Pregar e Predar
Faustino Teixeira
O tema da missão evangelizadora junto aos povos originários tem sido um campo de muito debate na antropologia brasileira hoje. No livro que estou organizando junto com Renata Menezes, de Antropologia da Religião (a sair pela Vozes em breve) há dois textos que o tema vem abordado. Um que é mais direto, de autoria de Paula Montero: Antropologia e missão: reflexões teórico-metodológicas. E outro, que trata o tema do xamanismo, religião e espiritualidade, de Beth Pissolato.
Como indicou Paula, com acerto, “não é possível narrar uma história nativa sem narrar, ao mesmo tempo, uma história colonial”. Ela mostra como uma antropologia das missões “precisa sempre levar em conta que todo o discurso sobre o Outro se organiza, necessariamente, em condições históricas nas quais a conjunção/interação de universos culturais distintos já está dada”. Em todo esse processo, que é dinâmico, há sempre “um ´outro` modificado por um ´nòs`”. Não é possível fugir disso, mesmo que a intenção missionária seja aberta e respeitosa da diversidade.
No texto de Beth Pissolato ela cita o importante livro da antropóloga Aparecida Vilaça, que recobre uma etnografia de longa duração com os Wari` no sudoeste amazônica. O seu livro, infelizmente, não está disponível em português, mas o título já é profundamente significativo: Rezar e Predar (Pray and Prey – 2016). Não há nenhuma dúvida com respeito ao que aponta Aparecida: não há como exercer a dinâmica missionária, com seu repertório subjacente, sem que alguma predação ocorra.
Em livro mais recente e muito precioso, Paletó e eu (2018), há um capítulo específico dedicado por Aparecida à conversão evangélica dos Wari`. Mesmo Paletó, pai espiritual de Aparecida, acabou se convertendo à religião dos crentes. E segundo a narração de Aparecida, Paletó tornou-se crente por “medo do fim do mundo”, e, por consequência, “ser abandonado pelos seus conterrâneos e parentes, muitos deles crentes desde o fim dos anos de 1960”. Aqueles que não se convertessem, segundo o discurso dos missionários, estariam condenados a ficarem na terra da onça e servirem de alimento para elas. Esse era o dicurso da predação.
Estamos diante de uma tradição missionária desencantadora do universo simbólico dos povos originários. Uma pregação que esvazia de sentido a beleza de como esses povos vêem a vida e o destino. Em seu lugar vem proposto um céu como “um lugar meio sem graça, onde todos são iguais, não fazem sexo nem festas, bebem água, comem pão e passam todo o tempo a escrever”. Em verdade, é por causa do medo do inferno, incutido nesses povos, que se dá a conversão.
Não há dúvida que toda essa situação incomodou e incomoda Aparecida Vilaça, e outros tantos antropólogos e antropólogas. Ela diz nesse livro sobre Paletó, que se coloca radicalmente contrária “ao trabalho de conversão religiosa” em curso entre os Wari`, mas sublinha também que sempre se manteve respeitosa face a opção por eles escolhida. Mas estranha o que ocorreu e ainda está em curso, pois é algo que vem contrariar radicalmente o dado de acolhida da multiplicidade que sempre marcou a cosmovisão dos Wari`. Eles são “radicalmente não dogmáticos”, e sofrem um violento processo de dogmatização que vem de fora.
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