição presente na canção: o valentão brasileiro – diz ele -, portador de uma violência singular, portador de truculência, de um mandonismo típico das estruturas arcaicas, apresenta igualmente um outro lado, adornado por encanto, festa, alegria e disposição afetiva e acolhedora. Ou seja, o brasileiro, como observamos também em nossas famílias, tem seu lado de onça bravia, conjugada com uma dimensão utópica serena e alegre.
Isto também me faz lembrar outro conto de Rosa, Meu tio Iauaretê. A onça Maria Maria, tem seu momento de raiva, quando ela “esbarra de pensar”: “Quando algua coisa ruim acontece, então de repente ela ringe, urra, fica com raiva”. Mas no normal, ela está sempre alegre, e para ela está “tudo bonito, bom, bonito, bom, sem esbarrar”. Ela pode sair do sério, mas é coisa passageira, pois depois, quando tudo torna a ficar quieto, “ela torna a pensar igual, feito em antes...”.
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